ABRUPTO

3.4.04


TORTURAS DA PIDE A MULHERES

Numa nota publicada em 25 de Janeiro de 2004 no Abrupto e nos Estudos sobre o Comunismo, publiquei esta crítica:

Num artigo de hoje do Público São José Almeida escreve o seguinte sobre as torturas utilizadas pela PIDE:

“Os métodos [de tortura] usados passavam, por exemplo, por queimar os presos com cigarros. Era também usual interrogar os presos despidos, sobretudo quando se tratava de mulheres.”

Nenhuma destas coisas é verdade, a não ser excepcionalmente. A PIDE torturava e torturava por sistema, não é isso que está em causa. Mas não utilizava queimaduras que deixavam marcas e muito menos despia as mulheres “usualmente”. Há um ou outro relato , muito raro, de queimaduras de cigarro, e ,a não ser num caso de mulheres presas do Couço em que humilhações directas de carácter sexual foram utilizadas, desconhecem-se testemunhos nesse sentido. A PIDE insultava as “companheiras” de tudo quanto havia, mas não as despia.
Afirmar isto é não compreender de todo os quadros de mentalidade que presidiam ao regime A lei não chegava à PIDE, como os PIDEs se gabavam, mas chegava a mentalidade e a “moral” sexual (ou a falta dela). É completamente inverosímil o que se diz no artigo.”


Esta nota motivou uma reacção indignada de São José Almeida e de outros jornalistas do Público no Glória Fácil, reafirmando a veracidade e o fundamento do que se escrevera no artigo. Entendi nada dizer porque todas as pessoas que conhecem a história da repressão em Portugal sabem do completo infundado das afirmações de São José Almeida e não valia a pena qualquer comentário pelo que era uma manifestação de ignorância solidária.

Agora, no mesmo jornal, Irene Pimentel , que se prepara para terminar o estudo mais completo sobre a PIDE, vem dizer exactamente o mesmo. Há apenas um caso conhecido e nenhuma prática "habitual" como dissera São José Almeida:

Nos anos 60, a ideia da emancipação das mulheres também chega à PIDE e começaram as torturas às mulheres. As do Couço foram as primeiras", conta Irene Pimentel.. (…) A historiadora apenas tem conhecimento de um caso de tortura sexual a uma mulher. "É um caso conhecido, foi Conceição Matos, que foi submetida à tortura da estátua, estando menstruada, obrigada a despir-se e a limpar-se com a roupa, diante dos agente. Entre eles estava uma mulher, a célebre agente Madalena, que tinha fama de muito violenta com os presos".

Ficava bem, até pelo tom habitual de arrogância moral que foi usado, que se reconhecesse o erro.

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O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES

Uma Aurora Borealis em Eau Claire nos EUA, enviada por Penélope que "desfaz de noite, o que faz de dia...."



"Sobre as questões esquerda/direita, nomeadamente sobre a moderna ascensão dos partidos extremistas, à esquerda e à direita, lembrei-me de ter lido num jornal espanhol (El Pais?) um cronista que fazia uma interessante analogia com o futebol: antes os jogadores preferiam conduzir a bola até à área do adversário pelo centro do campo, agora a estratégia é ir pelos extremos. Uma nova tendência que, segundo ele, surgiu primeiro no futebol e depois na politica."

(Sérgio Pinto)

"As imagens são de alguma forma mais chocantes do que as do 11 de Setembro. Porque não é uma mortandade à distância, sob a queda de aviões ou de edifícios. Há a intervenção directa de pessoas, no contacto com os cadáveres, cavando um fosso cultural maior do que tudo o resto. Mais do que pelo regozijo primal pela morte, acima de tudo repele o total desrespeito pelos mortos, o macabro brincar com os corpos, o horror da sua exposição pública. A diferente forma de encarar essa realidade torna aqueles iraquianos menos humanos os nossos olhos ocidentais: perpetua as difuldades de compreensão e impede a empatia."

