O REINO DOS EUFEMISMOS, DO ATIRAR PARA O LADO, DA FRASE QUE DISTRAI
“No que depende de nós as contas estão controladas” é uma frase que se ouve do lado do governo para justificar a derrapagem da execução orçamental. É mais uma frase justificatória e uma frase que aponta para o lado da distracção, quer enganar-nos e distrair-nos. A escola de Sócrates, um grande especialista na frase ao lado, na estatística ao lado, na frase que de spin destinada a circular contra as evidências dos factos como um soundbite, deixou discípulos.
A frase, se vista para lá do manto de confusão em que nos pretender envolver e do caminho errado que nos quer fazer seguir, não se sustenta um segundo. Começa por nos dizer que na execução orçamental há dois lados, um de responsabilidade do governo (as despesas) que corre gloriosamente “bem”, e outro do lado da “nuvem”, um misto de economia espanhola, de economia portuguesa, de fuga ao fisco, de economia paralela, de acaso, dos malvados efeitos da “surpresa” do desemprego, da “queda acima do esperado” da procura interna, e de mais meia dúzia de imponderáveis com que o governo nada tem a ver (as receitas) e que corre muito mal. Claro que começa por presumir que despesas e receitas não estão ligadas entre si, como nem vale a pena perder tempo a referir. Como se pode perceber a quebra das receitas que vai levar ao incumprimento do défice, se não tivermos em conta a política global do governo? Não pode ser…
Acresce que o controlo das despesas assenta essencialmente no corte de salários e subsídios na função pública, que não é propriamente uma medida estrutural. O próprio governo admitia-a como transitória e de excepção, para acabar em 2013, 2014, 2015, ou 2018, seja lá quando for, mas provisória. Hoje sabe-se que a medida é considerada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, como aliás de há muito se suspeitava, pelo que ainda mais conjuntural e excepcional ela parece. Ajuda em 2012, mas não chega, e desaparece em 2013.
Por isso, aquilo em que a frase “no que depende de nós” enche o peito de ar, ´pouco mais do que ar de lá sai, porque a dura realidade dos factos é que o governo não vai atingir o seu objectivo central, quase único, de cumprir o aspecto central do acordo com a troika. A troika fecha os olhos, ou porque precisa de um exemplo positivo para mostrar aos malditos gregos, ou porque uma parte da troika começa a perceber que o programa de laboratório não resulta nos testes com os ratinhos, ou porque, avaliando Portugal, se avalia a si própria e não quer dar má nota a si mesma.
Mas o problema destas frases de spin é que escondem o facto tenebroso: o problema que existia, continua lá; ou não é o problema que foi apontado e é outro; ou os remédios não servem, ou os médicos não sabem o que estão a fazer e preparam-se para matar o doente, pensando que estão a fazer um grande artigo para o New England Journal of Medicine. Neste caso para o Financial Times.
A tese da conspiração no caso Miguel Relvas é absolutamente idêntica à “cabala” socrática: uma construção do poder para justificar o injustificável. Os mecanismos são os mesmos, os protagonistas são os mesmos, os propagandistas são os mesmos, por turnos. Há uma falta de vergonha absoluta na capacidade de hoje se dizer o que ontem se abjurara, mas há quem suba na vida assim. Mas tout va bien. É só uma canção.
A um observador atento não escapa o crescendo dos mecanismos de raiva. Há um ano era e resignação, agora é a raiva. A raiva estala por todos os poros e é péssima conselheira. A raiva vem de cima e vem de baixo, mas o seu efeito é semelhante. Varre tudo à volta, a moderação, a sensatez, a possibilidade de poder haver equilíbrios.
A raiva é fruto dos tempos, nuns a sensação de que estão encostados à parede, sem esperança, e perdendo todos os dias o pouco que têm; noutros a consciência de que este momento único para moldar o país aos seus interesses está a esgotar-se e está a começar a correr mal. Uns e outros estão sem espaço de manobra, daí a raiva. Exemplos: a decisão do Tribunal Constitucional, a greve dos médicos.
A decisão do Tribunal Constitucional pode ter todos os defeitos jurídicos que se lhe apontam, mas não é por isso que está a ser violentamente atacada. Está a ser violentamente atacada por ter ido a contrario da politica do governo, que naturalmente todos os que a defendem acham que tem que ser indiscutível e autoritária, se for mesmo inconstitucional, ou dito de modo mais claro, ilegal. Perante o “ajustamento” que é que valem as leis? Não podemos dar-nos a este luxo.
A greve dos médicos foi também atacada não porque os médicos não estivessem socialmente do lado das classes certas, mas porque é uma greve e feita contra o governo. Inadmissível haver uma greve com sucesso, um mau exemplo para todos nesta altura. Ainda por cima acompanhada por um comício, parecido com a CGTP! Inaceitável. Perturbador da paz social, subversivo.
Depois há a raiva de baixo, aquela que neste momento de subserviência comunicacional ao poder, é sujeita a um anátema absoluto. A raiva de baixo ainda só aparece quando se soltam as línguas e quando quem fala não tem medo. Sim, porque há muito medo, demasiado medo. Mas o medo é um alimento da raiva. Poderoso. Vamos num péssimo caminho. Mas tout va bien. É só uma canção.
O hino dos nossos dias devia ser esta velha canção
francesa de Ray Ventura. Primeiro a
marquesa telefona ao mordomo inglês James a perguntar por notícias.
Quelles nouvelles ?
(…)
Que trouverai-je à mon retour ?
James responde :
Tout
va très bien, Madame la Marquise,
Tout
va très bien, tout va très bien.
Tudo está a correr bem. Os objectivos estão a ser cumpridos.
O ajustamento está a ocorrer mais depressa do que esperado. Já há sinais de
recuperação da economia. Pela primeira vez, desde 1943, a balança comercial vai
ter um superavit. O país está a mudar para melhor. Os portugueses estão a mudar
de hábitos para melhor. Com os salários mais baixos a nossa economia é mais
competitiva. Etc., etc,
E no
entanto…
On
déplore un tout petit rien
Un incident, une bêtise,
… há uns
pequenos problemas, Madame. Uns pequenos nadas, uns incidentes de percurso,
umas asneiras sem consequências. Morreu a égua de Madame. É pena, mas é
coisa ínfima.
