ABRUPTO

25.11.06


O LABIRINTO SOLITÁRIO DE MÁRIO SOTTOMAYOR CARDIA

Foto de Mário Augusto Sottomayor Leal Cardia Em Portugal os mortos são todos bons e os vivos todos maus. A explicação é simples: tudo é escasso, os bens são escassos, logo cada vivo ocupa um lugar a mais, o lugar que poderia ser o meu. A enorme inveja social que domina a vida pública e privada em Portugal é a consequência dessa escassez.

Mário Sottomayor Cardia morreu agora, mas na verdade já tinha morrido há muito tempo, porque não ocupava já o lugar de ninguém, não afrontava os vivos, logo não existia, estava esquecido. No seu funeral escasseavam os dirigentes socialistas do regime, os actuais detentores do poder, para quem Cardia era já uma sombra de uma sombra e a uma sombra não se justificava sequer o elogio habitual dos mortos. Tivesse Cardia morrido no exercício pleno de qualquer cargo, e a consternação seria maior. O morto já podia ser bom e o lugar podia ser dado ou recebido.

Esquecido pelos novos-ricos do seu partido, do poder e da celebridade fátua, Cardia foi lembrado por aqueles que ainda se recordavam do seu percurso solitário na política portuguesa dos últimos 40 anos. Quem se recordava lembrava-se intensamente, como Mário Soares comovido como não é habitual; quem esquecera nunca percebera nada. Eu recordo Cardia, o finalmente enigmático e "perdido" Cardia, década após década, perguntando-me sempre sobre o sentido de uma certa forma de viver, que ninguém sabe verdadeiramente se vale a pena, mas que não sabe viver de outra maneira. Que legado deixa Cardia, ele tão típico de uma geração apanhada numa mudança que por ele e pelos seus passou, sem ser outra coisa senão retrato dessa mesma mudança? Ora, quem se mexe não fica na fotografia e Cardia mexeu-se demais para ficar registado num mundo que, sendo ainda mais rápido que qualquer fotografia não vê nada, nem os breves momentos de uma vida. Não é fácil responder sobre o legado de Cardia, porque este se enredou cada vez mais num labirinto muito pessoal, que cada vez mais o isolou e o perturbou a ele e a nós.

A minha memória pessoal de Cardia começa como leitor da Seara Nova e dos seus livros da época seareira, naturalmente proibidos. Cardia fora um comunista mais que ortodoxo, numa época em que o comunismo pró-soviético em Portugal era um comunismo de reacção ao esquerdismo. Acossado, obrigado a explicar-se, perdendo os melhores quadros na universidade para os esquerdistas, começando a ter competidores na rua, na agitação e nos sectores do jovem operariado, o PCP reagia com violência e veemência. Cardia foi um dos símbolos dessa reacção mas, em pouco tempo, evoluiu para um proto-eurocomunismo e daí para um PS de facto mais eurocomunista do que socialista. Contrariando o trajecto de muitos que saíam do PCP para a extrema-esquerda, Cardia saía para a "direita", um percurso mais incomum.

Neste caminho, Cardia não passava despercebido, não só pela sua coragem pessoal na prisão - tornou-se um lugar-comum falar do contraste antropomórfico da sua força com o seu corpo frágil, com uma face que fornecia todos os ingredientes de uma caricatura do pensador, os óculos maiores que a cara, a testa alta -, como pelo seu papel de intelectual de combate, polémico e agressivo. Escolhendo o seu caminho fora do consenso, condição sine qua non para as melhores carreiras na democracia portuguesa, ele sabia que entrando em polémicas se tornava "polémico", logo inconvidável para qualquer cargo de relevo. É verdade que foi ministro da Educação nos primeiros anos pós-PREC, mas quem é que queria esse cargo maldito? Com António Barreto, Cardia partilhou as paredes do ódio. Numa Festa do Avante! havia um daqueles jogos em que se atiram bolas de trapo contra o alvo, e o alvo era ele. Barreto como vampiro, Cardia como bufão, faziam parte da iconografia comunista contra quem queria acabar com o PREC onde ele estava de pedra e cal, na educação e na agricultura.

