ABRUPTO

29.9.14


O DIA UM DO ANO ELEITORAL 


 1. Hoje começa o ano eleitoral de 2015. O PS passou a partido de oposição. 

 2. Porque é que eu digo que o PS não tem sido um partido de oposição, mesmo apesar do radicalismo verbal do seu antigo secretário-geral? Por coisas como esta: na última semana antes das eleições primárias, houve um encontro secreto entre o secretário-geral da UGT e o primeiro-ministro. Segundo diz o oráculo governamental, Passos Coelho convenceu o secretário-geral da UGT a aceitar o acordo sobre o salário mínimo. Tudo quanto é ministro, do primeiro ao último, incluindo o ministro-viajante Paulo Portas foi lá à concertação social (que eles desprezam todos os dias, a não ser quando têm a UGT no bolso) para marcar a grande vitória do governo. As fontes do governo diziam que era fundamental haver um acordo antes do final do processo eleitoral no PS. Percebe-se porquê. O secretário-geral da UGT é um dos principais executantes da política de Seguro, de que foi um dos mais activos apoiantes, prestou-se ao timing propagandístico do governo e à substância de um acordo que fragiliza a segurança social, a mesma que o governo usa como pretexto para as suas previsões neo-malthusianas. É mais um exemplo do que aconteceu nos últimos três anos. 

 3. A história desta campanha é muito interessante de todos os pontos de vista, incluindo até, imaginem, o filosófico. Não interessará a ninguém, mas poucas vezes se viu melhor exemplo do que é o ruído do mundo e daquilo que Weber descreveu há muito: a maioria das acções de um politico tem o efeito exactamente contrário do que era pretendido. Ou dito de outra maneira: Seguro tomou várias decisões pelas piores razões do mundo e o efeito perverso dessas decisões foi positivo. Positivo para a democracia portuguesa e positivo para o PS. Que se cuide quem não quiser ver que o PS teve uma das poucas vitórias junto da opinião dos portugueses que é de índole político-partidária. Já não havia disso desde os anos de brasa da revolução. Havia vitórias e derrotas políticas, ligadas a personalidades, mas uma vitória que pudesse ser assacada a um partido enquanto tal, já não se verificava há muito tempo. A última foi uma tentativa com menor dimensão e que falhou, a “refiliação” no PSD. 

 4.Seguro teve um papel paradoxal. Fez todas as escolhas por razões estritas de sobrevivência e, porque não tinha nada a perder, e acabou por ser revolucionário malgré lui-meme. As eleições primárias foram convocadas pelas piores razões do mundo: eram um subterfúgio de Seguro para continuar na liderança do PS mais uns meses, na esperança de que qualquer crise lhe desse uma oportunidade, pressupunham uma estratégia negativa de desgaste do adversário, que o tempo longo sempre traria, e criavam uma estranha figura, a do “candidato a primeiro-ministro” em vez de ser para o líder do partido. Seguro queria tornear o facto de que, tendo blindado os estatutos para nunca cair a meio do mandato, não podia ter desafios. Enganou-se, e esse foi um engano pessoal e político: as pessoas consideram Costa melhor do que Seguro, fosse para o que fosse, de porteiro da sede a secretário-geral, e depois, não queriam correr o risco de ver o PS a perder para o PSD e o CDS. Nunca, jamais, em tempo algum. Os tempos não estavam para brincadeiras e “fidelidades”, e em tempo de guerra não se limpam armas. 

 5. As eleições primárias foram pensadas como um expediente, como aliás muitas outras propostas de Seguro, em cima do joelho. Foram mal preparadas e mal conduzidas, até que Jorge Coelho entrou em funções. Eram uma entorse estatutária, cujas complicações ainda estão por se verificar no Congresso. E tornaram-se um sucesso de mobilização depois dos debates, ou melhor, depois de se começar a perceber quem era Seguro. A frase mais certeira da campanha foi quando Costa no último debate, o mais vilipendiado pelo nosso coro de bons costumes e pelo PSD (pudera, Costa ganhou-o claramente de forma muito empática) disse que “os portugueses ficaram a conhecer-te”. Ficaram. 

