ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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30.11.06
IMAGENS POLITICAMENTE INCORRECTAS 8 Um malvado turco ferido assassina um enfermeiro grego que o cuidava. No Le Petit Journal, o tablóide da época, em 17 de Novembro de 1912. (url)
O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: A NECESSIDADE DA MEMÓRIA
Relembrando... «(...) o cenário de ruptura (...) da Segurança Social não se coloca de todo, e mesmo as dificuldades de financiamento (...) apenas deverão surgir em meados da década de 30 (...)» Saborosa proclamação proferida pelo actual ministro Vieira da Silva na Assembleia da República, em 11 de Julho de 2002 - como pode ser confirmado, p.ex., nesta página. - (C. Medina Ribeiro) (url) 28.11.06
(url) CAÇA E RECOLECÇÃO 2 Lá longe, há muito tempo, numa galáxia distante, Camilo escrevia assim...
(Recortes de um folhetim de Camilo de 1858, encontrados dentro de um maço de escrituras de terrenos. Clique sobre a imagem para a aumentar.) (url) (url)
LENDO
VENDO OUVINDO ÁTOMOS E BITS de 28 de Novembro de 2006 O melhor que se pode dizer da série mais recente dos Prós e Contras é verificar que alguns dos mais importantes debates sobre a nossa vida pública só aconteceram ali. Várias coisas se conjugam para os debates terem sido um sucesso: em primeiro lugar, a escolha dos interlocutores certos, seja pelos seus lugares, seja pelo seu saber, seja pela frontalidade com que exprimem a sua opinião. E depois, porque há tempo, esse bem precioso para deixar que a racionalidade, mesmo envolvida ne emotividade e no empenho, se desenvolva. Foi o caso do debate de ontem sobre o ensino superior: estando-se atento percebia-se tudo, percebia-se todo um grupo de fracturas, essencialmente políticas no sentido de envolverem políticas, que nunca antes tinham estado presentes no debate público, a começar pelo sítio onde já podiam e deviam ter sido discutidas como é o caso do Parlamento. Houve momentos decisivos, como quando Mariano Gago, numa rara intervenção emotiva, falou como nenhum ministro até hoje tinha falado da resistência da nossa universidade à inovação e competição, o seu desdém pela formação académica no estrangeiro, o seu corporativismo no favorecimento de carreiras interiores, sem avaliação e competição, o bloqueio à investigação. Para combater estes males percebe-se que Mariano Gago actua ao modo jacobino, centraliza e manda, como dava para ver pelas queixas dos reitores a propósito da forma como foram feitos os acordos com o MIT. Mas há que reconhecer que o ministro ao usar uma linguagem dura e directa foi mortífero para os seus críticos. Isso não significa que muitas das críticas feitas à actual política governamental não devam ser ouvidas com muita atenção porque elas revelam riscos reais e erros, mas foram quase sempre feitas a partir de uma posição encurralada, defensiva, de quem perante a enorme tempestade que lhe caiu em casa descobrisse que não cuidou dela como devia. Ser preciso que seja um debate televisivo a mostrar as fracturas de interesses e posições institucionais numa área central das políticas públicas, mostra o desfasamento dos partidos da oposição, em particular o PSD, do conhecimento de realidades para além do poder local, da macroeconomia, da justiça, da política institucional. Áreas inteiras da acção pública, como a cultura, a educação, a universidade, a investigação, só são entendidas pelas notícias da comunicação social e não por um conhecimento interior, permanente, atento e cuidado, o que exige que se fale com quem sabe e estude os problemas. Como seriam diferentes os debates políticos e parlamentares, sobre questões como os acordos com o MIT ou o subfinanciamento das universidades, se se soubesse mais e melhor... * Prós e Contras/Ensino Superior- sindicatos excluídos & etc. João Cunha Serra, da Fenprof/Ensino Superior escreve que "os sindicatos foram excluídos do debate dos Prós e Contras de ontem (segunda-feira), na RTP, sobre o Futuro de Ensino Superior – os reitores não representam os docentes e o Prof. Moniz Pereira apenas se representa a si próprio". Aqui fica registado. * Até agora, em vários noticiários, a RTP tem gasto bem o dinheiro de todos nós na sua cobertura da viagem do Papa à Turquia. Os seus jornalistas no local têm procurado informar-se com correcção, têm visitado os locais certos com os comentários certos, feito entrevistas elucidativas mesmo quando são entrevistas de rua, têm evitado generalizações superficiais e politizadas, em suma, um caso exemplar de utilização dos recursos públicos para fazer bom jornalismo. (url) EARLY MORNING BLOGS