Depois Cardia fez carreira como deputado socialista, assistindo com incómodo a um progressivo movimento de Soares e do PS para "meter o socialismo na gaveta". Conheci-o então melhor. Recordo-me de com Cardia ter feito uma viagem a Amarante nos anos 80 a convite de um jovem presidente da Câmara, Francisco Assis, para discutir uma questão então considerada bizarra: se devia haver televisões privadas. Eu dizia que sim, Cardia que não. No regresso, paramos em Penafiel para almoçar, um arroz fresco de tomate com outra coisa qualquer. Cardia pegou no garfo e parou a meio caminho da boca e começou a contar histórias da sua passagem pela Ministério da Educação. Uma das histórias, a de uma árvore que impedia uma passagem entre dois institutos que ninguém queria abater, e acabara por ir a Conselho de Ministros, era tão divertida, como aliás tudo o que relatava, que todos se riam. Ninguém falava, presos nas suas palavras, e Cardia contava e contava sempre com o garfo parado a meio caminho. Por deferência ninguém queria começar a comer, mas, após algum tempo, comeu-se o prato, a sobremesa, o café e Cardia mantinha o garfo suspenso. Quando acabaram as histórias, ou aquela série de histórias, o arroz estava frio, a conta já fora pedida e ninguém pensava que Cardia fosse comer. Pois comeu tudo, frio e envelhecido, sem dar por ela do tempo que passara. Cardia concentrava-se e o mundo parava à sua volta. Não havia um átomo de desinteresse no que ele dizia, podia-se ouvir horas a fio, mas o contraste entre o nosso tempo e o dele começava a parecer estranho e errado.

Este desfasamento agravou-se nos anos seguintes. Na revisão constitucional de 1988, Cardia apresentou um projecto próprio com a oposição do PS. Aceitou-se que pudesse a título individual defender o seu projecto nas reuniões da Comissão para a Revisão Constitucional. Começou então um processo bizarro em que, reunião após reunião, José Magalhães por um lado e Cardia por outro tornavam o progresso impossível. Magalhães, representante solitário do PCP, fazia um daqueles tour de force de trabalho gigantesco que o caracterizavam como o workaholic da Assembleia, aguentando sózinho toda a discussão horas a fio, para bloquear a revisão. Cardia ajudava, trazendo todos os dias um papelinho minucioso e longo em que discutia tudo, cada vírgula, cada palavra, num processo infinito. Houve que deliberar procedimentos excepcionais para impedir que a revisão bloqueasse entre Magalhães e Cardia.

Nos anos seguintes, Cardia foi ficando cada vez mais sózinho, num mundo muito próprio, a que não faltava coerência mas também uma implosão interior que só ele tomava por luz. Propôs-se como candidato presidencial e, em palavras que sempre tomei como um elogio, declarou que o oponente que desejava ter era eu próprio. Ele sabia o que queria discutir e ninguém estava interessado em discutir nada com ele. Afastou-se do Parlamento, de que gostava como todos os que gostam de política em democracia, e voltou à filosofia, escrevendo sobre ética. Caminhou para fora da atenção que se lhe dava, já então escassa, e foi rapidamente esquecido, como é da norma.

Perguntar o que sobra é sempre cruel, porque sobra sempre pouco. Cardia ficará na história do pensamento político entre a desagregação do marxismo nos anos 60 e 70 e o modo peculiar do nosso socialismo que ele, como vinha do marxismo, queria "sem dogma". Ficará o ministro da Educação de tempos difíceis, num pequeno grupo dos "normalizadores" do PREC, sob a égide do combate político de 1975 de Mário Soares. Ficarão para os seus amigos as recordações do homem, um gesto, um acto, um escrito, uma palavra, um exemplo, uma pena, uma preocupação. Nestes tempos é o que fica. Nestes e nos outros.

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© José Pacheco Pereira
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