 6. O acompanhamento jornalístico foi como habitual muito estereotipado, e profundamente conservador, salvo raras excepções. Sem novidade, lá vieram a “campanha sem ideias”, a “campanha de insultos”, a “luta de galos”, o “vazio de soluções para Portugal”, aquilo que de há muito tempo os media dizem de qualquer campanha política sem excepção. Ao mesmo tempo não dedicam uma linha a analisar qualquer documento programático, como fizeram com os de Costa e os de Seguro, enquanto davam título de caixa alta à mais pequena divergência dos candidatos. Sendo assim, por que razão é que esta campanha tão miserável, descrita com tanto nojo e fastio pela comunicação social, mobilizou muitos milhares de portugueses? 

 7. Eu respondo: Porque a campanha teve vida, sangue, suor e lágrimas. A campanha foi confrontacional e isso foi positivo e muito eficaz. Aliás, os aspectos mais interessantes da campanha foram esses mesmos, os momentos em que em vez de dois monos a recitar frases feitas que passam por ideias, os dois homens se atacaram um ao outro, revelando-se como personalidades políticas. Personalidades políticas é personalidade+política, e isso mobilizou as pessoas exactamente em relação inversa à beatice hipócrita com que se recusava a “campanha pessoal”. Em inglês há uma palavra para isto, “sanctimonious”. Os nossos costumes oficiais de salamaleques, uma herança maldita do salazarismo e da censura na nossa vida colectiva, considera o confronto uma baixaria indigna da pompa do estado. Deviam ir ao Reino Unido, o país com mais forte tradição parlamentar, para ver o que é dureza nos debates. Nós cá somos uns anjinhos. O problema destas campanhas, de frente a frente, é que mobilizam a empatia, a simpatia e a antipatia, e isso é melhor do que as estratégias de plástico das agências de comunicação. Revelam logo quem é medíocre e fraco, ou quem é arrogante e ignorante, ou quem é hipócrita e genuíno. São duras porque são cruéis. 

 8. António José Seguro assentou a campanha eleitoral no papel de vítima. Acredito que os poucos votos que teve, teve-os porque a vitimização não é desprovida de vantagens eleitorais. O erro de Seguro é que não se pode ter uma campanha longa a fazer de vítima porque ninguém quer uma vítima para primeiro-ministro. A uma dada altura já ninguém tem paciência e o papel de Calimero vira-se contra o pintainho. Do mesmo modo que a campanha desgastou a intangibilidade de Costa, desgastou a vitimização de Seguro. 

 9. Agora é que vai ser difícil para António Costa e não é um mero problema de expectativas. É um problema de realidades. O objectivo do PS está longe de ser conseguido: o PS sem maioria absoluta pouco conseguirá no contexto actual. A não ser que seja capaz, o que é muito difícil, de fazer um acordo à esquerda, que esse sim mudava. Ou, em alternativa, unir todo o “contra” como Costa disse na campanha, assumindo o programa da Aula Magna. Mas, para isso, tem que mostrar que compreende a dimensão da nossa tragédia e é capaz de lhe responder. António Costa tem que ser capaz de transportar a mobilização que conseguiu no PS para o país. Não é fácil, sem rupturas claras, que até hoje não quis fazer. 

 10. Mas o PSD, que amava Seguro com o “coração, como disse Marcelo Rebelo de Sousa, referindo-se a seu próprio órgão vital, dificilmente vai perceber o que lhe está a acontecer. Fica-se pela oposição a Costa, quase ao nível da oposição que fazia na autarquia de Lisboa, e não quer, porque não pode, mudar nada. Nem sequer compreendeu que as primárias do PS, em conjunto com a vitória expressiva de Costa, soam a um sino muito preocupante e que nada disto podia hoje acontecer na paz de um cemitério, com os mortos bem firmes a defender as campas, que é hoje o PSD. 