916 - Mobilier scolaire L'école était charmante au temps des hannetons, Quand, par la vitre ouverte aux brises printanières, Pénétraient, nous parlant d'écoles buissonnières Et mettant la folie en nos jeunes cerveaux, Des cris d'oiseaux dans les senteurs des foins nouveaux ; Alors, pour laid qu'il fût, certes ! il savait nous plaire Notre cher mobilier si pauvrement scolaire. A grands coups de canif, travaillant au travers Du vieux bois poussiéreux et tout rongé des vers, Nous creusions en tous sens des cavernes suspectes, Où logeaient, surveillés par nous, des tas d'insectes : Le noir rhinocéros, qui porte des fardeaux, Le taupin, clown doué d'un ressort dans le dos, Le lucane sournois, mais aimable du reste, Le charançon, vêtu d'or vert, et le bupreste... J'oubliais l'hydrophile avec le gribouri. (Paul Arène) * Bom dia! (url) (url) 27.11.06
CAÇA E RECOLECÇÃO (Telegrama de Baldur von Schirach, dirigente da Juventude Hitleriana) Não é todas as semanas que, na actividade habitual de caça e recolecção se volta com presas como autógrafos de Sidónio Paes, Bernardino Machado, Rei D. Luís, Teófilo Braga, Cardeal Cerejeira, folhetins originais de Camilo, correspondência de Brito Camacho, Egas Moniz e Júlio Dantas, núcleos documentais sobre as comemorações do centenário de Alexandre Herculano, reparações da guerra de 1914-18, movimentos de leigos ligados à Igreja em Angola, manuscritos e originais relativos ao MUD, panfletos clandestinos do PCP, CGT, republicanos, FPLN, etc., etc. Este etc. é grande porque ainda não vi tudo com olhos de ver, distraído com o que já entrevi. Um núcleo documental é particularmente interessante. Oriundo de Virgílio Canas Martins (1909-1973), professor de agronomia, que esteve como bolseiro na Alemanha na segunda metade da década de trinta e que foi representante da Mocidade Portuguesa junto da Juventude Hitleriana. Numa primeira análise, não só a série de correspondência entre Canas Martins, a MP em Lisboa e a Juventude Hitleriana é uma fonte decisiva para o estudo dessas relações, como são muito interessantes alguns documentos em anexo, relacionados com o seu trabalho em instituições científicas alemãs, ligadas à genética e à biologia, na altura bem pouco pacíficas. Há semanas assim, em que a fada madrinha de quem quer salvar papéis velhos, nos coloca a mão em cima, ou a varinha, ou seja lá o que for. (url) RETRATOS DO TRABALHO EM SANTA CRUZ DE TENERIFE, ILHAS CANÁRIAS, ESPANHA Enviamos uma foto da fabulosa "Artesania", feira internacional do artesanato que abriu ontem à tarde em Santa Cruz de Tenerife. Entre os 300 representantes, escolhemos este latoeiro que, orgulhosamente, nos dizia "adoro a globalização, com ela tenho a oportunidade de promover o meu trabalho junto de Portugueses como vocês ou junto dos Ingleses que acabaram de me pagar 50 euros por peça" (António Marques) Etiquetas: trabalho - retratos (url)
LENDO
VENDO OUVINDO ÁTOMOS E BITS de 27 de Novembro de 2006 Será interessante acompanhar o nascimento, evolução (e, se se mantiver a tendência do passado, a morte por inanição) de blogues políticos que, pelos seus meios profissionais, se percebe terem financiamentos próprios cuja origem é desconhecida. É um fenómeno novo que mostra a importância crescente da blogosfera e do qual não vem nenhum mal, se existir um pouco mais de transparência. No fundo, trata-se de política pura e dura e não de qualquer actividade amadora e lúdica pelo que saber quem paga é relevante. Relevante e instrutivo. * Chega ao Natal e começa a troca de presentes na blogosfera na forma muito portuguesa do fishing for cumpliments . É um costume do "respeitinho" lá fora, é um costume do "respeitinho" cá dentro. Todos nomeiam na esperança de serem nomeados. Dá uma lei da blogosfera. * A ler os elementos sobre o "andar", para cima, para baixo, para o lado e... para a frente da blogosfera portuguesa nas sínteses cronológicas anuais da Memória Virtual. Etiquetas: blogosfera (url) EARLY MORNING BLOGS 915 - Ordem social, hierarquia e progresso The greatest length or breadth of a full grown inhabitant of Flatland may be estimated at about eleven of your inches. Twelve inches may be regarded as a maximum. Our Women are Straight Lines. Our Soldiers and Lowest Class of Workmen are Triangles with two equal sides, each about eleven inches long, and a base or third side so short (often not exceeding half an inch) that they form at their vertices a very sharp and formidable angle. Indeed when their bases are of the most degraded type (not more than the eighth part of an inch in size), they can hardly be distinguished from Straight lines or Women; so extremely pointed are their vertices. With us, as with you, these Triangles are distinguished from others by being called Isosceles; and by this name I shall refer to them in the following pages. Our Middle Class consists of Equilateral or Equal-Sided Triangles. Our Professional Men and Gentlemen are Squares (to which class I myself belong) and Five-Sided Figures or Pentagons. Next above these come the Nobility, of whom there are several degrees, beginning at Six-Sided Figures, or Hexagons, and from thence rising in the number of their sides till they receive the honourable title of Polygonal, or many-Sided. Finally when the number of the sides becomes so numerous, and the sides themselve so small, that the figure cannot be distinguished from a circle, he is included in the Circular or Priestly order; and this is the highest class of all. It is a Law of Nature with us that a male child shall have one more side than his father, so that each generation shall rise (as a rule) one step in the scale of development and nobility. Thus the son of a Square is a Pentagon; the son of a Pentagon, a Hexagon; and so on. (Edwin A. Abbott, Flatland. A romance of many dimensions ) * Bom dia! (url) 26.11.06
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LENDO
VENDO OUVINDO ÁTOMOS E BITS de 26 de Novembro de 2006 "O notário não defende os interesses de uma parte: a sua função é a de conciliar todas as partes. " diz-se no texto. Tivessem eles notários... Tanta ignorância, tanta auto-ilusão, tanta confusão, tanta mistura de coisas muito diferentes (Staline e Hitler juntos com Churchill como se todos tivessem o mesmo papel no fomentar da guerra). Será que alguém explica à Ordem dos Notários e aos seus publicitários que este anúncio é uma pedrada à história, à política, ao bom senso, e ... aos notários? Notários e gente muito próxima de notários, não faltaram nem a Hitler, nem a Churchill, nem a Staline (à moda dele). Alguns deles foram excelentes executores do aparelho de extermínio do Holocausto, ao modelo do pacífico burocrata Eichmann. O anúncio é de facto despropositado e assenta em incorrecções de vária ordem. Não só pelas razões já apontadas, mas também pelo que me parece ser uma imprecisão na definição das funções notariais. A principal função do Notário é a de conferir fé pública a documentos. Ao Notário compete ainda informar as partes do alcance legal dos documentos que outorgam. * Anteontem, no Telejornal das 20h, o correspondente da RTP1, no Porto, informou-nos: «...estamos na preia-mar». Mas logo de seguida receando, porventura, que o vulgo não percebesse terminologia tão erudita, explicou: «... ou seja: na maré-baixa». (C. Medina Ribeiro) (url) (url) EARLY MORNING BLOGS 914 - To Autumn Season of mists and mellow fruitfulness, Close bosom-friend of the maturing sun; Conspiring with him how to load and bless With fruit the vines that round the thatch-eves run To bend with apples the moss'd cottage-trees, And fill all fruit with ripeness to the core; To swell the gourd, and plump the hazel shells With a sweet kernel; to set budding more, And still more, later flowers for the bees, Until they think warm days will never cease, For