(Artur Furtado)

"Sobre Saramago quero esclarecer que tive, desde que me lembro, uma posição mais visceral do que racional: não li e não gosto. Só que com o tempo o visceral vai diminuindo e o racional consolidando-se, mas o resultado mantém-se inalterado: não li e não gosto. Se antes eu acreditava que não iria morrer sem ler o “Memorial do Convento” que até iria gostar, cada vez mais me apetece não ler…
Saramago falou e Portugal inteiro parou e escutou. Com a sua presumida e agora pomposa (desde o Nobel) “selfconsciousness” e atordoado com a sua lucidez contestatária vem glosar as vantagens do voto em branco. Que ele o faça, é inteiramente legítimo e a democracia que eu defendo dá-lhe esse espaço e esse direito. Que seja ouvido como um iluminado profeta (eu fico com a sensação que o Rei Vai Nu), que a televisão e a imprensa, e até os blogues (Causa Nossa) lhe dêem dimensão de acontecimento de Estado já contesto. Se de cada vez que um escritor, de mérito igual ou superior ao de Saramago, editasse um livro, Portugal parasse, não se fazia nada no País.
"

(Joana Pereira de Castro)

"Li ontem esta passagem "Do we have any right to know the painful details of Eliot´s marital problems just because he is famous and dead? Is such information necessary or even relevant to a propoer reading of his poetry? These are fascinating and intricate questions" Eu pensei nisso ao ler o que Martin Amis divulgou sobre o pai na autobiografia que publicou recentemente. Nessa altura senti-me incomodada ao aprender sobre os problemas que Kingsley Amis tinha em satisfazer sexualmente a segunda mulher. Também foi uma revelação saber sobre as suas fobias extremas, que por exemplo não conseguia estar sózinho em nenhum lugar. Imagino que o Martin se deve ter posto no lugar do pai e deve ter sabido que o pai não haveria de gostar que estas coisas se soubessem. Mas mesmo assim foi para a frente, desculpando-se que é a prática comum. É uma prática errada e imoral mas como toda a gente faz ninguém questiona. "

(MCP)

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POEIRA DE 3 DE ABRIL

Hoje, há oito anos, um grupo de agentes do FBI e da polícia local assaltaram uma remota cabana no estado de Montana. Lá dentro estava Theodore Kaczynski Jr, o “Unabomber”, uma das faces do terrorismo contemporâneo, tão característico das suas tendências como a Al Qaeda. Reproduzo aqui o texto “Espelhos cruéis” que então publiquei, e que está incluído no livro Desesperada Esperança.

“Às vezes há espelhos cruéis. Em Kaczynski, o Unabomber, autor de três mortes e vinte e seis feridos com o envio de cartas bombas, algumas das coisas habitualmente escondidas no pensamento banal da esquerda estão cruelmente à vista. Não se compreende por isso que ninguém se interesse por ele e pelo seu destino. Ele que é a versão da esquerda de uma tradição clássica de terrorismo político, que encontra em Tim Mc Veigh, o bombista das milícias que fez ir pelos ares um edifício municipal, matando uma pequena multidão, o seu contraponto à direita.

Falei em “pensamento banal” já para me prevenir de alguma generalização abusiva, mas é muito por amabilidade, porque é tão “banal” como “essencial”. Banal aqui também quer dizer “comum”, que todos têm. O que Kaczynski fez, como o fez e porque o fez, tem uma profunda tradição nas raízes do terrorismo político, como instrumento de engenharia social, e esta tradição é mais constitutiva da esquerda do que se possa imaginar, e, para alguns, desejar .

Há em Kaczynski aquilo que, de há duzentos anos para cá, se pode denominar a determinação terrorista, a decisão sem hesitação em punir os males sociais como instrumento de exemplo e de alarme, ou de pura vingança e de medo, em nome de objectivos mais altos e puros de regeneração social. Os intelectuais são excelentes para estes objectivos, porque têm aquela dose de abstracção que faz esquecer os homens concretos em nome das construções ideais feitas em nome da utopia. Numa das suas últimas cartas a um grupo radical ecologista que se opunha ao corte de madeiras, Kaczynski anunciava-se dizendo que ele (no plural majestático do “nós”) fora o autor do assassinato do presidente da Califórnia Forestry Association. E afirmava que para ele a “Terra está primeiro”, a vida dos homens certamente que depois. A utopia tem as costas largas, até porque a “Terra” pesa muito .

