ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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6.9.14
CARTAS PORTUGUESAS A LUDWIG PAN, GEÓLOGO E AGRIMENSOR NA AUSTRÁLIA
Meu confuso Pan lá pelos antípodas
Dizes que foste à cidade? Cunnamulla? Mas isso é lá uma cidade? Fui à Wikipedia ver, e dá 1200 habitantes. Está-se mesmo a ver, uma multidão, engarrafamentos, semáforos, rush hour! Ah! meu bom amigo, estás a ficar “local”, um pouco avariado da cabeça, ou então mais certo do que todos nós.
Quando voltares a Colónia, vai-te parecer um daqueles mundos apocalípticos da ficção científica, pós-nucleares, com mutantes e água a pingar dos neons escalavrados e bares em que se bebem coisas azuis fosforescentes e há fêmeas com vinte mamas.
Por favor, faz como os mergulhadores para subir, faz um tirocínio de quinze dias de cidade em cidade, podes começar na Cunnamulla, mas depois vai-lhe acrescentando dez mil, depois cem mil, depois um milhão de habitantes, para te habituares à civilização. Temo que se vieres de férias natalícias para a tua Renânia, como me dizes que vens, entres por um restaurante dentro e te sentes no chão, porque já não sabes o que é uma cadeira. Cunnamulla? É quente, não chove, mas há inundações e tem uma fonte monumental? Give me a break!
Desculpa este meu mau feitio contra Cunnamulla que não tem culpa nenhuma e até se calhar tem uma intensa vida social.
Eu suspeito que deve haver um equilíbrio cósmico. Tu vens para cá e nós vamos para lá. A gente também já não sabe o que é uma cadeira, uma mesa, um garfo e uma faca. Empurra os tuk-tuk. Grunhe ao telefone. Esbraceja no SMS. Vocifera no anonimato dos comentários. Vive no Facebook. Está tudo a ficar muito bruto. Por cá também vamos a caminho de uma Cunnamulla qualquer.
Queres notícias do meu país? Voltou o futebol, deixou de haver notícias. Vivemos no reino das platitudes. O Ronaldo parece que deu uma entrevista à TVI e o Marcelo Rebelo de Sousa, - recordas-te, o que nadou no Tejo, o que schwamm in der Scheiße, como dizias antes de seres meio aborígene, - elogiou a sua imensa capacidade de sabedoria e profundeza. O homem parece que quer a Irina, mas só para já. Depois vai querer outra que não é a Irina. Sábio. O homem parece que evitou criticar os patrões. Um cúmulo de sensatez. E por aí adiante, só sageza. Vinte valores.
Aliás o mesmo pode ser dito do discurso do meu Primeiro-ministro no Pontal , que já não é no Pontal, outra colecção de platitudes gigantescas. Mas foi lá o mundo todo, televisões, rádios e grande cópia de jornalistas e em vez de dizerem, desculpem meus leitores, mas o homem não disse nada, encheram o ar desse mesmo nada. A gente apanha embolias só de respirar este vácuo, mas há sempre alguém que vai lá erigir um amuo qualquer em política. Na oposição, é o mesmo, nada, no país em que se homenageia os mortos pagando-lhes as quotas no partido. Vai haver muito walking dead socialista. Na verdade, já havia antes, alguns até mandavam, nós é que não tínhamos reparado.
Depois há a intensa produção de paradoxos, que passam por ser o mais linear dos raciocínios. O governo e o Banco de Portugal parecem que querem o BES “bom” vendido o mais depressa possível. Mas para vender bem o BES “bom” este tem que ser “estabilizado”, ou seja, demora tempo. Queremos vender rápido, mas rápido só pode ser “instável”, logo mais barato. No intervalo, a indústria da “estabilidade”, ou seja da imagem e da marca, lá vai ganhando dinheiro com transformar o banco numa borboleta, anúncios, cartazes, fachadas, que nisso somos rápidos e bons a encomendar e há uma verdadeira multidão de “criativos” para responder. Mas se soubessem mais de lepidópteros ou lessem o Nabokov, saberiam que o “novo banco” ficaria bem mais servido com uma larva ou lagarta. Primeiro, porque comem muito, coisa que fica sempre bem a um banco mesmo “bom”, e, quando fosse vendido no esplendor rápido de borboleta então poderia ser que os “contribuintes”, - palavra que deveria ter um alarme acoplado visto que quando o governo a usa ou trata-se de impostos, despedimentos, ou cortes, - ficassem ressarcidos.
Vê lá este vocabulário dos nossos dias “ressarcidos”… Estás ver como vamos a caminho de Cunnamulla? De foguetão.
Meu caro Pan, não há aí um aborígene feiticeiro que me arranje uma Epifania qualquer para eu transformar isto tudo numa experiência religiosa profunda e ficar parvo a falar para um arbusto, em vez de ter esta terrível sensação de ficar cada vez mais perto de Cunnamulla?
E tu não te percas nessa grande cidade australiana. Bom, o nome não é mau. Como é que se chamarão os habitantes?
Um abraço do teu amigo longínquo
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© José Pacheco Pereira
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