summer has o'er-brimm'd their clammy cells. Who hath not seen thee oft amid thy store? Sometimes whoever seeks abroad may find Thee sitting careless on a granary floor, Thy hair soft-lifted by the winnowing wind; Or on a half-reap'd furrow sound asleep, Drowsed with the fume of poppies, while thy hook Spares the next swath and all its twined flowers: And sometimes like a gleaner thou dost keep Steady thy laden head across a brook; Or by a cider-press, with patient look, Thou watchest the last oozings, hours by hours. Where are the songs of Spring? Ay, where are they? Think not of them, thou hast thy music too,-- While barred clouds bloom the soft-dying day, And touch the stubble-plains with rosy hue; Then in a wailful choir the small gnats mourn Among the river sallows, borne aloft Or sinking as the light wind lives or dies; And full-grown lambs loud bleat from hilly bourn; Hedge-crickets sing; and now with treble soft The redbreast whistles from a garden-croft, And gathering swallows twitter in the skies. (John Keats) * Bom dia! (url) 25.11.06
CORREIO
Uma parte do correio que me foi enviado entre o dia 23 e hoje, 25, para o endereço jppereir@mail.telepac.pt perdeu-se devido não só ao micro-tamanho da caixa da Telepac como também a um comportamento errático dessa caixa (desaparição de correio apesar de haver espaço, indicações contraditórias quanto ao espaço disponível). Agradecia que me enviassem de novo as mensagens de correio desses dias, se tiverem usado essa caixa, com o endereço do gmail que está no Abrupto. As minhas desculpas mas enquanto existirem pessoas que apenas usam esse endereço antigo, o problema repete-se. (url) O LABIRINTO SOLITÁRIO DE MÁRIO SOTTOMAYOR CARDIA Em Portugal os mortos são todos bons e os vivos todos maus. A explicação é simples: tudo é escasso, os bens são escassos, logo cada vivo ocupa um lugar a mais, o lugar que poderia ser o meu. A enorme inveja social que domina a vida pública e privada em Portugal é a consequência dessa escassez. Mário Sottomayor Cardia morreu agora, mas na verdade já tinha morrido há muito tempo, porque não ocupava já o lugar de ninguém, não afrontava os vivos, logo não existia, estava esquecido. No seu funeral escasseavam os dirigentes socialistas do regime, os actuais detentores do poder, para quem Cardia era já uma sombra de uma sombra e a uma sombra não se justificava sequer o elogio habitual dos mortos. Tivesse Cardia morrido no exercício pleno de qualquer cargo, e a consternação seria maior. O morto já podia ser bom e o lugar podia ser dado ou recebido. Esquecido pelos novos-ricos do seu partido, do poder e da celebridade fátua, Cardia foi lembrado por aqueles que ainda se recordavam do seu percurso solitário na política portuguesa dos últimos 40 anos. Quem se recordava lembrava-se intensamente, como Mário Soares comovido como não é habitual; quem esquecera nunca percebera nada. Eu recordo Cardia, o finalmente enigmático e "perdido" Cardia, década após década, perguntando-me sempre sobre o sentido de uma certa forma de viver, que ninguém sabe verdadeiramente se vale a pena, mas que não sabe viver de outra maneira. Que legado deixa Cardia, ele tão típico de uma geração apanhada numa mudança que por ele e pelos seus passou, sem ser outra coisa senão retrato dessa mesma mudança? Ora, quem se mexe não fica na fotografia e Cardia mexeu-se demais para ficar registado num mundo que, sendo ainda mais rápido que qualquer fotografia não vê nada, nem os breves momentos de uma vida. Não é fácil responder sobre o legado de Cardia, porque este se enredou cada vez mais num labirinto muito pessoal, que cada vez mais o isolou e o perturbou a ele e a nós. A minha memória pessoal de Cardia começa como leitor da Seara Nova e dos seus livros da época seareira, naturalmente proibidos. Cardia fora um comunista mais que ortodoxo, numa época em que o comunismo pró-soviético em Portugal era um comunismo de reacção ao esquerdismo. Acossado, obrigado a explicar-se, perdendo os melhores quadros na universidade para os esquerdistas, começando a ter competidores na rua, na agitação e nos sectores do jovem operariado, o PCP reagia com violência