Kaczynski é um intelectual acima da média, consistente e fanático, com aquela singularidade de propósito, sem desvios nem distracções, que permite criar uma obra. A de Kaczynski, para além do Manifesto anti-tecnológico, que, à força de ameaças, conseguiu publicar no Washington Post e no New York Times , eram as pequenas encomendas bomba contra cientistas, executivos de companhias de aviação, de computadores, e de serração de madeiras . O Manifesto ficará na história dos textos revolucionários e o seu sucesso no Internet é revelador da sua pertença a uma tradição consistente do pensamento anti-tecnológico americano. Mas os escritos de Kaczynski, em particular o seu diário descoberto na cabana em que vivia, são, no seu tom cruel e obsessivo, uma actualização de ideias muito antigas. Ouça-se o seu diário em 29 de Dezembro de 1979 : “nalgumas das minhas notas mencionei um plano de vingança contra a sociedade. O plano era destruir um avião em pleno voo. No fim do Verão, princípio do Outono, construí um engenho que me ficou caro porque tive que ir a Gr. Falls para comprar os materiais, incluindo um barómetro e muitos cartuchos para a pólvora “ … E continua por aí adiante com os detalhes dos materiais e do seu custo, com aquela mesma meticulosidade com que uma criança monta uma construção do Lego, ou um burocrata nazi calcula o custo per capita dos fornos crematórios .

Onde é que eu já ouvi isto ? No Catecismo Revolucionário de Netchaiev, elogiado por Bakunine; no anarquista do Agente Secreto de Conrad , empacotado em dinamite, pronto a explodir à primeira suspeita da polícia; no célebre diálogo de Sade junto de um vulcão em que se compara a capacidade de destruição da natureza (vulcões, terramotos, tempestades) com o poder das bombas que um químico pode construir. Kaczynski faz aqui o papel do químico anti-tecnológico, construindo as suas bombas segundo o príncipio do small is beautiful , cuidadosamente executadas com peças de madeira trabalhada, cujos estilhaços destruíram vários corpos. Porque, ninguém tenha ilusões, as bombas do Unabomber eram para matar .

Imagino alguns dos meus leitores a encolherem os ombros e a dizerem: mas o que é que a esquerda tem a ver com isto? Não condenou sempre a esquerda a violência “separada” da “luta de massas”? Não. O que na tradição da esquerda se faz é escolher o “bom” terrorismo, e rejeitar o “mau” terrorismo conforme as épocas, as conveniências, os mandantes e os executantes. Nunca à esquerda se estabeleceu uma verdadeira distinção de princípio contra o terror, nem tal se podia fazer, dada a visão da relação do homem “naturalmente bom” com uma sociedade “naturalmente má “. Os marxistas acham que a sua condenação do terrorismo individual e que a sua condição de aceitação apenas da associação do terror às “massas” e aos movimentos revolucionários lhes basta. Não basta, nem aliás na história estas distinções alguma vez tiveram verdadeiro sentido. Os partidos comunistas condenavam essencialmente o terrorismo que não controlavam , ou aquele que estrategicamente não lhes seguia os timings e os alvos. Quando “Carlos” se passeava pela Hungria, pela RDA e pela Roménia, e intervalava para ir a Damasco ou ao Yemen, e não ao contrário, os pacíficos burocratas da Stasi, do KGB ou da Securitate, com quem ele brindava nas festas de família, pediam-lhe só que não estragasse as visitas de estado de Brejnev. E ele não estragava.

