ABRUPTO

3.4.04


POEIRA DE 3 DE ABRIL

Hoje, há oito anos, um grupo de agentes do FBI e da polícia local assaltaram uma remota cabana no estado de Montana. Lá dentro estava Theodore Kaczynski Jr, o “Unabomber”, uma das faces do terrorismo contemporâneo, tão característico das suas tendências como a Al Qaeda. Reproduzo aqui o texto “Espelhos cruéis” que então publiquei, e que está incluído no livro Desesperada Esperança.

“Às vezes há espelhos cruéis. Em Kaczynski, o Unabomber, autor de três mortes e vinte e seis feridos com o envio de cartas bombas, algumas das coisas habitualmente escondidas no pensamento banal da esquerda estão cruelmente à vista. Não se compreende por isso que ninguém se interesse por ele e pelo seu destino. Ele que é a versão da esquerda de uma tradição clássica de terrorismo político, que encontra em Tim Mc Veigh, o bombista das milícias que fez ir pelos ares um edifício municipal, matando uma pequena multidão, o seu contraponto à direita.

Falei em “pensamento banal” já para me prevenir de alguma generalização abusiva, mas é muito por amabilidade, porque é tão “banal” como “essencial”. Banal aqui também quer dizer “comum”, que todos têm. O que Kaczynski fez, como o fez e porque o fez, tem uma profunda tradição nas raízes do terrorismo político, como instrumento de engenharia social, e esta tradição é mais constitutiva da esquerda do que se possa imaginar, e, para alguns, desejar .

Há em Kaczynski aquilo que, de há duzentos anos para cá, se pode denominar a determinação terrorista, a decisão sem hesitação em punir os males sociais como instrumento de exemplo e de alarme, ou de pura vingança e de medo, em nome de objectivos mais altos e puros de regeneração social. Os intelectuais são excelentes para estes objectivos, porque têm aquela dose de abstracção que faz esquecer os homens concretos em nome das construções ideais feitas em nome da utopia. Numa das suas últimas cartas a um grupo radical ecologista que se opunha ao corte de madeiras, Kaczynski anunciava-se dizendo que ele (no plural majestático do “nós”) fora o autor do assassinato do presidente da Califórnia Forestry Association. E afirmava que para ele a “Terra está primeiro”, a vida dos homens certamente que depois. A utopia tem as costas largas, até porque a “Terra” pesa muito .

Kaczynski é um intelectual acima da média, consistente e fanático, com aquela singularidade de propósito, sem desvios nem distracções, que permite criar uma obra. A de Kaczynski, para além do Manifesto anti-tecnológico, que, à força de ameaças, conseguiu publicar no Washington Post e no New York Times , eram as pequenas encomendas bomba contra cientistas, executivos de companhias de aviação, de computadores, e de serração de madeiras . O Manifesto ficará na história dos textos revolucionários e o seu sucesso no Internet é revelador da sua pertença a uma tradição consistente do pensamento anti-tecnológico americano. Mas os escritos de Kaczynski, em particular o seu diário descoberto na cabana em que vivia, são, no seu tom cruel e obsessivo, uma actualização de ideias muito antigas. Ouça-se o seu diário em 29 de Dezembro de 1979 : “nalgumas das minhas notas mencionei um plano de vingança contra a sociedade. O plano era destruir um avião em pleno voo. No fim do Verão, princípio do Outono, construí um engenho que me ficou caro porque tive que ir a Gr. Falls para comprar os materiais, incluindo um barómetro e muitos cartuchos para a pólvora “ … E continua por aí adiante com os detalhes dos materiais e do seu custo, com aquela mesma meticulosidade com que uma criança monta uma construção do Lego, ou um burocrata nazi calcula o custo per capita dos fornos crematórios .

Onde é que eu já ouvi isto ? No Catecismo Revolucionário de Netchaiev, elogiado por Bakunine; no anarquista do Agente Secreto de Conrad , empacotado em dinamite, pronto a explodir à primeira suspeita da polícia; no célebre diálogo de Sade junto de um vulcão em que se compara a capacidade de destruição da natureza (vulcões, terramotos, tempestades) com o poder das bombas que um químico pode construir. Kaczynski faz aqui o papel do químico anti-tecnológico, construindo as suas bombas segundo o príncipio do small is beautiful , cuidadosamente executadas com peças de madeira trabalhada, cujos estilhaços destruíram vários corpos. Porque, ninguém tenha ilusões, as bombas do Unabomber eram para matar .

Imagino alguns dos meus leitores a encolherem os ombros e a dizerem: mas o que é que a esquerda tem a ver com isto? Não condenou sempre a esquerda a violência “separada” da “luta de massas”? Não. O que na tradição da esquerda se faz é escolher o “bom” terrorismo, e rejeitar o “mau” terrorismo conforme as épocas, as conveniências, os mandantes e os executantes. Nunca à esquerda se estabeleceu uma verdadeira distinção de princípio contra o terror, nem tal se podia fazer, dada a visão da relação do homem “naturalmente bom” com uma sociedade “naturalmente má “. Os marxistas acham que a sua condenação do terrorismo individual e que a sua condição de aceitação apenas da associação do terror às “massas” e aos movimentos revolucionários lhes basta. Não basta, nem aliás na história estas distinções alguma vez tiveram verdadeiro sentido. Os partidos comunistas condenavam essencialmente o terrorismo que não controlavam , ou aquele que estrategicamente não lhes seguia os timings e os alvos. Quando “Carlos” se passeava pela Hungria, pela RDA e pela Roménia, e intervalava para ir a Damasco ou ao Yemen, e não ao contrário, os pacíficos burocratas da Stasi, do KGB ou da Securitate, com quem ele brindava nas festas de família, pediam-lhe só que não estragasse as visitas de estado de Brejnev. E ele não estragava.

Só que Kaczynski ainda era do tempo da pólvora e não do Semtex. Mas não é, a seu modo, um homem de “princípios”, de uma fé inabalável a mesma fé que a nossa esquerda ( e direita ) radical chic admira no dr. Cunhal ou em Che Guevara? Qual é a verdadeira diferença entre Kaczynski a matar cientistas por Express Mail da sua cabana do Montana e o Che a matar uns desgraçados soldados bolivianos, tão camponeses como os camponeses que ele queria trazer para a “sua” revolução? Ou de Kaczynski com o dr. Abigael Guzmán, o camarada Gonzalo, do Sendero Luminoso, ou com o comandante Marcos, do Exército de Libertação Zapatista, tão versado na Internet e no marketing da imagem revolucionária e da atracção sado-masoquista pela máscara? As “massas”? Mas que “massas”? Os “ideais”? Mas o que não falta a Kaczynski são “ideais”. A luta por uma sociedade “melhor”? Mas pensam que o Unabomber não está convencido de que destruir os malefícios da aviação e dos computadores não nos faz viver “melhor”?

Não, não é por aí. Porque o que une estes homens todos é uma mesma identidade obsessiva, contra a história, contra os factos, contra a realidade, contra os homens concretos, pela abstracção de uma utopia, com as melhores das intenções. Que só eles acham que o são. E de que o Inferno está cheio."

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© José Pacheco Pereira
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