 11. A verdade, verdadinha, é que na semana em que o PS andou a fazer as tão menosprezadas eleições internas, com tantos “insultos” e vazio de ideias, o PSD andou às voltas com a Tecnoforma, os esquecimentos bizarros de Passos Coelho, e o que mais se virá a saber dessa misteriosa ONG criada para ir buscar negócios para a Tecnoforma. Alguém troca uma coisa por outra?

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27.9.14


PONTO / CONTRAPONTO
  aos domingos às 20 horas na SICN.

  Até o retorno do  caos do futebol lhe alterar mais uma vez o horário.

Tema: a "salsicha educativa".

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23.9.14


O PREÇO QUE VAMOS PAGAR 

Ah! O preço final do “novo banco”, eis a variável de que se fala pouco e que está por debaixo do tapete das decisões mais recentes, e que tem que ter o máximo escrutínio público visto que é o “nosso” dinheiro que está em causa. Não há um cêntimo no Fundo de Resolução que não seja público, quer o que o governo lá meteu, quer o que os bancos foram obrigados a pagar para a sua existência, visto que se trata de um imposto, logo é “nosso”. Ora, como também os meus leitores sabem, visto que aqui já foi escrito, “tempo” e dinheiro não coincidem. Bento queria mais tempo, para vender um banco “estabilizado”, logo mais caro. O governo parece prescindir de um valor final maior, na hipótese de tal ser conseguido num banco ferido, a favor de resolver depressa a questão, mesmo que mais barato. A questão é que se é assim, tal posição é também a de quem o queira comprar, que pode pagar menos, absorver o “novo banco” num banco que já seja bom a sério e acabar com um poderoso concorrente. Em cima da mesa, já não está o interesse em “salvar” o banco, mas o interesse em fazer um bom negócio com os seus restos. 

 E O PREÇO INVISÍVEL 

Mas não é o preço apenas a que devemos estar atento, porque, habituados a estar sempre a ser enganados, temos que olhar para a letra pequenina dos contratos. Aquela para que ninguém prestou atenção, por exemplo, na EDP antes de andar a elogiar encomiasticamente a sua privatização.

 É que o universo BES está pejado de ilegalidades, umas evidentes outras prováveis, e aqui refiro-me às que acompanharam o modo como se dividiu o “bom banco” do “mau banco”. Por exemplo, o que é que aconteceu aos bens dos Espíritos Santo e dos outros “donos”, foram nacionalizados, expropriados, confiscados ou quê? Pensam que quem ficou prejudicado com a decisão, pequeno ou grande, vai aceitar sem litigar? Pensam que Ricardo Salgado está lá num hotel de luxo a fazer o quê com os papéis? De quem é esta ou aquela parte do património do GES, o que é que se passa com Angola, como é que as decisões portuguesas se vão compatibilizar com as decisões dos tribunais luxemburgueses, ou americanos, ou do Panamá? Vai ser um maná para os advogados “de confiança”, e uma coisa eu tenho a certeza: quem comprar o “novo banco” ou o faz barato e arca com a carga da litigância, ou se o comprar mais caro, vai exigir garantias de que na volta, não o possa ou perder, ou ter que entregar algumas coisas “boas” que vieram na divisão. Quem é que pode dar essas garantias? O governo. Com que dinheiro? O nosso.

 Talvez por tudo isto se exija o maior cuidado com o que as agências de comunicação nos vão colocar no prato todos os dias, ou na benemérita imprensa económica, ou nas “informações” dos comentadores.

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BASTA TER BOM SENSO 

 Não dispondo da informação privilegiada que serve para os recados intencionais que são dados aos media, eu esforço-me por praticar o bom senso, o bem que cartesianamente está mais distribuído. E por isso, para os meus leitores, o BES e o GES nunca foram o bom e o mau, e o BES acabaria por soçobrar ao GES, como era de bom senso dizer, em vez de se papaguear a cartilha governamental. E por isso, para os meus leitores, era apenas uma questão de tempo até que a condução caótica do processo do “novo banco” desse no que deu, visto que todas as semanas aparecia um “tempo” de vida diferente, de dois anos a três meses. E por isso, os meus leitores, ficam também já prevenidos que seria bom saber como funciona o dono formal do banco, o Fundo de Resolução, até porque nele estão representados quer os competidores do “novo banco” (que não querem concorrência) e os eventuais compradores do que sobra de bom, ao preço mais baixo possível.