Só que Kaczynski ainda era do tempo da pólvora e não do Semtex. Mas não é, a seu modo, um homem de “princípios”, de uma fé inabalável a mesma fé que a nossa esquerda ( e direita ) radical chic admira no dr. Cunhal ou em Che Guevara? Qual é a verdadeira diferença entre Kaczynski a matar cientistas por Express Mail da sua cabana do Montana e o Che a matar uns desgraçados soldados bolivianos, tão camponeses como os camponeses que ele queria trazer para a “sua” revolução? Ou de Kaczynski com o dr. Abigael Guzmán, o camarada Gonzalo, do Sendero Luminoso, ou com o comandante Marcos, do Exército de Libertação Zapatista, tão versado na Internet e no marketing da imagem revolucionária e da atracção sado-masoquista pela máscara? As “massas”? Mas que “massas”? Os “ideais”? Mas o que não falta a Kaczynski são “ideais”. A luta por uma sociedade “melhor”? Mas pensam que o Unabomber não está convencido de que destruir os malefícios da aviação e dos computadores não nos faz viver “melhor”?

Não, não é por aí. Porque o que une estes homens todos é uma mesma identidade obsessiva, contra a história, contra os factos, contra a realidade, contra os homens concretos, pela abstracção de uma utopia, com as melhores das intenções. Que só eles acham que o são. E de que o Inferno está cheio."

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OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: OLHOS QUE PASSEIAM ÁRDUOS



O “Espírito” atravessou esta planície pedregosa. Começa a ficar cansado, mas ainda tem umas colinas longínquas para onde se dirigir. Não se vêem nesta fotografia porque estão à sua frente e o olhar é para trás, para a travessia feita. Caminha, pois, pequeno “Espírito” para onde é mais alto.

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EARLY MORNING BLOGS 173

Esta carta matinal de Juanico, dizendo "nós por cá todos bem", como em todas as guerras, todos os soldados fazem.


Llegué, señora tía, a la Mamora,
Donde entre nieblas vi la otra mañana,
Desde el seguro de una partesana,
Confusa multitud de gente mora.

Pluma acudiendo va tremoladora
Andaluza, extremeña y castellana,
Pidiendo, si vitela no mongana,
Cualque fresco rumor de cantimplora.

Allanó alguno la enemiga tierra
Echándose a dormir; otro soldado,
Gastador vigilante, con su pico

Biscocho labra. Al fin, en esta guerra
No vi más fuerte, sino el levantado.
De la Mamora. Hoy miércoles. Juanico.



(Luis de Góngora y Argote)


*

Bom dia !

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VER A NOITE

Noite de luar húmido, humidade baixa, silenciosa, à volta das novas folhas das árvores.

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2.4.04


POEIRA DE 2 DE ABRIL

Hoje, há cinquenta e sete anos, Simone de Beauvoir atravessa o sul dos EUA num autocarro expresso. Partiu às nove da manhã para chegar a Jacksonville, às duas da madrugada. Sentou-se na cadeira, reclinou-se, verificou que havia uma pequena lâmpada para ler à noite. Vendiam-se Coca Colas e sandes no interior do autocarro. Mais confortável do que os autocarros em França.

Tudo bem, menos a terra que atravessava – o Sul racista , a terra da “grande tragédia” que a perseguia como uma obsessão. Os brancos ressentidos pela beleza dos negros. Os brancos que ali perdiam toda a “gentileza americana”.

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Peter Graham, Wandering Shadows

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1.4.04


EARLY MORNING BLOGS 172

Reticências

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na ação.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!

Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafisica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distração de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...


(Álvaro de Campos)

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31.3.04


NOTAS SOBRE O ACTUAL USO ABUNDANTE DAS EXPRESSÕES "ESQUERDA" E "DIREITA"

(Continuação)

Há, em termos filosóficos, um último núcleo interpretativo, uma ultima ratio, que separa a esquerda da direita: a questão do optimismo ou do pessimismo antropológico. Tudo o resto pode emanar daí. Mas, num certo sentido, também nós optamos por um ou por outro. Escolhemos, como uma background assumption, o que desejamos, em função das consequências previsíveis e da visão do mundo que transporta.