Mais,
à part ça, Madame la Marquise
Tout
va très bien, tout va très bien.
O desemprego tem sido uma “surpresa”. A quebra do consumo
interno foi maior do que a “esperada”. Falências e insolvências de empresas e
família são aos milhares. O sistema de segurança social está sob tensão. Mas
isso é o preço a pagar pelo “ajustamento”. Ah! Já me esquecia, o défice tem um
“desvio colossal”, antes mesmo da decisão do Tribunal Constitucional.
Mas por que é que isso aconteceu? Como morreu a minha estimada égua, meu
exemplar criado? Bom, Madame, um pequeno incêndio na estrebaria. Na verdade,
a estrebaria pegou fogo porque o castelo também ardeu, porque o Marquês, cheio
de dívidas, suicidou-se, caiu em cima dumas velas e lá se foi o castelo.
Eh
bien ! Voila, Madame la Marquise,
Apprenant
qu'il était ruiné,
A
pein' fut-il rev'nu de sa surprise
Que
M'sieur l'Marquis s'est suicidé,
Et
c'est en ramassant la pell'
Qu'il
renversa tout's les chandelles,
Mettant
le feu à tout l'château
Qui
s'consuma de bas en haut ;
Le
vent soufflant sur l'incendie,
Le propagea
sur l'écurie,
Et
c'est ainsi qu'en un moment
On
vit périr votre jument !
Mas,
Cela
n'est rien, Madame la Marquise
À
part ça, Madame la Marquise,
Tout
va très bien, tout va très bien.
Estamos em 1935, a três
anos de Munique, a quatro da segunda grande guerra. Presumo que Madame la
Marquise apoiou vivamente Pétain, James voltou a Inglaterra e combateu em
Dunquerque, e o castelo, ou o que sobra dele, foi vendido a uma empresa
americana de real estate que prepara
moradias de luxo para os príncipes árabes. Tout
va bien. É só uma canção.
The times are nightfall, look, their light grows less;
The times are winter, watch, a world undone:
They waste, they wither worse; they as they run
Or bring more or more blazon man's distress.
And I not help. Nor word now of success:
All is from wreck, here, there, to rescue one—
Work which to see scarce so much as begun
Makes welcome death, does dear forgetfulness.
Or what is else? There is your world within.
There rid the dragons, root out there the sin.
Your will is law in that small commonweal...
O VALOR ACADÉMICO DA EXPERIÊNCIA POLÍTICA SEGUNDO A UNIVERSIDADE LUSÓFONA
(Versão integral, contendo partes cortadas, por razões de espaço, no jornal. A azul os acrescentos.)
Traduzir
a "experiência da vida" em qualificações académicas é uma tarefa
difícil, mas com sentido. Sou defensor que tal seja uma prática institucional
no ensino universitário, onde a ideia de "saber" tem que ir muito para
além dos graus académicos formais. No entanto, como infelizmente se
passa quase sempre com ideias com mérito, existe uma capacidade para as
transformar em mais um pretexto para a troca de cumplicidades,
que degrada o ensino universitário e estende o campo da corrupção, do
clientelismo e do patrocinato à atribuição de "equivalências" académicas
como favores políticos. Não é ilegal, parece, mas é inaceitável.
Os
documentos apresentados aos jornalistas pela Lusófona foram
cuidadosamente organizados pela universidade, colocados fora do
contexto, após um hiato de vários dias em que a sua consulta não foi
permitida, não se sabe porquê. Quando vieram a público, uma série de
fotocópias estendidas numa mesa, separadas por tema, os jornalistas
tiveram meia hora para as consultar sem haver possibilidade de as
reproduzir, controlados por funcionários da universidade.
O
Parecer que justifica as "equivalências" é talvez o mais significativo
documento que se conhece sobre o "caso". Este é um documento sobre o
qual gostaria de saber muito mais, em particular sobre a sua tramitação
em 2006 dentro da universidade: em que actas se encontra, como foi
enviado aos outros membros do Conselho Científico, como foi discutido,
está anexado a quê, apenso a que documentos, ao livro de actas, ou está
isolado numa pasta? Ora também aqui, como aconteceu no processo
Sócrates, quando se tentava esclarecer uma matéria, um documento, uma
omissão, apareciam logo novas questões, novos documentos, novas omissões
e, acima de tudo, imensas contradições. O aspecto original dos documentos foi uma das coisas que mais embaraçou Sócrates.
O Parecer de
equivalências é por si só um documento muito interessante, não só porque
é feito à medida do aluno muito especial, mas também pelo que revela de
uma certa maneira de pensar a política. O seu conteúdo é danoso para a
Universidade Lusófona e compreende-se a preocupação dos seus alunos e
professores de se porem a milhas deste processo. Mas é também um
documento sobre o Portugal dos nossos dias.
Começa porque os
saberes que o documento refere são todos vivenciais e não será difícil a
todos os deputados da Assembleia, todos os dirigentes da JSD e JS, os
funcionários dos grupos parlamentares, os presidentes de secções,
distritais, federações, organismos regionais, seja lá o que forem, ou
seja todo o pessoal com experiência de cargos partidários, de Monção a
Vila Real de Santo António, que não tenha um grau académico, obter uma
licenciatura na Universidade Lusófona e usar o "dr." antes do nome. É
que os argumentos para dar o título a Relvas aplicam-se a todos eles e a
muitos deles com mais mérito e razão.