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TALVEZ AGORA VITOR BENTO PERCEBA COM QUEM SE METEU 

Vítor Bento tem escrito sobre o problema da ética nos negócios e na política. Por isso, é uma daquelas partidas que a história prega a todos, poder ouvir palavras como as que Paulo Portas proferiu publicamente numa reunião centrista, em que Vítor Bento passou de bestial a besta. Portas é um dos principais responsáveis, pela sua posição no governo, da escolha de Vítor Bento, visto que todo o processo do BES é conduzido pelo governo utilizando como instrumento o Banco de Portugal. Portas ouviu com certeza as críticas da oposição de que Bento não tinha experiência bancária, de que a escolha tinha sido política, etc. Ele, como toda a muralha de personalidades do governo que se pronunciaram, bem como os comentadores próximos do poder, reagiram indignados a estas acusações incensando Bento até aos limites, como a excepcional escolha para “salvar” o banco. Bento devia ter compreendido que não era tanto ele próprio, nem o resto da sua equipa que eram elogiados, mas a sageza do governo e do seu instrumento o Banco de Portugal, na escolha.

Agora, Vítor Bento teve que ouvir as palavras de Portas, com a mesma repulsa moral que elas suscitam em gente bem formada. Portas fala como se nada tivesse a ver, assim como o governo que faz parte, na escolha de Vítor Bento, uma escolha errada porque não era um “banqueiro” e não “percebia” de banca, não era “profissional” do ofício para que foi escolhido… pelo governo. E depois dá-lhe uma lição moral, a mesma que Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa lhe deram, e que segundo este último, “toda a gente” partilha, do PSD de Alcobaça aos seus companheiros de praia:

“Os bancos gerem-se por profissionais e por gente que tenha espírito de missão e que, em qualquer circunstância, perceba que o interesse nacional é superior a qualquer interesse pessoal.” 

Bento portou-se mal ao demitir-se, devia continuar no banco como responsável de fachada, enquanto a cadeia de comando do governo ao Banco de Portugal decidia tudo em nome dele. Ou seja, Bento não aceitou ser um fantoche e isso só lhe fica bem nestes tempos de dissolução moral. Vem agora um tecnocrata mais dúctil.

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20.9.14


A LIÇÃO ESCOCESA: O ABANÃO NA EUROPA ESTABELECIDA


O referendo escocês, mesmo com o resultado que teve, é um bom exemplo de como é errado pensar como se pensa por cá: o que está tem muita força e o que está não muda, é “inevitável”. O “não” vitorioso não vai impedir que muita coisa mude, e o “sim” derrotado vai garanti-lo. Os escoceses deram um exemplo notável da introdução de novidade, de surpresa, daquilo que é a “matéria” da história. Querem um exemplo do “pensar out of the box”, o apelo estandardizado de qualquer seminário para gestores, empreendedores, criativos, publicitários? Aqui o têm. Não é comum, nem fácil e comporta riscos, mas é vivo, logo muda. Aye.

 Ao pensar único por cá, o mais “in the box” que se pode imaginar, chamem-lhe realismo, que não é; conservadorismo, que não é, - é mais preguiça de pensar e aceitação do direito dos mais fortes a pensar por nós. Ao fim de quatro anos de pensamento único, “inevitável”, que varreu tudo, na política, da direita à esquerda, e na cabeça colocou os que perdiam a pensar como os que ganhavam, matou a revolta e a crítica, gerou a apatia e a submissão. Ah! Homens de saias, monstros de Loch Ness, castelos assombrados, lagos sinistros, encarnações de William Wallace, venham comemorar o Hogmaney por cá que bem precisamos de ar fresco, bravura e alegria de sermos senhores de nós mesmos. Aye.