Mas, nos dias de hoje, em que o mundo, duplamente criado pela revolução francesa e pela evolução industrial, está ultrapassado, em que não é o lugar da produção que define o olhar sobre a sociedade, mas sim o lugar do consumo, em que as teleologias da história ( a História hegeliana com H grande) perderam o sentido, o que significa a esquerda e a direita, para além de tudo isso?

Significa, primeiro, um lugar afectivo, uma pertença. A enunciação do "eu sou de ..." continua a ser poderosa. Entra-se numa família com sinais de reconhecimento. É talvez a mais forte sentido das palavras, uma escolha de pertença.

Mas pertença a quê? Aqui é mais complicado (hoje) manter a distinção. Se se analisarem os issues, a distinção perde toda a nitidez, e perderá cada vez mais. Entrei uma vez na Laissez Faire Books em Nova Iorque , onde Friedmann e Bakunine estão nas mesmas estantes, como "libertarians", e percebe-se como se começam a dissolver as barreiras tradicionais. Droga? Há gente à direita e à esquerda que defende a liberalização ou a repressão (é verdade, no entanto, que sempre se pode dizer que há mais gente à esquerda a defender a liberalização...). Aborto, a mesma coisa. O corporativismo? Ninguém defende melhor o closed shop do que os sindicatos. Modelo económico? O capitalismo, com mais ou menos adjectivação social, serve hoje a esquerda e a direita. Sensibilidade, as "pessoas" ? É pouco, e sobretudo não diz nada.

(Continua)

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O VOTO NA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA

sobre a execução israelita do dirigente do Hamas Yassin, foi aprovado por unanimidade. Como conheço a casa e sei que só há unanimidade quando qualquer voto ou resolução, seja qual for o acontecimento, também bate no lado de cá (nos EUA, ou em Israel, ou no liberalismo, no capitalismo, etc., etc.) ou, acima de tudo, quando bate no lado de cá - este "lado de cá" é para ser rápido e toda a gente perceber - interessei-me em saber o que se passara. O reverso, anote-se, nunca é verdadeiro, nunca há unanimidade quando se bate no "lado de lá", e é por isso que a Assembleia, mesmo com maiorias do PSD , votou sempre o pesar por dezenas de militantes comunistas e socialistas, e apenas por excepção o fez em relação a quem não era nem da oposição, nem da maçonaria.

Para além da questão, já de si um pouco bizarra, da Assembleia da República aprovar um voto de pesar pela morte de um terrorista, quando não o faz pela morte de soldados dos países nossos aliados, a duplicidade de critérios é evidente no voto e na discussão. Nem queria acreditar ao ler a discussão e o voto, mas enquanto Israel e Sharon são nomeados explicitamente, nem uma única vez se pronunciou a palavra Hamas. Fala-se das vítimas civis israelitas, mas sem mencionar qualquer autoria dos atentados, como se elas fossem vítimas da atmosfera do Médio oriente. Quanto a Yassin, o voto propriamente dito não o identifica como aquilo que ele foi, nem a sua responsabilidade na morte dessas mesmas vítimas civis. É por isso que eu desconfio sempre da unanimidade; prefiro que haja clareza política.

*

Que sentido fará proclamar um voto unânime condenando a morte de um terrorista num órgão de soberania de um país que nada tem que ver com a situação em causa? Por esta ordem de ideias, a partir de agora teria-se que se condenar a morte de um qualquer militar israelita ou de um qualquer civil, nacional ou estrangeiro, em território de Israel, com também uma qualquer vítima palestiniana, nesta completa amálgama de resposta e contra-resposta que é o conflito israelo-árabe...
Desta vez, a maioria foi atrás do denominado politicamente correcto...


(Pedro Peixoto)


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EARLY MORNING BLOGS 171

Escolhido num hotel, escolhido num quarto de hotel.