Por exemplo, se Jerónimo
de Sousa quisesse ser "doutor da mula ruça", como coloridamente se
referiu ao título de Relvas, teria o curso de imediato. Não tem ele
experiência do "exercício de cargos públicos, o exercício de funções
políticas e o desempenho de funções em domínios empresariais, ou de
intervenção social e cultural"? Militante e funcionário do PCP,
dirigente sindical, autarca (tudo "exercício de cargos públicos, o
exercício de funções políticas"), organizador tanto de greves como de
festas como a do Avante! ("desempenho de funções em domínios
empresariais, ou de intervenção social e cultural"), não encaixa nos
critérios da Lusófona? Não tem ele "experiência (...) que se estende ao
longo de mais de duas décadas de actividades essencialmente focadas no
domínio da política nacional e local"? Até mais do que duas décadas, o
que devia dar um doutoramento. Não tem ele "desde muito jovem uma
participação activa nos mais relevantes palcos do debate e da discussão
política nacional, nomeadamente enquanto deputado à Assembleia da
República"? Não tem ele por essa experiência "a aquisição de
competências relevantes na área de (...) Ciência Política e Relações
Internacionais, nomeadamente aquelas que dizem respeito à compreensão
dos quadros institucionais da actuação política e partidária em
Portugal, (...) ao funcionamento dos sistemas eleitorais, (...) métodos e
técnicas de análise política e (...) consequências sociais do fenómeno
político"? Se tem! Até se podem acrescentar várias "universidades da
vida" muito complicadas: fez a Guerra Colonial, trabalhou numa fábrica,
estudou ao mesmo tempo que trabalhava, militou num partido "duro", em
que os riscos sociais de exclusão são muito mais pesados do que no PS e
no PSD depois de 1975.
Mas Jerónimo de Sousa nunca pediria
equivalências académicas pela sua vida, até porque entenderia que isso a
diminuiria no seu valor de esforço, ou naquilo a que chamaria "de
luta". E não tenho dúvidas de que Jerónimo de Sousa, que é em grande
parte um autodidacta, gostaria de ter tido mais qualificações
académicas. Como muita gente que não pode estudar para além do ensino
básico e profissional (também ele "frequentou" o antigo Curso
Industrial, que interrompeu para ir trabalhar), com a sua condição
social, valoriza o estudo, o conhecimento, e a escolaridade.
Foi
para responder a esta valorização da escola, para muitos que dela foram
afastados pela "vida", que, numa fase inicial, as Novas Oportunidades se
dirigiam, com grande mérito e resultados importantes ao nível do 9.º
ano. Depois, Sócrates estragou-as ao transformá-las num programa de
bandeira, obcecado por estatísticas marteladas e produzindo diplomas
administrativos. Mas só quem não viu como gente que nunca mais tinha
imaginado voltar à escola o fez, mesmo quando tinham "apenas" que fazer a
história da sua própria vida, em cadernos cuidados e ingenuamente
decorados, com uma escrita esforçada, pode desvalorizar essa
experiência. O diploma do 9.º ano não servia para quase nada, mas voltar
à escola deu brevemente a muitos portugueses um sentido de vida e
dignidade que pensavam perdido para sempre.
Mas este não é o
mundo da Universidade Lusófona nem de Relvas, que desprezam os seus
pares por não serem espertos como eles são. Hoje dir-se-ia
"empreendedores". Por isso, a Universidade Lusófona atribuiria estas
"equivalências" com mais rapidez e sensação de "normalidade" - o que é o
maior absurdo neste caso é esta "normalidade" - a um jovem lobo em
ascensão numa juventude partidária e num partido do poder, do que ao
velho comunista, sábio, mas bem longe de ter as relações certas que a
universidade quer cultivar com a elite no poder político em Portugal.
Porque o favor que foi feito a Relvas, que é isso que se chama ao que
aconteceu, como o favor que no passado foi feito a Sócrates, são trade offs
com o poder político, não os únicos, nem certamente os mais
importantes, mas reveladores do pântano em que se move o poder em
Portugal.
Há muita coisa pouco rigorosa no Parecer e feita à
medida do fato que se pretendia vestir a Relvas. Por exemplo esta
caracterização da militância nas juventudes partidárias e do "peso
relevante que as mesmas adquiriram no contexto da transição para a
democracia e a integração de Portugal na Comunidade Europeia está
reflectido na informação curricular apresentada". Lamento, mas não
percebo.
O papel de relevo das juventudes partidárias,
essencialmente o acesso crescente ao poder nos partidos "adultos", a
nível nacional e local, está longe de ter a ver com o "contexto da
transição para a democracia", quando muito referido a 1974-6, em que as
juventudes eram ainda muito incipientes. O seu poder começa a ser
relevante só na década de oitenta, sendo que o currículo partidário de
Relvas só começa a ter relevo no final dessa década, ou seja muito
depois do "contexto da transição para a democracia". O mesmo se pode
dizer da "integração de Portugal na Comunidade Europeia", onde também o
papel das juventudes partidárias é negligenciável, ou bastante mais
tardio.
Na verdade, "o peso relevante", como diz o Parecer, é em
grande parte resultado da progressiva sobreposição da carreira nas
juventudes com a ascensão no PS e no PSD da primeira geração de
políticos profissionais cuja carreira era essencialmente interior. E é
também nessa fase que o problema da ligação dos "jotas" com a profissão
ou a falta dela, ou com as qualificações académicas, ou a ausência
dessas qualificações, começou a ser questionado publicamente como
perverso. Ora a carreira de Relvas é completamente típica desse momento
de profissionalização dos "jotas", que adquiriam um estatuto político e
de poder, dentro dos partidos e na governação, a que não correspondiam
outras competências que não o controlo das nomeações partidárias. É o
que significava o anátema dos "jobs for the boys", ou das
carreiras ascendentes baseadas apenas no jogo de poder interno. Foi isso
mesmo, uma carreira feita apenas de lugares políticos ou de nomeação
política, que a Lusófona premiou em Relvas, à revelia da crítica social
crescente a esse modo de fazer política.
Aliás, o Parecer padece de uma espécie de abstracção cronológica bizarra, considerando valorativamente aquilo que chama “património de experiência profissional acumulado (…) cobre períodos relevantes da história de Portugal contemporâneo.” Estamos a falar grosso modo dos anos do “cavaquismo”, do “guterrismo”, do interregno de Barroso-Santana Lopes (em que Relvas chegou ao governo com um cargo típico de controlo partidário, o poder local), e depois do “socratismo”, ao todo cerca de 20 anos, de 1985 a 2006 (data atribuída ao Parecer).
Esse período é caracterizado como sendo aquele em que “a materialização de princípios teóricos relevantes no campo das ideias políticas (…) muito contribuíram (…) para a evolução da sociedade.” O que é que isto quer dizer? De novo, lamento, mas não percebo, como ainda percebo menos porque razão a “experiência acumulada no domínio político” por Relvas é valorizada por ser “temporalmente simultânea“ com este período histórico. Porque é que os anos de 1985-2006 são mais especialmente valorizados do que os de 1974-1985? Não percebo o argumento, a não ser porque são os anos politicamente activos de Relvas, ou seja o Parecer é tailor-made.