A ideologia do “ajustamento”, funcionou como um deserto que avança, enchendo tudo de areia e atrito. A “história” ideológica que por cá mostra o soçobrar do pensamento é esta: Portugal faliu no final do governo Sócrates devido ao despesismo socialista, não apenas devido à “má despesa pública” de Sócrates, mas devido ao socialismo, social-democracia, keynesianismo, investimentismo público, ou qualquer ismo dessa categoria. Ou seja, não se trata apenas de apresentar uma realidade, mas de avançar com uma explicação ideológica para ela. Confrontado com esta situação de bancarrota, sem liberdade nem independência face aos credores e dependendo da benevolência dos mercados, os números do défice (mais) e os da dívida (menos) passaram a ser o tema central do discurso, de todo o discurso, económico, social, político e ideológico. Deixou de haver política, porque deixou de haver “alternativas”: o curso das coisas tornou-se inevitável. Ou melhor, o défice a dívida sugaram como um buraco negro tudo o resto. Eles eram a natureza das coisas, sólida, dura, permanente. Eram como a gravidade, o atractor universal. Nay.

Quem não queria partir daqui e chegar aqui, estava a filiar-se na escola ou “dos que não percebiam que o mundo tinha mudado”, ou dos partidários do “pensamento mágico” que pensavam que, com uma varinha mágica, resolviam tudo, mesmo os dois Mostrengos que se erguiam entre o Terreiro do Paço e os mandantes dos credores, o défice e a dívida. Eram desqualificados, “velhos do Restelo”, “socráticos”, ultrapassados e empecilhos. Para os que ainda podiam influenciar perversamente os jovens, como alguns professores reformados e jubilados que davam aulas de graça, e que eram portadores do perigoso pensamento anti-inevitabilidade, uma lei iníqua proibiu-os de o fazerem. A capa do livro de Camilo Lourenço chamado “Saiam da frente!” fazia a lista dos culpados – Soares, Sócrates, Mário Nogueira, Jerónimo de Sousa, Manuela Ferreira Leite, - “aqueles que levaram Portugal á falência”, “três vezes” – é “altura de os afastar”. Que tal uma injecção atrás da orelha, para tão perniciosa gente? Havia que abrir caminho para os Maçãs, os Poiares, os Lourenços, os César das Neves, os Joaquim Aguiar, os articulistas da imprensa económica, os jovens lobos do Compromisso Portugal, dos blogues governamentais e do Observador. Nay. Como um dos corifeus deste pensamento salvífico, Maçãs, escreveu, era tempo de acabar com o “socialismo” que, com excepção dos anos de Passos Coelho, tinha sempre dominado em Portugal. Com uma técnica estalinista da história, a amálgama, juntava-se no mesmo saco Sócrates e Manuela Ferreira Leite que lhe tinha dito “não há dinheiro”, para ouvir Passos Coelho, então desenvolvimentista e keynesiano, lhe criticar o reaccionarismo da afirmação. Todos são culpados, porque toda a história desde o 25 de Abril é apenas um longo caminho de “socialismo” de “vida acima das suas posses”, um percurso que nasce do mal, o 25 de Abril, e continua pelo mal, o “socialismo” de todos até à “revolução” Passos Coelho. Nay.

Se Sócrates está lá bem, Soares está lá pela sua intransigência face a este governo, Nogueira, porque os sindicatos são o inimigo a abater, Jerónimo, porque haver um partido comunista legal e activo é um perigo público, Cavaco Silva porque é suspeito de keynesianismo, e Manuela Ferreira Leite, porque lembra que o PSD foi em tempos um partido reformador e social-democrata e algumas avis raras não se têm calado e subjugado como muitos fizeram. Ou seja, tudo o que aparece como empecilho ao glorioso caminho da “libertação da economia”, vai para o índex. Nay.