Hôtels

La chambre est veuve
Chacun pour soi
Présence neuve
On paye au mois

Le patron doute
Payera-t-on
Je tourne en route
Comme un toton

Le bruit des fiacres
Mon voisin laid
Qui fume un âcre
Tabac anglais

Ô La Vallière
Qui boite et rit
De mes prières
Table de nuit

Et tous ensemble
Dans cet hôtel
Savons la langue
Comme à Babel

Fermons nos Portes
À double tour
Chacun apporte
Son seul amour


(Guillaume Apollinaire)

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30.3.04


NOTAS SOBRE O ACTUAL USO ABUNDANTE DAS EXPRESSÕES "ESQUERDA" E "DIREITA"

Nota prévia: utilizo as expressões "esquerda" e "direita" com aspas para precisar que as utilizo pelo seu uso corrente. Mais à frente falarei daquilo que me parecem ser as enormes ambiguidades do seu uso corrente na actualidade.

Nunca como agora se tornou tão habitual em Portugal o uso generalizado das classificações "esquerda" e "direita". Mais significativo ainda, o seu uso em auto-classificações, com muita gente a dizer "eu sou de direita", "eu sou de esquerda", e mais nada.

Como temos pouca memória, nem sequer nos lembramos de que este uso generalizado é relativamente recente. Nas duas últimas décadas do século XX, as pessoas em Portugal identificavam-se politicamente pelas grandes correntes ideológicas e partidárias: diziam-se "comunistas", "socialistas" , "centristas", "sociais-democratas". Utilizavam também designações qualificadoras da sua postura política: "reformistas", "independentes", "basistas", etc. .

Foi uma vitória ideológica dos partidos extremistas à direita e à esquerda, do PP de Paulo Portas e do Bloco de Esquerda, o retorno a essas formas de designação. Os efeitos do seu uso são-lhes vantajosos porque ajudam a integrar esses pequenos grupos radicais no mainstream político: o PP na "direita", para onde empurra o PSD, para lhe fazer companhia; o BE na "esquerda", onde se acolhe do seu passado maoísta e trotsquista, para fazer parte de um grupo respeitável, onde está o PS. A designação serve igualmente o frentismo histórico do PCP.

Devido à história portuguesa do século XX e à longa ditadura, a auto-qualificação "eu sou de esquerda" era mais aceitável e dizível do que "eu sou de direita". Com um sistema político todo puxado à "esquerda", onde o partido mais à "direita" era do "centro", a legitimação da "esquerda" era mais forte do que a da "direita". O problema da legitimidade é mais vasto e tem raízes no pós-II Guerra, nos derrotados e nos vencedores. Essa situação criou uma assimetria de legitimação que sempre permaneceu subjacente na vida política democrática: enquanto toda a gente à "esquerda" usava com à vontade o termo para se auto-classificar, a relação não era espelhar à "direita", onde dizer "eu sou de direita" significava quase sempre ser-se "muito" de "direita".

(Continua)

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PROPAGANDA

Na Livraria Kleber, a livraria "institucional" de Estrasburgo, uma estante especial tem um cartaz "Os EUA, um modelo democrático?". Os livros respondem que não: panfletos franceses anti-americanos, do género Bush de braço dado com Bin Laden, a obra completa de Michael Moore, o livro de Todd sobre a "decadência americana", etc., etc. Já sabemos: os EUA não são uma democracia.

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EARLY MORNING BLOGS 170

Les fiançailles

A Picasso

Le printemps laisse errer les fiancés parjures
Et laisse feuilloler longtemps les plumes bleues
Que secoue le cyprès où niche l'oiseau bleu

Une Madone à l'aube a pris les églantines
Elle viendra demain cueillir les giroflées
Pour mettre aux nids des colombes qu'elle destine
Au pigeon qui ce soir semblait le Paraclet

Au petit bois de citronniers s'énamourèrent
D'amour que nous aimons les dernières venues
Les villages lointains sont comme les paupières
Et parmi les citrons leurs coeurs sont suspendus


(Guillaume Apollinaire)

*

Bom dia!