e veemência. Cardia foi um dos símbolos dessa reacção mas, em pouco tempo, evoluiu para um proto-eurocomunismo e daí para um PS de facto mais eurocomunista do que socialista. Contrariando o trajecto de muitos que saíam do PCP para a extrema-esquerda, Cardia saía para a "direita", um percurso mais incomum. Neste caminho, Cardia não passava despercebido, não só pela sua coragem pessoal na prisão - tornou-se um lugar-comum falar do contraste antropomórfico da sua força com o seu corpo frágil, com uma face que fornecia todos os ingredientes de uma caricatura do pensador, os óculos maiores que a cara, a testa alta -, como pelo seu papel de intelectual de combate, polémico e agressivo. Escolhendo o seu caminho fora do consenso, condição sine qua non para as melhores carreiras na democracia portuguesa, ele sabia que entrando em polémicas se tornava "polémico", logo inconvidável para qualquer cargo de relevo. É verdade que foi ministro da Educação nos primeiros anos pós-PREC, mas quem é que queria esse cargo maldito? Com António Barreto, Cardia partilhou as paredes do ódio. Numa Festa do Avante! havia um daqueles jogos em que se atiram bolas de trapo contra o alvo, e o alvo era ele. Barreto como vampiro, Cardia como bufão, faziam parte da iconografia comunista contra quem queria acabar com o PREC onde ele estava de pedra e cal, na educação e na agricultura. Depois Cardia fez carreira como deputado socialista, assistindo com incómodo a um progressivo movimento de Soares e do PS para "meter o socialismo na gaveta". Conheci-o então melhor. Recordo-me de com Cardia ter feito uma viagem a Amarante nos anos 80 a convite de um jovem presidente da Câmara, Francisco Assis, para discutir uma questão então considerada bizarra: se devia haver televisões privadas. Eu dizia que sim, Cardia que não. No regresso, paramos em Penafiel para almoçar, um arroz fresco de tomate com outra coisa qualquer. Cardia pegou no garfo e parou a meio caminho da boca e começou a contar histórias da sua passagem pela Ministério da Educação. Uma das histórias, a de uma árvore que impedia uma passagem entre dois institutos que ninguém queria abater, e acabara por ir a Conselho de Ministros, era tão divertida, como aliás tudo o que relatava, que todos se riam. Ninguém falava, presos nas suas palavras, e Cardia contava e contava sempre com o garfo parado a meio caminho. Por deferência ninguém queria começar a comer, mas, após algum tempo, comeu-se o prato, a sobremesa, o café e Cardia mantinha o garfo suspenso. Quando acabaram as histórias, ou aquela série de histórias, o arroz estava frio, a conta já fora pedida e ninguém pensava que Cardia fosse comer. Pois comeu tudo, frio e envelhecido, sem dar por ela do tempo que passara. Cardia concentrava-se e o mundo parava à sua volta. Não havia um átomo de desinteresse no que ele dizia, podia-se ouvir horas a fio, mas o contraste entre o nosso tempo e o dele começava a parecer estranho e errado. Este desfasamento agravou-se nos anos seguintes. Na revisão constitucional de 1988, Cardia apresentou um projecto próprio com a oposição do PS. Aceitou-se que pudesse a título individual defender o seu projecto nas reuniões da Comissão para a Revisão Constitucional. Começou então um processo bizarro em que, reunião após reunião, José Magalhães por um lado e Cardia por outro tornavam o progresso impossível. Magalhães, representante solitário do PCP, fazia um daqueles tour de force de trabalho gigantesco que o caracterizavam como o workaholic da Assembleia, aguentando sózinho toda a discussão horas a fio, para bloquear a revisão. Cardia ajudava, trazendo todos os dias um papelinho minucioso e longo em que discutia tudo, cada vírgula, cada palavra, num processo infinito. Houve que deliberar procedimentos excepcionais para impedir que a revisão bloqueasse entre Magalhães e Cardia. Nos anos seguintes, Cardia foi ficando cada vez mais sózinho, num mundo muito próprio, a que não faltava coerência mas também uma implosão interior que só ele tomava por luz. Propôs-se como candidato presidencial e, em palavras que sempre tomei como um elogio, declarou que o oponente que desejava ter