O “ajustamento” foi a palavra encontrada para, na política, - que deixou de poder ser nomeada como política, - se poder voltar ao estado natural das coisas, que o “socialismo” de Cavaco Silva a Sócrates, tinha perturbado, levando o país a “viver acima das suas posses”. Agora vinha a factura para regressarmos ao estado natural de que nunca devíamos ter saído. Qual era esse estado natural? A pobreza atávica de Portugal, a mesma que Salazar apreciava como geradora de virtudes. Quem retirou Portugal desse estado natural, de forma esbanjadora, perdulária, despesista, viciosa? A classe média criada depois do 25 de Abril, os funcionários públicos, os professores, os trabalhadores das empresas públicas, os militares, os enfermeiros, o estado social, o alvo a abater. A esse alvo acrescentava-se a economia expendable, as pequenas e médias empresas dadoras de emprego, na construção civil, na restauração, etc., o símbolo do atraso do sistema económico português que deveria ter dot.coms em vez de cafés da esquina. Naturalmente as “jovens” desempoeiradas que pegavam na receita da tia e começaram a vender compotas na Internet, passavam ao modelo do “empreendorismo”. Nay.

 Qual é o remédio para repôs a virtude e combater o vício? “Ajustar”, uma tarefa que passa por empobrecer quem ainda tinha alguma coisa (a classe média), alterar os equilíbrios sociais que garantiam alguma distribuição (através do ataque aos chamados “direitos adquiridos”), diminuir o valor do trabalho, impor uma violenta carga fiscal sobre o trabalho. O empobrecimento, que os nossos governantes com todo o à vontade tratam de “efeito colateral”, algo de tão inevitável que não vale a pena defrontá-lo, era na verdade um mecanismo estrutural, para voltarmos a esse estado natural a partir do qual se podia esperar uma “economia sã”. Nay.

 Podia continuar por aqui adiante, mas cansa. Cansa ouvir isto, como me cansa a mim escrevê-lo. Para sair disto, vale a pena aprender com os escoceses. Vejam lá o que fizeram esses malvados. Deram alento a uma ideia que parecia morta, marginal, apenas circulando pelas franjas da vida política, a de uma Escócia independente. Na última década, essa ideia, a que ninguém atribuía importância, tão grande era a inevitabilidade do Reino Unido, começou a crescer, impôs mais autonomia e tornou central o debate da independência. Várias coisas ajudaram, a tradição operária escocesa, a preservação da cultura nacional, e a afronta que alguns governantes ingleses, como Thatcher, fizeram aos rudes highlanders, que lá por usarem saias, nem por isso deixam de ser homens e mulheres orgulhosos num mundo europeu demasiado submisso. E quando os sins e os nãos se aproximaram perigosamente, soaram os alarmes por toda essa Europa burocrática, estabelecida, convencida e em grande parte inútil. Aye.

 A independência escocesa teria problemas, - por mim se a maioria dos escoceses quer ficar no Reino Unido, um sítio particularmente civilizado da Europa, muito bem, - mas em bom rigor qual era o mal de serem independentes? Que ameaças traria à Europa? Traria à Espanha por causa da Catalunha, mas pensam que o “não“ escocês resolve o problema? Traria à Ucrânia oriental, mas a situação de independência de facto existe e só em termos geopolíticos se pode explicar o grande amor europeu à integralidade territorial da Ucrânia, que não se aplica à Moldova, nem à Geórgia, nem à Arménia. As instituições europeias hoje representam uma espécie de polícia da boa economia do “ajustamento”, da boa política do establishment, da boa área de influência, a alemã. Os escoceses mandaram-lhe um valente abanão, vindo da história, ou seja da surpresa, da vida, da liberdade. E não pediram autorização a ninguém. Nem a Bruxelas, nem a Londres, nem a Berlim. Aye, aye.

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6.9.14


CARTAS PORTUGUESAS A LUDWIG PAN, GEÓLOGO E AGRIMENSOR NA AUSTRÁLIA 

(As duas primeiras  aqui, a terceira aquia quarta aqui, a quinta aqui, a sexta aqui.)