Há um embrião de resposta no Parecer, mas é pior a emenda do que o soneto. Lá se diz que este “envolvimento” “promove "a aquisição de competências transversais de compreensão do papel de diferentes classes sociais e elites na modelação da sociedade”. Não contesto que se possa aprender muito sobre as fraquezas da sociedade com um currículo como o de Relvas, mas duvido que essa aprendizagem constitua um “saber” com valor académico, sabendo-se como se sabe, o que faz um dirigente político com uma biografia como a de Relvas.
O mesmo se diga da “aquisição de competências em outra área essencial para o domínio científico (…) a do marketing político". Que a Universidade valorize aquilo que chama a “competência” de Relvas no marketing politico, também se compreende se se traduzir marketing político pela propaganda e pela experiência de se ser fonte próxima de muitos jornais e da promiscuidade com muitos jornalistas, numa troca de favores e informações que é uma das pragas actuais da política e do jornalismo. Relvas aqui é doutor, mas a Lusófona chumba.
Todo o Parecer é assim,
vago e genérico, abstracto e pouco rigoroso, justificando tudo e nada.
Podia ser resumido a duas ou três linhas: Relvas é um dos dirigentes em
ascensão no PSD, é mação da nossa "obediência", detém um poder
considerável em todos os mecanismos-chave da partidocracia, nomeações,
facilitações, intermediação, influência, etc., o PSD é um partido do
poder portanto é bom para a Lusófona, que é uma universidade privada,
"estar de bem com o poder político", ter boas relações com este tipo de
pessoas. Ponto. Bastava e era muito mais verdadeiro.
DE ONDE SAEM OS MILHARES DE VOTOS QUE ELEGEM O CEO DO ANO?
Neste caso é o Diário Económico, mas outros jornais fazem a mesma coisa: eleições através de votação electrónica em linha para escolherem o melhor ou o pior de qualquer coisa, ou, como é muito comum nas televisões, votações por telefone. Num caso e noutro estas votações não têm qualquer mérito nem significado, são mecanismos indirectos de financiamento, quer através do aumento do número de visitas e pageviews que valorizam as páginas na Internet para efeitos de publicidade ou através do valor acrescentado das chamadas telefónicas.
Mas há um efeito de manipulação da opinião pública que responsabiliza estes órgãos de comunicação, porque contribuem assim para algo que nada tem a ver com o jornalismo, e está até nos antípodas de qualquer concepção deontológica ou normativa profissional. Na área económica, muito menos escrutinada do que a política, estas votações mobilizam grandes interesses pessoais e de empresas. Estes tem os meios, o dinheiro, para manipular profissionalmente os media em todo o espectro, como se dizia num relatório através da "monitorização de e-reputação pela avaliação diária de sites, blogues, fóruns e redes sociais", e da implantação de falsos comentários e outros mecanismos “negros” para defender os interesses dos seus clientes. Isto é feito, como também revelam os documentos judiciais do processo Silva Carvalho / Ongoing, quer através de grandes agências de comunicação, quer através de empresas bizarras como a Setestrelas que aparecia a tratar das “reputações” através da manipulação das redes sociais.
Ora, eu acho completamente implausível que nos queiram convencer que muitos cidadãos saem da sua letargia habitual para irem votar às dezenas de milhares nos sites nos jornais para elegerem o melhor CEO, e que tenham, num surto inabitual de estima pelo homem que lhes aumenta a factura de electricidade, António Mexia, escolhido na primeira volta como o melhor gestor. É que o anúncio dos resultados da votação vale muito dinheiro, quase em relação inversa à “verdade” da votação que não vale mesmo nada. Ninguém controla o mecanismo da votação, que não tem qualquer fidedignidade, e que se presta a ser “trabalhado” pelas agências de comunicação. “Elas” sabem os serviços que oferecem, “eles” sabem os serviços que compram, talvez seja bom “nós” sabermos o lixo que aceitamos como sendo ouro.
Uma das razões porque penso que é errada a ideia de que o governo comete sucessivos “erros de comunicação”, é porque esta interpretação pretende esconder que se trata de erros políticos, que é o que o que eles são. Não é por não saber “explicar” as políticas, é porque as políticas estão erradas, ou não são aquilo que se anuncia, ou tem consequências mais que previsíveis que o governo não quer admitir e que depois chegam “de surpresa”, como o desemprego. Algumas são de duvidosa legalidade. De um modo geral, do anúncio virtual à realidade vai uma enorme distância.
Este receio de dar o nome às coisas é um dos aspectos menos sadios, esse sim da comunicação, dos tempos presentes, porque representa uma subserviência inaceitável a relações de força não-escritas que vem da política para a sociedade. Acresce que não é certamente por falta de profissionais de spin, assessores de comunicação e de agências de comunicações que o governo peca, já para não falar dos canais informais que mantêm com jornalistas amigos e blogues de propaganda.
OS VERDADEIROS ERROS POLÍTICOS
Veja-se o caso do último “erro de comunicação” do Primeiro-ministro em resposta à decisão do Tribunal Constitucional. Confrontado com aquilo que é de facto uma declaração de ilegalidade de uma sua decisão, pense-se o que se pensar da Constituição ou do Tribunal, o Primeiro-ministro revelou na sua resposta mais do que uma incompetência comunicacional. Revelou um irritado revanchismo social, que se pode traduzir nesta frase: “ai sim, pensam que vão escapar, nem pensem nisso, vão levar ainda com uma dose maior”. Já não é a primeira vez que transpira nas suas palavras a ideia que a austeridade é um acto punitivo contra uma população que “viveu acima das suas posses”, entendido como uma espécie de vingança moral do “ajustamento” sobre o esbanjamento. Já quanto aos funcionários públicos, as palavras de vingança são ainda mais duras, tratados como privilegiados por uma garantia de emprego, que o governo já tem dito ser para limitar ou mesmo para acabar, dependendo claro de tal passar no Tribunal Constitucional…
O problema deste tipo de resposta “ai sim, então ainda vai ser pior”, dada com mais irritação do que preocupação, é que é excepcionalmente empática, ou seja, comunica muito bem. As pessoas percebem que há ali um elemento de vingança e ainda está por descobrir uma população de ratinhos de laboratório que ache em democracia que tem culpa no presente por ter vivido um pouco melhor no passado. Desse ponto de vista, o Primeiro-ministro revelou-se um excelente comunicador, mas o que “comunicou” não lhe é de todo favorável.