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29.3.04


EARLY MORNING BLOGS 169

Now the Lusty Spring

NOW the lusty spring is seen;
Golden hellow, gaudy blue,
Daintily invite the view.
Everywhere on every green,
Roses blushing as they blow,
And enticing men to pull,
Lilies whiter than the snow,
Woodbines of sweet honey full:
All love's emblems, and all cry,
"Ladies, if not plucked, we die."

Yet the lusty spring hath stayed;
Blushing red and purest white
Daintily to love invite
Every woman, every maid.
Cherries kissing as they grow,
And inviting men to taste,
Apples even ripe below,
Winding gently to the waist:
All love's emblems, and all cry,
"Ladies, if not plucked, we die."


(John Fletcher)

*

Bom dia!

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28.3.04


BIBLIOFILIA



Quatro livros entrados, três lidos, um a ler-se. Dois quase nada têm para ler - os dois da série "Icon", da Taschen, excelentes exemplos da evolução da editora, cada vez mais criativa na produção de livros gráficos. O livro sobre o "design" da RDA é um retrato notável da mistificação do "socialismo real", que muita gente não quis ver mesmo quando entrava pelos olhos dentro. Foi preciso cair-lhes o muro em cima.
A antologia de poesia da City Lights mostra como alguma poesia ligada à livraria de S. Francisco melhora com o tempo. Vêm lá alguns magníficos poemas de Frank O'Hara. O livro que estou a ler, o Box of Matches de Nicholson Baker, é um bom exemplo de prosa de "early morning". Todos os textos começam de madrugada. Voltarei a ele.

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ESTUDOS SOBRE COMUNISMO

Actualizados

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YO MISMO DE MI MAL MINISTRO SIENDO


Vincent Van Gogh

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POEIRA DE 28 DE MARÇO

Hoje, há setenta e quarto anos, o homem que mais mudou as coisas com leis, Mustafá Kemal, dentro de uns anos conhecido como Ataturk, mudou o nome de uma pequena vila asiática, cheia de carneiros, de Angora para Ankara, e o nome de um dos centros do mundo, antigamente chamado de Constantinopla ou Bizâncio, para Istambul.

Hoje, há setenta e três anos, Virgínia Woolf sentou-se para escrever o seu diário. Na noite passada morrera Arnold Bennett. Sobre ele escreve estas linhas terríveis e contraditórias:

"A loveable genuine man; impeded, somehow a little awkward in life; well meaning; ponderous; kindly; coarse; knowing he was coarse; dimly floundering and feeling for something else; glutted with success; wounded in his feelings; avid; thicklipped; prosaic intolerably; rather dignified; set upon writing; yet always taken in; deluded by splendour and success; but naïve; an old bore; an egotist; much at the mercy of life for all his competence; a shopkeeper's view of literature; yet with the rudiments, covered over with fat and prosperity and the desire for hideous Empire furniture, of sensibility, Some real understanding of power, as well as a gigantic absorbing power.

E continua:

I remember his determination to write 1000 words daily; and how he trotted off to do it that night, and feel some sorrow that now he will never sit down and begin methodically covering his regulation number of pages in his workmanlike beautiful but dull hand. Queer how one the dispersal of anybody who seemed - as I say - genuine: who had direct contact with life - for he abused me; and I yet rather wished him to go on abusing me; and me abusing him. An element in life - even in mine that was so remote - taken away. This is what one minds.”

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EARLY MORNING BLOGS 168

Reconocimiento De La Vanidad Del Mundo

En fin, en fin, tras tanto andar muriendo,
tras tanto varïar vida y destino,
tras tanto de uno en otro desatino,
pensar todo apretar, nada cogiendo;

tras tanto acá y allá, yendo y viniendo
cual sin aliento, inútil peregrino;
¡oh Dios!, tras tanto error del buen camino
yo mismo de mi mal ministro siendo,

hallo, en fin, que ser muerto en la memoria
del mundo es lo mejor que en él se asconde,
pues es la paga dél muerte y olvido;

y en un rincón vivir con la vitoria
de sí, puesto el querer tan sólo adonde
es premio el mismo Dios de lo servido.


(Francisco de Aldana)

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© José Pacheco Pereira
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