Meu confuso Pan lá pelos antípodas 

Dizes que foste à cidade? Cunnamulla? Mas isso é lá uma cidade? Fui à Wikipedia ver, e dá 1200 habitantes. Está-se mesmo a ver, uma multidão, engarrafamentos, semáforos, rush hour! Ah! meu bom amigo, estás a ficar “local”, um pouco avariado da cabeça, ou então mais certo do que todos nós. 

Quando voltares a Colónia, vai-te parecer um daqueles mundos apocalípticos da ficção científica, pós-nucleares, com mutantes e água a pingar dos neons escalavrados e bares em que se bebem coisas azuis fosforescentes e há fêmeas com vinte mamas. Por favor, faz como os mergulhadores para subir, faz um tirocínio de quinze dias de cidade em cidade, podes começar na Cunnamulla, mas depois vai-lhe acrescentando dez mil, depois cem mil, depois um milhão de habitantes, para te habituares à civilização. Temo que se vieres de férias natalícias para a tua Renânia, como me dizes que vens, entres por um restaurante dentro e te sentes no chão, porque já não sabes o que é uma cadeira.  Cunnamulla? É quente, não chove, mas há inundações e tem uma fonte monumental? Give me a break! Desculpa este meu mau feitio contra Cunnamulla que não tem culpa nenhuma e até se calhar tem uma intensa vida social. 

Eu suspeito que deve haver um equilíbrio cósmico. Tu vens para cá e nós vamos para lá. A gente também já não sabe o que é uma cadeira, uma mesa, um garfo e uma faca. Empurra os tuk-tuk. Grunhe ao telefone. Esbraceja no SMS. Vocifera no anonimato dos comentários. Vive no Facebook. Está tudo a ficar muito bruto. Por cá também vamos a caminho de uma Cunnamulla qualquer. 

Queres notícias do meu país? Voltou o futebol, deixou de haver notícias. Vivemos no reino das platitudes. O Ronaldo parece que deu uma entrevista à TVI e o Marcelo Rebelo de Sousa, - recordas-te, o que nadou no Tejo, o que schwamm in der Scheiße, como dizias antes de seres meio aborígene, - elogiou a sua imensa capacidade de sabedoria e profundeza. O homem parece que quer a Irina, mas só para já. Depois vai querer outra que não é a Irina. Sábio. O homem parece que evitou criticar os patrões. Um cúmulo de sensatez. E por aí adiante, só sageza. Vinte valores. 

Aliás o mesmo pode ser dito do discurso do meu Primeiro-ministro no Pontal , que já não é no Pontal, outra colecção de platitudes gigantescas. Mas foi lá o mundo todo, televisões, rádios e grande cópia de jornalistas e em vez de dizerem, desculpem meus leitores, mas o homem não disse nada, encheram o ar desse mesmo nada. A gente apanha embolias só de respirar este vácuo, mas há sempre alguém que vai lá erigir um amuo qualquer em política. Na oposição, é o mesmo, nada, no país em que se homenageia os mortos pagando-lhes as quotas no partido. Vai haver muito walking dead socialista. Na verdade, já havia antes, alguns até mandavam, nós é que não tínhamos reparado. 

Depois há a intensa produção de paradoxos, que passam por ser o mais linear dos raciocínios. O governo e o Banco de Portugal parecem que querem o BES “bom” vendido o mais depressa possível. Mas para vender bem o BES “bom” este tem que ser “estabilizado”, ou seja, demora tempo. Queremos vender rápido, mas rápido só pode ser “instável”, logo mais barato. No intervalo, a indústria da “estabilidade”, ou seja da imagem e da marca, lá vai ganhando dinheiro com transformar o banco numa borboleta, anúncios, cartazes, fachadas, que nisso somos rápidos e bons a encomendar e há uma verdadeira multidão de “criativos” para responder. Mas se soubessem mais de lepidópteros ou lessem o Nabokov, saberiam que o “novo banco” ficaria bem mais servido com uma larva ou lagarta. Primeiro, porque comem muito, coisa que fica sempre bem a um banco mesmo “bom”, e, quando fosse vendido no esplendor rápido de borboleta então poderia ser que os “contribuintes”, - palavra que deveria ter um alarme acoplado visto que quando o governo a usa ou trata-se de impostos, despedimentos, ou cortes, - ficassem ressarcidos. 