The changing light
at San Francisco
is none of your East Coast light
none of your
pearly light of Paris
The light of San Francisco
is a sea light
an island light
And the light of fog
blanketing the hills
drifting in at night
through the Golden Gate
to lie on the city at dawn
And then the halcyon late mornings
after the fog burns off
and the sun paints white houses
with the sea light of Greece
with sharp clean shadows
making the town look like
it had just been painted
But the wind comes up at four o'clock
sweeping the hills
And then the veil of light of early evening
And then another scrim
when the new night fog
floats in
And in that vale of light
the city drifts
anchorless upon the ocean
E SE O MEMORANDO DA TROIKA FOR IMPOSSÍVEL DE CUMPRIR?
E se
o memorando da troika for impossível de cumprir? Ou dito de outra
maneira: e se o memorando da troika for impossível de cumprir, faça o
Governo que fizer? Ou dito de outra maneira ainda: e se o memorando da
troika estiver mal feito, se as suas metas forem irrealistas e por isso
ele seja impossível de cumprir? Ou dito ainda de outra maneira: e se o
memorando da troika tivesse sido feito, mesmo que no fio da navalha,
para uma conjuntura nacional e internacional, que um ano depois não
existe? Reparem que não digo apenas conjuntura internacional, mas também
nacional, porque esta também conta e muito.
Podíamos continuar a
formular a mesma pergunta de várias maneiras, todas elas com o mesmo
sentido: o memorando é incumprível e não depende do voluntarismo do
Governo português. É como se o memorando estipulasse que o Governo
português teria que se mover ao dobro da velocidade da luz e a física
que nós conhecemos diz que isso é impossível. Claro que há a magia, mas a
magia não é argumento para este caso. Os milagres também não.
Quem escreve isto, sempre defendeu e defende, notem defende, o cumprimento do memorando da troika,
como condição básica para qualquer negociação futura. Estou por isso
com o Governo na necessidade de cumprir aquilo que é o cerne do
memorando, as metas do défice, sem nenhum "mas". Se tiver mais tempo,
não deve ser porque o peça, mas porque lho dão. Se tiver um novo valor
do défice, é porque lhe permitem, não porque seja um facto consumado, a
que a troika se curva, com mais ou menos boa vontade para manter a face, a sua e a do governo.
E
digo isto porque há aqui um desses problemas intangíveis e imateriais de
confiança entre partes, entre quem empresta e quem recebe, e esse tem
sido o principal adquirido do Governo. Discordo que pouco o use, mas
mais vale tê-lo do que não tê-lo. E se calhar só o tem porque não o usa.
Concedo e percebo. Posso inclusive dar um benefício de dúvida àquilo
que me parecem ser políticas erradas, suspendendo um juízo muito
negativo, em nome do resultado principal: cumprir o défice. Estou longe
de considerar que o caminho escolhido seja o melhor, mas neste momento é
o resultado que conta antes de tudo o resto. Eu percebo o "custe que
custar", embora ache muito arrogante dizê-lo na cara de quem não tem culpa nenhuma no
que está a acontecer, ou seja quase todos os portugueses. Não gosto de os ver
assim tratados como expendables.
Agora há uma coisa que
não se pode aceitar porque é o pilar básico de toda a legitimidade
governativa, é que não se cumpra o défice. Ponho de parte para já a
decisão do Tribunal Constitucional, visto que o descontrolo do défice é
anterior. É que o caminho descontrolado do défice (sigo aqui a muito
conservadora UTAO, tão elogiada quando criticava, e com razão, a
execução orçamental do Governo Sócrates) obriga-nos a recolocar duas
questões, ambas muito gravosas para a legitimidade do Governo, e, por
tabela, do memorando da troika. A primeira é que o Governo pode
ter seguido políticas erradas para garantir o cumprimento do défice; a
segunda é que os pressupostos do memorando da troika são
impossíveis de cumprir. As duas coisas podem acontecer ao mesmo tempo, e
não têm necessariamente que ser consequência uma da outra. O programa
da troika pode ser cumprível e é o Governo que o está a aplicar
de forma errada, ou ele pode não ser cumprível e o Governo, que com ele
se identificou completamente, partilha responsabilidades no erro
inicial.
A partir do momento em que Passos Coelho se apropriou do memorando da troika
para o "seu" programa do PSD, e o interpretou como tendo uma profunda
comunidade ideológica com as suas próprias ideias, a responsabilidade é sua. Não precisava de o ter dito, mas quis dizê-lo. Acresce que no plano
internacional se tem apresentado como o seu principal defensor depois
dos alemães. Assim quer seja ele que está a fazer asneira, quer seja o
programa da troika que seja a asneira, ou as duas coisas, a
responsabilidade é sua.
Sócrates é o grande responsável por ter
conduzido o país à bancarrota, e Passos Coelho pode vir a ser o grande
responsável de, no afã de querer prosseguir um programa próprio de
"revolução", deixar o país pior do que o que estava. Não coloco as duas
responsabilidades com o mesmo peso nos pratos da balança porque acho que
Sócrates tem a principal responsabilidade em tudo o que aconteceu e
condiciona tudo o que está a acontecer. Mas hoje é Passos Coelho que
está no poder, logo é a sua política que tem sentido criticar. Viver
permanentemente na parada e resposta da culpa, muito típica do debate
parlamentar, não leva a parte nenhuma, mas quem manda hoje é Passos
Coelho, Vítor Gaspar e Miguel Relvas, não necessariamente por esta
ordem. E sobre eles a troika e sobre a troika o Governo alemão.