era eu próprio. Ele sabia o que queria discutir e ninguém estava interessado em discutir nada com ele. Afastou-se do Parlamento, de que gostava como todos os que gostam de política em democracia, e voltou à filosofia, escrevendo sobre ética. Caminhou para fora da atenção que se lhe dava, já então escassa, e foi rapidamente esquecido, como é da norma. Perguntar o que sobra é sempre cruel, porque sobra sempre pouco. Cardia ficará na história do pensamento político entre a desagregação do marxismo nos anos 60 e 70 e o modo peculiar do nosso socialismo que ele, como vinha do marxismo, queria "sem dogma". Ficará o ministro da Educação de tempos difíceis, num pequeno grupo dos "normalizadores" do PREC, sob a égide do combate político de 1975 de Mário Soares. Ficarão para os seus amigos as recordações do homem, um gesto, um acto, um escrito, uma palavra, um exemplo, uma pena, uma preocupação. Nestes tempos é o que fica. Nestes e nos outros. (url) IMAGENS POLITICAMENTE INCORRECTAS 7 (url) (url) Existe, existe, nós é que pouco queremos saber dele. No fundo não saiu o menino da mamã que esperávamos, não saiu nem o farol altermundialista que irradiasse a luz de Porto Alegre pelas bandas da Indonésia e da Micronésia, nem saiu o voluntário protectorado de Portugal, que nos redimisse de não parecer haver tanto amor pelo nosso benevolente colonialismo nem nos brasileiros, nem nos africanos, nem nos goeses e macaenses. A última esperança do Império estava em Timor e falhou. Desiludiu-nos, logo passou para o limbo do que não queremos lembrar. Até que, um dia, lá morra um português e nós desejemos intimamente que torne a ser indonésio, para não ser australiano. Até neste desejo se vê como queremos bem pouco aos povos que tocamos na história e muito aos nossos mitos grandiosos. (url) COISAS DA SÁBADO: AS TRADIÇÕES AINDA SÃO O QUE ERAM Existe na nossa história ocidental uma velha tradição de envenenar os opositores políticos. Os Bórgias passaram à história, entre outras coisas, por causa dos anéis que se abriam e despejavam veneno no copo dos anti-Bórgias. Os bizantinos, nossos antepassados cristãos gregos do oriente, tinham também essa tradição, que complementavam com o uso da cegueira para eliminar os competidores ao trono imperial ou os irmãos ambiciosos. Os guerrilheiros dos Balcãs utilizaram abundantemente essa prática de cegar os inimigos. Os russos, herdeiros dos soviéticos, herdeiros do império czarista, moldado na teocracia de Bizâncio, que ainda ostentam a águia bifronte como bandeira, também se dedicaram aos venenos. O NKVD, o seu sucessor KGB e o os serviços “democráticos” actuais, o FSB, mostram um know how venenoso bastante eficaz. O KGB búlgaro, discípulo do soviético, matou assim um opositor em Londres, com uma ponta de guarda-chuva. E o FSB já foi apanhado várias vezes com a mão na massa venenosa: o líder laranja ucraniano que ficou com a cara num bolo, os chechenos e os russos mortos no teatro de Moscovo por um gás “desconhecido” e agora um ex-FSB Litvinenko que comeu um sushi muito especial. Litvinenko sabia umas coisas, nunca se percebe até que ponto verdadeiras ou adaptadas pelos serviços ocidentais e pela necessidade de sobreviver no caro mundo do capitalismo, mas bastante incómodas para o seu ex-colega Putin. Se a Rússia fosse uma democracia, uma questão como a chechena seria tão importante para a política interna como o Iraque para os americanos. Mas não é, porque a Rússia não é uma democracia, apesar da benevolência da UE. E Litvinenko, que estava nos serviços secretos quando da ascensão de Putin, sabe de sobra como é que ele chegou ao poder. Envenena-se pois, no seguimento de uma boa tradição autocrática. NOTA: Depois de escrito este texto Litvinenko morreu, Putin explicou que isto de assassinatos políticos é o que de mais comum há na Europa, e parece que o veneno usado é suficientemente raro e sofisticado para não ser acessível aos comuns mortais... (url)
DE REGRESSO
Tudo em breve. Árvores caídas, chuva, sol, mar, palavras, sítios, folhas, fúria do ar, cheias, tudo. (url) 23.11.06
(url) 21.11.06
EARLY MORNING BLOGS