Vê lá este vocabulário dos nossos dias “ressarcidos”… Estás ver como vamos a caminho de Cunnamulla? De foguetão. Meu caro Pan, não há aí um aborígene feiticeiro que me arranje uma Epifania qualquer para eu transformar isto tudo numa experiência religiosa profunda e ficar parvo a falar para um arbusto, em vez de ter esta terrível sensação de ficar cada vez mais perto de Cunnamulla? 

E tu não te percas nessa grande cidade australiana. Bom, o nome não é mau. Como é que se chamarão os habitantes? 

 Um abraço do teu amigo longínquo

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1.9.14



ÍNDICE DO SITUACIONISMO: COMO É QUE A NOVILÍNGUA SE ESTABELECE

A questão do situacionismo não é de conspiração, é de respiração.
E, nalguns casos, de respiração assistida.

 Diz o Primeiro-ministro: 
"Parece-me que a meta que tínhamos definido de 4% para este ano é alcançável, precisa de alguns ajustamentos dentro do nosso orçamento na medida em que há algumas rubricas que têm um peso maior do que tínhamos previsto em consequência de decisões que não fomos nós que tomamos. " 
 Repare-se no sublinhado “em consequência de decisões que não fomos nós que tomamos ", a frase em língua orwelliana. Quer o Primeiro-ministro dizer, e, quase toda a comunicação social que o segue na conjugação do sujeito com o verbo, decisões que (“nós”, o governo) não tomou, mas sim o Tribunal Constitucional. Não, meus amigos é exactamente o contrário: “em consequência de decisões que nós tomamos”, porque as opções por medidas de duvidosa constitucionalidade, para dizer o menos, ou inconstitucionais, foram tomadas pelo governo e por mais ninguém. Nos últimos três anos, o sujeito primeiro das medidas chumbadas pelo Tribunal Constitucional foi sempre o governo, o autor do chumbo foi o Tribunal. Quando chega o chumbo, ergue-se um clamor a dizer que a culpa é sempre do Tribunal, e nunca de quem tem vindo nos últimos anos a somar medidas sobre medidas ilegais à luz da Constituição. E não é por falta de aviso prévio. 

Esta substituição do sujeito da “culpa”, com que a comunicação social colabora sem pensar, é de novo mais um dos casos de situacionismo, de submissão acrítica à linguagem do poder.

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AVENTUREIRISMO LEGAL

 O caso do BES e do GES é um maná para os advogados especializados neste tipo de litigância, aliás os mesmos que são especialistas na blindagem de contratos, os mesmos que fizeram as contrapartidas, os mesmos que negociaram do lado da banca e do lado do governo. Para meia dúzia deles, porque é um círculo muito fechado, o caso BES/GES vai ser um presente de ouro.

Há muito aventureirismo legal (melhor ilegal) em todo o processo e tantas zonas vermelhas e cinzentas, tanta coisa feita em cima do joelho, e muita mais de legalidade mais que duvidosa, que todos, pequenos e grandes, do lado “bom” e do lado “mau”, têm vantagem em ir a tribunal, mesmo com uma justiça lenta como a nossa. E é evidente que a expectativa de litígios sobre litígios vai embaratecer ainda mais o lado “bom”, visto que ninguém se arrisca a comprar sem ter a certeza de que não fica com um bem enrodilhado por dezenas de anos em processos judiciais. A não ser que o governo se atravesse com garantias e dinheiro, o que já está a fazer e ainda vai fazer muito mais. É só esperar um pouco.

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© José Pacheco Pereira
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