Voltemos
ao início, que formulo hipoteticamente sob a forma de pergunta, mas não
é uma pergunta retórica. Cada vez mais suspeito de que a receita da troika
é pelo menos muito pouco realista, a começar pelo seu objectivo
fundamental que é garantir o controlo do défice. Mas, se somar o
memorando da troika com o chamado tratado orçamental, então não
tenho dúvida nenhuma em dizer que é impossível de cumprir, cá e em quase
todos os países europeus. Aliás, é só esperar algum tempo para se ver
que não sobrará ninguém para garantir que ele seja cumprido.
Aqui
não faço perguntas, afirmo pura e simplesmente, que o açaime sobre os
orçamentos dos programas de resgate mais o tratado significam para
Portugal um longa e medíocre arrastamento pela depauperação, sem
qualquer capacidade de controlar quer o défice, quer a dívida nos
valores previstos. Não é preciso ser sequer um medíocre economista para o
dizer, porque o que estamos a ver no último ano mostra à evidência que
vai ser assim. É uma questão apenas de puro bom senso.
O que é
que falhou já, mesmo que no limite se consiga em 2012 controlar o
défice, sendo que em 2013, então, já nos aproximamos do milagre e da
magia? Primeiro, a completa incapacidade de compreender os chamados
"efeitos perversos" de qualquer política, e por maioria de razão de uma
política "forte", de viragem, de mudança. Quando um governante diz que
está "surpreendido" com os números do desemprego, ou com a "contracção
maior do que a esperada no consumo", está exactamente a dizer que
menosprezou estes efeitos, quando eles estavam escritos na natureza da
crise que atravessamos e no tecido produtivo português, que é um e não é
outro. Quando um governante se espanta com o "ritmo" negativo das
receitas na execução orçamental, não se trata apenas de aplicar a Lei de
Laffer, que ele certamente conhece, mas de perceber o papel da economia
paralela em Portugal, e, de novo, o tecido económico e social do país.
É
que é este o país e não outro virtual. É nos cafés do Minho, nas fabriquetas de Leiria, nas pedreiras ilegais, nas plantações subsidiadas, no electricista de bairro, na empresa de construção civil familiar que contrata os vizinhos e actua num raio de dez quilómetros da casa do "patrão", na loja de informática com refugo, no restaurante à beira da estrada, no camionista que faz uns biscates, na horta de alfaces de Loures, que está o país real e não nos artigos do Financial Times, na melhor das hipóteses. Há muito mais "empreendorismo" por metro quadrado nestas actividades económicas que se pretende "ajustar", ou seja extinguir, que em toda a Universidade de Lisboa. E depois há as PPPs, a oligarquia de cima, das velhas famílias do poder, e os seus criados, a oligarquia do meio, nos partidos políticos, e um mar de corrupção, patrocinato e clientelismo, que também não é alheio ao que o país é. Quase todos os efeitos perversos se devem à ignorância da realidade nacional, mas não só.
E
o "não só" regressa como um anjo vingador. O que acaba com o "consenso
social", aliás sempre mais um mito dos poderosos do que outra coisa
qualquer, é que o tempo muda as coisas. E como o tempo se traduz em cada
vez mais gente a passar mal, cada vez mais gente a perceber que não tem
futuro, sem qualquer esperança, cada dia que passa torna tudo mais
complicado. Havia melhores condições há um ano do que há hoje, mas o
Governo resolveu não as usar.
E depois há um "não só" que se
agiganta todos os dias e seria bom que o Governo se apercebesse de que
aí é que está a "tempestade perfeita": a questão da igualdade e justiça
dos sacrifícios. E aqui o Governo tem mostrado ser submisso aos
poderosos, à EDP, aos interesses dos bancos, aos donos das PPP, à elite
de poder que circula entre a política as grandes sociedades de
advogados, as consultoras, as administrações, etc. É verdade que mesmo
esses já perderam alguma coisa, mas foram apenas beliscados, tocados ao
de leve, se compararmos com o desastre absoluto que é estar desempregado
aos 40 anos, sem qualquer esperança de voltar a ter emprego, com a
derrocada da economia familiar, da casa, do carro quando havia, dos
estudos dos filhos, de uma vida que era decente e que agora é indecente.
O Governo aparece como atacando as pessoas, rasgando os contratos com
elas, e, em contraste, como tendo um sumo respeito pelos interesses,
mesmo quando, como no caso das PPP, roçam o crime.
Nada disto está escrito no memorando da troika
assumido pelo Governo como o "seu" programa. Mas pode ser por isto que
ele é inexequível, ou pode ser por isto que o Governo o tornou
impossível de cumprir.
(Versão do Público de 7 de Julho de 2012.)
Concordo em quase tudo o que escreveu no Público, com três
ressalvas:
1º, o memorando foi essencialmente acordado com Sócrates, e
não com o PSD de Passos Coelho. Embora seja certo que este se tenha assumido
como seu campeão, muitos dos erros técnicos dos termos do memorando, do
insuficiente valor do empréstimo ao prazo demasiado curto de regularização do
défice, foram do Governo que negociou o acordo, e não de Passos
Coelho.
2º, Catroga (que com o tempo fiquei a conhecer melhor, e que
não se distingue pela verticalidade nem pela sensibilidade social) tem alguma
razão em dizer que o défice era maior do que o suposto quando da negociação. Um
dos buracos que nem até hoje foi mencionado, por exemplo, foi o do IRC de 2011 e
do “benefício fiscal” outorgado pela legislação de 2010 que aumentou de 20 para
32,5% os descontos no IRC de 2011 (cobrado agora em 2012) dos “investimentos em
I&D”. 1/4 pelo menos desse IRC seria da EDP, Banca e outras que são a base
tradicional da colecta de IRC. Obviamente Passos Coelho não contava com estes
extras, e ainda que ao assumir-se como campeão do acordo se torne responsável
pelo seu fracasso, continua a não ser dele a responsabilidade desses buracos
herdados.
3º, duvido que a recessão geral se deva principalmente à
política fiscal e ao corte de vencimentos de pensionistas e funcionários
públicos. Essa recessão deve-se sobretudo a problemas próprios da economia, e
não à acção do Governo, embora se acabem por relacionar – deve-se à falta de
crédito externo para a Banca e as empresas que se financiam directamente lá fora
(poucas), resultante de problemas próprios que são agravados pelo
desaparecimento da garantia estatal. Claro que se a falta de crédito externo
atinge assim a economia, é porque esta vivia desse crédito – da construção civil
ao consumo corrente – e esse é que é o nosso maior problema, insuperável,
talvez.
