ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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30.12.07
A CULTURA DE BLOGUE NACIONAL Os blogues, a blogosfera, são um facto cultural novo nos últimos cinco anos. Não abunda assim tanto a novidade no domínio lato da cultura, para que possa passar despercebida, ou melhor, notada mas não percebida, ou erradamente percebida. Muita coisa nos blogues vem em continuidade do passado, existia noutros meios e sob outras formas, mas mesmo a que apenas fez a transmutação dos media clássicos para os blogues como media mudou também com o meio. Mudou e continua a mudar. Existe por isso uma nova "cultura de blogue", com traços comuns com idênticas culturas da Rede urbi et orbi, mas também com traços nacionais próprios. Não é por se usar a mesma ferramenta de software que os americanos, brasileiros, japoneses e chineses que deixamos de ser portugueses, de levar para lá o nosso mundo exterior. Não somos ricos na Rede se somos pobres cá fora, não somos sofisticados em linha, se somos trogloditas cá fora, não sabemos mais e pensamos melhor nas páginas do Blogger do que pensamos cá fora, nos cafés de província, ou no Bairro Alto ou no Lux ou nas páginas dos jornais, não se é cosmopolita lá dentro se se é provinciano cá fora, não se é subserviente cá fora e independente no ecrã diante do computador, não se é burro cá fora e inteligente lá dentro. Sobre a "cultura de blogue" estas notas: 1, 2, 3, 4, 5, 6 , METABLOGUISMO - SINAIS DE CRISE, e a critica ao livro de Andrew Keen.O que se passa é que esse verdadeiro mostruário em linha, feito de mil egos à solta, revela mesmo a nossa pobreza, a nossa rudeza, a falta de independência face aos poderosos, grandes, pequenos e médios, os péssimos hábitos de pensar a falta de estudos e trabalho, de leitura e de "mundo", que caracterizam o nosso "Portugalinho". Nem podia ser de outra maneira. Com a diferença que nos blogues o retrato é mais brutal porque mais arrogante e mais solto, ou pelo anonimato, ou pela completa falta de noção de si próprio de quem, por poder escrever sem edição para os milhões de leitores potenciais da Rede, acha que é crítico de cinema instantâneo, engraçadista brilhante, analista político, escritor genial de aforismos, herói único da denúncia dos males do mundo, e portador de todas as soluções que só não são aplicadas porque os outros, a começar pelo blogue do lado e a acabar no fim do mundo, são todos corruptos, vendidos e tristes. Como os blogues são viveiros de elogios mútuos e de complacência, estes traços alastram como um vírus e tornam-se comunitários, definidores do meio. Mas, até porque nos dá um retrato único da mesquinhez da vida intelectual e cultural nacional, o lado do não dito, do não enunciado no Jornal de Letras, no Ipsilon, nas notícias culturais do Diário de Notícias e no contínuo que vai das novas colunas sociais disfarçadas de sociologia do presente e no jornalismo light até às revistas do jetset, a blogosfera é interessante e única. Eça, se fosse hoje, poderia escrever sobre os blogues o que escreveu sobre os jornais: "A tua ideia de fundar um jornal é daninha e execrável. (...) tu vais concorrer para que no teu tempo e na tua terra se aligeirem mais os juízos ligeiros, se exacerbe mais a vaidade, e se endureça mais a intolerância. Juízos ligeiros, vaidade, intolerância - eis três negros pecados sociais que, moralmente, matam uma sociedade! (...) Foi incontestavelmente a Imprensa que, com a sua maneira superficial, leviana e atabalhoada de tudo afirmar, de tudo julgar, mais enraizou no nosso tempo o funesto hábito dos juízos ligeiros. (...) É com impressões fluidas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em política o facto mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em literatura o livro mais profundo, (...) apenas nos basta folhear aqui e além uma página (...) . Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos "Este é uma besta! Aquele é um maroto!" Para proclamar "É um génio!" ou "É um santo!" oferecemos uma resistência mais considerada (...) Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há acção individual ou colectiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda."Tudo isto é certeiro, mas, se ficássemos por aqui, não percebíamos a novidade, a mesma, aliás, que Eça defrontava com o papel crescente da imprensa. Mesmo assim, e até por isso, os blogues são coisa nova, são um fenómeno de per si. Trazem a quantidade, a lei dos grandes números, trazem as "massas". É verdade que apenas uma escassíssima minoria escreve blogues que caibam nesta categoria para além do puro confessional, e que apenas uma minoria os lê, mas nunca na história tanta gente se revela assim no espaço público, acompanhando mutações de geração e de hábitos culturais que vai no mesmo sentido de, por exemplo, a desvalorização da privacidade, do tempo lento, do silêncio, da palavra escrita em relação às imagens em movimento. E isso é uma novidade que está para ficar e evoluir. Evoluirá a partir daqui, desta logomaquia, mas evoluirá acrescentando uma nova dimensão ao retrato das diferentes sociedades e mentalidades, incluindo Portugal. Um dos rodriguinhos da escrita em Portugal é ter que sempre enunciar que há excepções. Há excepções? Claro que há, mas são mesmo excepções e não alteram a regra. A regra é esta. Eu estou a falar da regra.É ainda cedo para medir o papel dos blogues em Portugal enquanto consumo cultural e mediático, como fonte quase única de conhecimentos "dinâmicos", envolventes, para as gerações que se estão a "educar" mais fora da escola do que dentro dela. Mas há indícios, principalmente nos mais jovens, do aparecimento de uma "cultura de blogue", de uma aproximação cultural ao mundo feita de pouco mais do que a leitura de blogues e de outras páginas da Rede, que têm mecanismos de social networking como as variantes nacionais do Facebook, ou o Hi5, o Second Life, e o mecanismo de trocas de "favoritos" que vai dar ao YouTube. Em Portugal, a absorção do mundo - política nacional, internacional, produtos culturais da moda, discursos e julgamentos, escolhas de podium e de agenda - pelos blogues difere da que se poderia obter através dos media tradicionais. Para uma geração de jovens que só lê escassamente os jornais, para além dos desportivos e dos gratuitos, a "cultura de blogue" começa a deixar os seus traços próprios: redução da temática considerada "importante" ao que é discutido nos blogues, valorização do posicionamento comprometido, de "prós e contras", maior radicalismo político e opinativo, mecanismos de identidade grupais ou tribais, para além da absorção generalizada dos males que o Eça atribuía aos jornais: "juízos ligeiros, vaidade, intolerância", "impressões fluidas" e "maciças conclusões". Está longe de ser uma boa escola, mas é a escola, mais intolerante, mais a preto e branco, mais agressiva nas opiniões e menos ponderada, mas também mais democrática, no sentido em que envolve muito mais gente do que a que em qualquer altura teve sequer a veleidade de ter uma opinião, muito menos dá-la. Não é um fenómeno "mau" por si só, tem também aspectos "bons", na proporção desigual que é habitual para Portugal nestas coisas, mas caminha para ser um instrumento suplementar que reforça as duas tendências em curso nos nossos dias: a da substituição da democracia pela demagogia e a espectacularização da sociedade. A blogosfera é tão avessa à crítica como os media tradicionais, com a agravante de que o envolvimento narcísico é tão forte que, mesmo dentro de blogues colectivos, a mais pequena fractura se torna explosiva. Os blogues não gostam de ser objecto de críticas e, como é obvio, tem uma alta noção de si próprios e estão tão cheios de autocomplacência e de elogios mútuos que consideram um anátema qualquer discurso que lhes pareça exterior e que os ponha em causa, a eles e às regras do jogo que estabeleceram. Desde o início da popularização da blogosfera o chamado "metabloguismo" era considerado um desvio da genuinidade do discurso em linha, mas, sem reflexão crítica sobre o próprio meio, sobre o meio em Portugal, que introduza critérios de qualidade e exigência que os blogues são lestos a exigir a outros mas não a aplicar a si próprios, os blogues serão apenas mais uma câmara de ressonância da pobreza da nossa vida cívica. Como também tenho um blogue, deixo aos leitores o julgamento do que se me aplica do que aqui digo. (versão do Público, 29 de Dezembro de 2007) (url)
© José Pacheco Pereira
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