913 - Le bibliophile Ce n'était pas quelque tableau de l'école flamande, un David-Téniers, un Breughel d'Enfer, enfumé à n'y pas voir le diable. C'était un manuscrit rongé des rats par les bords, d'une écriture toute enchevêtrée, et d'une encre bleue et rouge. - " Je soupçonne l'auteur, dit le Bibliophile, d'avoir écu vers la fin du règne de Louis douze, ce roi de pater- nelle et plantureuse mémoire. " " Oui, continua-t-il d'un air grave et méditatif, oui, il aura été clerc dans la maison des sires de Chateau- vieux. " Ici, il feuilleta un énorme in-folio ayant pour titre le Nobiliaire de France, dans lequel il ne trouva mentionnés que les sires de Chateauneuf. - " N'importe ! dit-il un peu confus, Chateauneuf et Chateauvieux ne sont qu'un même château. Aussi bien il est temps de débaptiser le Pont-Neuf. " (Aloysius Bertrand, Gaspard de la nuit) * Bom dia! (url) 20.11.06
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LENDO
VENDO OUVINDO ÁTOMOS E BITS de 20 de Novembro de 2006 Uma parte importante do "conteúdo" da Rede é feita por trabalhadores dedicados e incansáveis. Eles trabalham para nós, por gosto, por entusiasmo, porque têm interesses e curiosidades muito vivas, que querem transmitir, que colocam ao serviço de todos. Duvido, - não, tenho a certeza - , que não tiram daí quase nada, nem vantagens académicas, nem vantagens materiais, e, num país distraído de tudo e demasiado entretido com ninharias, escasso prestígio intelectual, cultural e social. Mas o seu entusiasmo é compulsivo e, de local em local, de plataforma em plataforma, eles fazem o seu trabalho de amador, no verdadeiro sentido da palavra. Um exemplo é o trabalho na Rede de José Adelino Maltez com o Cosmopolis e a Biografia do Pensamento Político. (url) O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES; SÉGOLÈNE LA BELLE Há uns tempos atrás (já nem sei bem precisar) Sílvio Berlusconi desapareceu por uns tempos porque, segundo parece, fez uma intervenção estética na cara que o terá rejuvenescido uns belos anos. A comunicação social falou, escreveu, inventou anedotas, gozou, os puritanos politicamente correctos abanaram a cabeça de espanto e reprovação por mais uma ousadia de Berlusconi. Hoje eu vejo as fotografias de uma belíssima Ségolène Royal, jovem, fresca, elegante... Parece a filha de uma outra Ségolène Royal que foi Ministra do Ambiente algures no início dos anos 90. Vamos ver se a comunicação social também fala, escreve, inventa anedotas, goza, e se os puritanos politicamente correctos abanam a cabeça de espanto e reprovação pela inesperada ousadia de Ségolène. (J.) * Ségolène tem 2 vantagens na imprensa; é mulher e é de esquerda. Na política (como noutras coisas) estes 2 aspectos perdoam muita coisa. Por muitas igualdades que se apregoem o cuidar da imagem é muito mais aceite nas mulheres que nos homens (veja-se que só recentemente começou a ver-se publicidade a produtos de beleza masculinos). E isto liga-se c/ a parte política, pois atacar Seguelene por esse lado seria visto como dar importância a questões do foro feminino, que não interessam ao debate político (execepto quando se diz que as mulheres têm mais sensibilidade p/ o lado humano da política ou outras coisas no género). No caso Berlusconi trata-se de um homem, logo cuidar da imagem é esconder qualquer coisa, e sendo de direita e rico isto é visto como um luxo com fins manipulatórios. (url) EARLY MORNING BLOGS
912 - God Fashioned The Ship Of The World Carefully God fashioned the ship of the world carefully. With the infinite skill of an All-Master Made He the hull and the sails, Held He the rudder Ready for adjustment. Erect stood He, scanning His work proudly. Then—at fateful time—a wrong called, And God turned, heeding. Lo, the ship, at this opportunity, slipped slyly, Making cunning noiseless travel down the ways. So that, forever rudderless, it went upon the seas Going ridiculous voyages, Making quaint progress, Turning as with serious purpose Before stupid winds. And there were many in the sky Who laughed at this thing. (Stephen Crane) * Bom dia! (url) RETRATOS DO TRABALHO EM KONSTANZ, ALEMANHA Arqueólogos (Marcelo Correia) Etiquetas: trabalho - retratos (url)