Agora que esta equipa não tem o menor nível para lidar com a
dimensão da crise nacional em que o euro nos meteu (ou mais exactamente, o modo
como lidámos com o euro), nisso concordo consigo! E como vamos sair
daqui?
José
Luís Pinto de Sá
*
A nível global o grande erro do acordo da troika foi querer fazer
em 3 anos aquilo que forçosamente tinha que demorar mais tempo. E a
questão essencial era a contradição entre o re-equilibrio das contas
externas do país e o re-equilibrio das contas do estado. Por motivos
vários o estado lusitano tem a suas principais fontes de receitas no IRS
sobre o trabalho dependente e nos impostos sobre o consumo, quer o
genérico IVA quer os impostos especiais como o ISV (automóveis) e o ISP
(derivados do petróleo). Assim para equilibrar as contas externas é
necessário travar o consumo que tem uma forte componente importada. No
entanto essa travagem gera a quebra de receitas a que estamos a assistir
pondo em causa o equilíbrio das contas do estado pelo lado da receita.
Com quebras superiores a 40% no mercado automóvel e de 8% no consumo dos
combustíveis entre outras quebras de consumo o resultado é o que se vê.
Acrescente-se o desemprego e a redução de rendimentos variáveis do
trabalho (comissões, bonus, prémios etc dependentes da performance de
cada trabalhador e do resultado da repectiva empresa) gerados numa
economia demasiado virada para o consumo publico e privado interno e
temos as receitas de IRS em quebra (nesta quebra se incluindo a inerente
à redução de rendimentos dos funcionários públicos e reformados devido
ao corte de 14% do seu rendimento anual) a ajudar à festa.
A pergunta que se impõe é: será que nem os negociadores da troika nem do lado luso conseguiram ver isto? Não acredito. Houve
vontade política de fazer assim. Talvez p/ apressar privatizações e
outros negócios. Talvez p/ a agradar aos castigadores teutónicos dos
pecados do club med. Não era preciso grande sapiência económica e
financeira para prever aquilo que escrevi acima e que está a acontecer. E
a questão é que este fazer à pressa (cá, na Grécia, Irlanda, Itália,
Espanha) está a ter consequências em toda Europa como os despedimentos
na PSA mostram (acresce que o mesmo deverá ocorrer na Opel e que algumas
fábricas de automóveis de outros construtores na Alemanhã estão a
reduzir turnos e fazer dias de paragem por causa da quebra do mercado no
sun belt / club med). Entre o mercado automóvel em 2007 e as previsões
para a totalidade de 2012 (com o 1º semestre já decorrido) só na
Península Ibérica deverão vender-se menos 1.000.000 de automóveis no ano
corrente. O equivalente a 7 Auto-Europas! Quanto (des)emprego está em
causa?
Cada vez mais fica evidente que “depressa e bem não há quem” o faça. E
isto põe em causa a receita da troika, pois como refere o grande
objectivo de redução do deficit publico, em cujo altar se sagrifcam
direitos sociais, empregos, serviços de saúde de reconhecida qualidade e
resultados (ex: MAC), nível de vida geral do país, etc não está a ser
atinigido
A decisão do TC só peca por tardia. Nove meses para avaliar algo
mais que publico e aprovado na AR mostra mais 1 vez a extrema lentidão
da nossa justiça. Era obvio que aquilo era discriminativo. E foi feito
assim p/ o governo ter 1 almofada para a quebra da receita. Tirando tudo
a alguns (100% de 2 subs aos funcionários público e reformados) ficava
espaço financeiro e moral para tirar algo aos restantes (trabalhadores
privados) se alguma coisa corresse mal como era mais do que previsível.
Sempre estive convicto (e continuo) desde a aprovação do OE 2012 que
este ano 50% (ou mais...) do meu Subs. Natal vai ter o mesmo destino do
ano passado. O isso trará mais quebra de consumo, logo menos IVA, ISP,
etc. E o círculo vicioso continua. Se todos forem taxados a 50% nos 2
Subs. em 2013 o círculo vicioso continuará...
Até porque o mito que os 2 susbs retirados a
funcionários público e reformados representam 2 mil milhões de EUR a
menos no deficit é falso. Representam de facto essa verba a menos na
despesa. Mas há quem se "esqueça" que estes rendimentos também pagavam e
voltarão a pagar em 2013 IRS e que o consumo que eles geravam e
voltorão a gerar em 2013 também paga IVA, ISV, ISP, etc. Será que o
ultra-competente Vitor Gaspar não previu isto? Por exemplo: Na quebra de
6,6% de venda de combutíveis da GALP e de 8% na receita de ISP qual é o
contributo dos funcionários públicos e reformados que reduziram as suas
deslocações por perda de 14% dos seus rendimentos anuais? Numa
estimativa rápida será fácil de concluir que entre IRS, IVA, ISP, etc
40% do que estado poupa na despesas destes 2 subs perde na receita
fiscal. Portanto o impacto líquido no deficit da decisão do TC será de
quanto muito 1,2 mil milhões de EUR. Menos de 1/3 do que custou o BPN.
E usando o BPN como medida, há 4 mil milhões de EUR
para cobrir o risco sistémico do BPN e não há 3 mil milhões de EUR para
pagar a divida do SNS? Não há risco sistémico se o SNS falir? Francisco
George que é ouvido nos media sempre que há riscos epidémicos ainda não
foi ouvido sobre este risco sistémico, mas não será dificil imaginar o
que ele diria.
Voltando a assuntos mais estratégicos, é evidente que a
correcção da crise causada pelo capital (é sempre tempo de voltar a
Marx (Karl, que o tempo não está para Gourcho) e sua dicotomia capital /
trabalho, embora estejamos a falar do capital financeiro e não do
capital como (detentor dos) meios de produção de Marx) está a ser
resolvida muito mais às custas do sacrifício do trabalho (dos
rendimentos directos aos direitos e benefícios sociais) do que do
capital que continua a jogar e ter grandes rendimentos no casino das
bolsas. Enquanto a economia de produção definha.