INTENDÊNCIA
Actualizada a nota O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: TESTEMUNHOS POR DENTRO. (url) 19.11.06
RETRATOS DO TRABALHO EM AMARANTE, PORTUGAL Limpar as margens do Tâmega, em Amarante. (Gil Coelho) Etiquetas: trabalho - retratos (url) EARLY MORNING BLOGS 911- The Dover Bitch: A Criticism Of Life So there stood Matthew Arnold and this girl With the cliffs of England crumbling away behind them, And he said to her, "Try to be true to me, And I'll do the same for you, for things are bad All over, etc., etc." Well now, I knew this girl. It's true she had read Sophocles in a fairly good translation And caught that bitter allusion to the sea, But all the time he was talking she had in mind the notion of what his whiskers would feel like On the back of her neck. She told me later on That after a while she got to looking out At the lights across the channel, and really felt sad, Thinking of all the wine and enormous beds And blandishments in French and the perfumes. And then she got really angry. To have been brought All the way down from London, and then be addressed As sort of a mournful cosmic last resort Is really tough on a girl, and she was pretty. Anyway, she watched him pace the room and finger his watch-chain and seem to sweat a bit, And then she said one or two unprintable things. But you mustn't judge her by that. What I mean to say is, She's really all right. I still see her once in a while And she always treats me right. We have a drink And I give her a good time, and perhaps it's a year Before I see her again, but there she is, Running to fat, but dependable as they come, And sometimes I bring her a bottle of Nuit d'Amour. (Anthony Hecht ) * Bom dia! (url) 18.11.06
RETRATOS DO TRABALHO EM S. JULIÃO DO TOJAL - LOURES, PORTUGAL NO PASSADO (Fábrica de Papel da Abelheira, fotografias recolhidas por Luís Costa.) Etiquetas: trabalho - retratos (url) RETRATOS DO TRABALHO EM TAVIRA, PORTUGAL Montagem de uma grua em pleno Centro Histórico de Tavira para a obra de construção da Pousada da Juventude nesta cidade. Os trabalhadores estão a cerca de 40 a 50 metros de altura, com as Igrejas de Santiago e Santa Maria como pano de fundo. (Fernando Viegas) Etiquetas: trabalho - retratos (url) O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES. TESTEMUNHOS POR DENTRO Ontem, tomava eu um café com um amigo, chegaram-se a mim duas ex-alunas de 15 anos que já sairam da minha escola por terem passado para o ensino secundário. No meio da conversa, pedi-lhes que respondessem a umas perguntas minhas para que o meu amigo, que não tem nada a ver com escolas, lhes ouvisse as respostas. Afastadas de qualquer autoridade minha, uma vez que sgorsestudam noutro estabelecimento de ensino, elas prestaram-se, risonhas, falar verdade. Verdade que, claro, eu já sabia. Foi mais ou menos assim: - É verdade ou não que vocês, quando sabem que vão ter uma aula de substituição, mudam de lugares na sala? - Claro, vamos para ao pé dos mais amigos, com quem gostamos de conversar... O professor que chega não conhece a turma, não dá por nada. E sorriam, divertidas. - E depois? - Depois, quando o professor chega, pedimos para fazer jogos. - E se o professor resolver dar mesmo uma aula? - Ah!!! Isso nós NÃO DEIXAMOS!!!! - e misturavam sorrisos com um ar de determinação - Fazemos tanto estardalhaço que ele não consegue, nem que queira. - E se ele teima, se é um professor muito autoritário? - Ficamos calados a ler alguma coisa ou a jogar a batalha naval com o colega do lado. Ou a mandar SMS uns aos outros. Não ouvimos nada do que ele disser, nem repondemos a perguntas. Não queremos aulas de substituição. As conclusões, que as tire quem tem uma ideia do que isto possa ser. Imagino que muitos cheguem à conclusão de que a culpa é dos professores. Gostava que experimentassem... Margarida Ribeiro, (professora antiquada, saudosa do tempo em que o seu trabalho era dar aulas e entusiasmar-se por ver os alunos abrirem asas) * Aulas de substituição precisam de tempo a serem emplantadas num sistema que não as conhece. (url)
© José Pacheco Pereira
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