Uma das soluções vedadas na zona Euro nesta crise é emitir dinheiro e
fazer o chamado “financiamento monetário” das dívidas publicas.
Resultado: para a Banca se aguentar o BCE empresta-lhe (emite massa
monetária) a juros baixos (75 pontos base) desde que haja os colaterais
aceites pelo BCE. O que faz a banca. Em vez de financiar a economia de
produção a banca pega no capital que tem empresta a juros baixos ou até
negativos à Alemanha para a seguir pegar nesse colaterais e obter
empréstimos no BCE (emissão de massa monetária) a 75 pontos base para
depois comprar e/ou continuar a deter dívida Italiana, Espanhola,
Portuguesa ou outra com juros de 5%, 6%, 8% e por aí acima. Na prática
há “financiamento monetário” dos déficits e dividas publicas mas só
alguns ganham fortunas com isso e a economia produtiva não tem crédito.
Isto enquanto os americanos e ingleses emitem moeda para manter as
respectivas economias em pé.
Enquanto não houver coragem p/ se tomar as medidas necessárias p/
resolver o problema financeiro europeu pela via financeira e monetária e
não destruindo a estrutura produtiva existente (que tem poucas falhas
como se vê no caso do estrondoso crescimento das exportações Lusas),
quer pela via do capital (falta de crédito absorvido pelas especulações
bolsistas), quer do trabalho (esmagamento de salários e consequente fuga
dos melhores para outras paragens em franco crescimento... por
enquanto) continuaremos a ver apenas uma ilusória luz no fundo do tunel,
mas este não terá fim.
Eu detesto diminutivos, uma praga portuguesa. Desde a “continha” ao “cafezinho”, parece haver um gosto em traduzir na linguagem uma pequenez ontológica qualquer, na qual, pelos vistos, muitos portugueses se reconhecem. A excepção é o futebol em que se sonha sempre em grande, em melhor da Europa, quiçá do mundo. Aí não se usam diminutivos, é só peito cheio como os descobridores no monumento de Belém. Talvez porque, durante meses, isso nos permite pensar poucochinho. Em casa em que não há pão, o circo é sempre útil.
COISAS DA SÁBADO: CONFUNDIR DESEJOS COM REALIDADES
Não vai ser preciso muito tempo para se perceber até que ponto na última cimeira europeia se estão a confundir desejos com realidades. Começa porque o que disseram os que nela estiveram presentes não teve versões coincidentes. Depois porque as declarações públicas destinavam-se a servir quer para aliviar a pressão dos mercados, objectivo de todos com mais ou menos zelo, quer ao consumo interno, principalmente em Espanha. Depois houve alguma coisa para servir de consumo aos desejos dos europeístas, que, como tem muito boa imprensa, conseguem facilmente com a varinha mágica do desejo transformar migalhas em rochedos. Mas como são migalhas é só esperar para se ver que não são rochedos. A verdade é que, com excepção de algumas medidas pontuais, débeis e por financiar, todo o edifício de Merkel continua intacto, com algumas obséquias retóricas a Hollande e algumas cedências mais à dimensão do problema espanhol e italiano do que a Monti e Rajoy. Nem vale a pena escrever muito mais, é só esperar até à próxima cimeira “decisiva”.
(Escrito a 3 de Julho. Não foram precisos oito dias para se perceber as ilusões, mas ninguém que as divulgou a quente responde por elas a frio...)
COISAS DA SÁBADO: CAMARATE ESTÁ A TORNAR-SE ESTRANHO
A decisão da Assembleia da República de criar mais uma Comissão para o chamado “caso de Camarate”, é uma das raras sobrevivências no PSD do “sá carneirismo”, permitida por uma direcção que nada tem de “sá carneirista”, mas que considera que, como tudo que dali venha é inócuo para o actual poder, não há mal nenhum em haver outra distracção das dificuldades do presente. Para a geração do PSD que assistiu à queda do avião a defesa da tese do atentado funciona quase como um atestado de legitimação política, que separava os “bons” e os “maus”, os fiéis e os traidores, e isso marcou o partido como uma das suas tradições não escritas, mais sólidas. A actual geração de dirigentes não quer saber das tradições para nada, mas recebeu-a dos sectores mais antigos do partido, que já quase não existem nas secções, mas que deixaram as suas marcas nas paredes, nas lápides, nos bustos, que ornamentam as sedes que não foram modernizadas por decoradores.
O grande factor que turva as águas de qualquer inquérito a Camarate é que é óbvio que houve grossa incúria na sua investigação policial, quando tudo estava ainda quente e que se percebe que essa incúria foi politicamente motivada e protegida pela vontade de impedir qualquer dúvida sobre se estávamos perante um atentado. A tese do atentado foi recusada por razões políticas de imediato, pelo receio das perturbações que geraria num momento muito complicado da vida política nacional. A partir daí as suspeitas de que isto foi feito com dolo para encobrir uma conspiração, geraram, como é obvio, uma série de teses igualmente conspirativas e daqui não se consegue sair.
Porém há um dado novo, a que a comunicação social tem dado pouca atenção: é que recentemente começaram a circular na Internet, documentos escritos e “confissões” de responsabilidade de alguns suspeitos do “crime” e não só, cujas “confissões” seriam agora feitas porque já não há medo de haver consequências legais devido á prescrição dos processos. Marcelo Rebelo de Sousa usou esse argumento para justificar a reabertura de mais uma Comissão de inquérito.
Ora aqui entramos num terreno muito pantanoso, porque pelo menos um documento “confessional”, que circula na Internet atribui aos serviços secretos americanos um papel decisivo no “crime”, é uma fabricação, mas uma fabricação com marca profissional, ou seja feita também muito provavelmente por uma qualquer pessoa ou serviço que teve acesso a informações, agendas, e pormenores que lhe permitiu montar um texto que impressiona o vulgo pelos seus detalhes. Ou seja, o caso Camarate ainda está vivo, na guerra entre serviços secretos, e é nesse vespeiro que a Assembleia vai entrar, sem meios, sem informações e sem capacidade de separar as águas. Movendo-se por um desejo de encontrar um “crime”, para que novas “provas” lhe serão certamente fornecidas, encontrá-lo-á. Camarate está a tornar-se estranho, mas já é outro Camarate.