O referendo escocês, mesmo com o resultado que teve, é um bom exemplo de como é errado pensar como se pensa por cá: o que está tem muita força e o que está não muda, é “inevitável”. O “não” vitorioso não vai impedir que muita coisa mude, e o “sim” derrotado vai garanti-lo. Os escoceses deram um exemplo notável da introdução de novidade, de surpresa, daquilo que é a “matéria” da história. Querem um exemplo do “pensar out of the box”, o apelo estandardizado de qualquer seminário para gestores, empreendedores, criativos, publicitários? Aqui o têm. Não é comum, nem fácil e comporta riscos, mas é vivo, logo muda. Aye.
Ao pensar único por cá, o mais “in the box” que se pode imaginar, chamem-lhe realismo, que não é; conservadorismo, que não é, - é mais preguiça de pensar e aceitação do direito dos mais fortes a pensar por nós. Ao fim de quatro anos de pensamento único, “inevitável”, que varreu tudo, na política, da direita à esquerda, e na cabeça colocou os que perdiam a pensar como os que ganhavam, matou a revolta e a crítica, gerou a apatia e a submissão. Ah! Homens de saias, monstros de Loch Ness, castelos assombrados, lagos sinistros, encarnações de William Wallace, venham comemorar o Hogmaney por cá que bem precisamos de ar fresco, bravura e alegria de sermos senhores de nós mesmos. Aye.
A ideologia do “ajustamento”, funcionou como um deserto que avança, enchendo tudo de areia e atrito. A “história” ideológica que por cá mostra o soçobrar do pensamento é esta: Portugal faliu no final do governo Sócrates devido ao despesismo socialista, não apenas devido à “má despesa pública” de Sócrates, mas devido ao socialismo, social-democracia, keynesianismo, investimentismo público, ou qualquer ismo dessa categoria. Ou seja, não se trata apenas de apresentar uma realidade, mas de avançar com uma explicação ideológica para ela. Confrontado com esta situação de bancarrota, sem liberdade nem independência face aos credores e dependendo da benevolência dos mercados, os números do défice (mais) e os da dívida (menos) passaram a ser o tema central do discurso, de todo o discurso, económico, social, político e ideológico. Deixou de haver política, porque deixou de haver “alternativas”: o curso das coisas tornou-se inevitável. Ou melhor, o défice a dívida sugaram como um buraco negro tudo o resto. Eles eram a natureza das coisas, sólida, dura, permanente. Eram como a gravidade, o atractor universal. Nay.
Quem não queria partir daqui e chegar aqui, estava a filiar-se na escola ou “dos que não percebiam que o mundo tinha mudado”, ou dos partidários do “pensamento mágico” que pensavam que, com uma varinha mágica, resolviam tudo, mesmo os dois Mostrengos que se erguiam entre o Terreiro do Paço e os mandantes dos credores, o défice e a dívida. Eram desqualificados, “velhos do Restelo”, “socráticos”, ultrapassados e empecilhos. Para os que ainda podiam influenciar perversamente os jovens, como alguns professores reformados e jubilados que davam aulas de graça, e que eram portadores do perigoso pensamento anti-inevitabilidade, uma lei iníqua proibiu-os de o fazerem. A capa do livro de Camilo Lourenço chamado “Saiam da frente!” fazia a lista dos culpados – Soares, Sócrates, Mário Nogueira, Jerónimo de Sousa, Manuela Ferreira Leite, - “aqueles que levaram Portugal á falência”, “três vezes” – é “altura de os afastar”. Que tal uma injecção atrás da orelha, para tão perniciosa gente? Havia que abrir caminho para os Maçãs, os Poiares, os Lourenços, os César das Neves, os Joaquim Aguiar, os articulistas da imprensa económica, os jovens lobos do Compromisso Portugal, dos blogues governamentais e do Observador. Nay.
Como um dos corifeus deste pensamento salvífico, Maçãs, escreveu, era tempo de acabar com o “socialismo” que, com excepção dos anos de Passos Coelho, tinha sempre dominado em Portugal. Com uma técnica estalinista da história, a amálgama, juntava-se no mesmo saco Sócrates e Manuela Ferreira Leite que lhe tinha dito “não há dinheiro”, para ouvir Passos Coelho, então desenvolvimentista e keynesiano, lhe criticar o reaccionarismo da afirmação. Todos são culpados, porque toda a história desde o 25 de Abril é apenas um longo caminho de “socialismo” de “vida acima das suas posses”, um percurso que nasce do mal, o 25 de Abril, e continua pelo mal, o “socialismo” de todos até à “revolução” Passos Coelho. Nay.
Se Sócrates está lá bem, Soares está lá pela sua intransigência face a este governo, Nogueira, porque os sindicatos são o inimigo a abater, Jerónimo, porque haver um partido comunista legal e activo é um perigo público, Cavaco Silva porque é suspeito de keynesianismo, e Manuela Ferreira Leite, porque lembra que o PSD foi em tempos um partido reformador e social-democrata e algumas avis raras não se têm calado e subjugado como muitos fizeram. Ou seja, tudo o que aparece como empecilho ao glorioso caminho da “libertação da economia”, vai para o índex. Nay.
O “ajustamento” foi a palavra encontrada para, na política, - que deixou de poder ser nomeada como política, - se poder voltar ao estado natural das coisas, que o “socialismo” de Cavaco Silva a Sócrates, tinha perturbado, levando o país a “viver acima das suas posses”. Agora vinha a factura para regressarmos ao estado natural de que nunca devíamos ter saído. Qual era esse estado natural? A pobreza atávica de Portugal, a mesma que Salazar apreciava como geradora de virtudes. Quem retirou Portugal desse estado natural, de forma esbanjadora, perdulária, despesista, viciosa? A classe média criada depois do 25 de Abril, os funcionários públicos, os professores, os trabalhadores das empresas públicas, os militares, os enfermeiros, o estado social, o alvo a abater. A esse alvo acrescentava-se a economia expendable, as pequenas e médias empresas dadoras de emprego, na construção civil, na restauração, etc., o símbolo do atraso do sistema económico português que deveria ter dot.coms em vez de cafés da esquina. Naturalmente as “jovens” desempoeiradas que pegavam na receita da tia e começaram a vender compotas na Internet, passavam ao modelo do “empreendorismo”. Nay.
Qual é o remédio para repôs a virtude e combater o vício? “Ajustar”, uma tarefa que passa por empobrecer quem ainda tinha alguma coisa (a classe média), alterar os equilíbrios sociais que garantiam alguma distribuição (através do ataque aos chamados “direitos adquiridos”), diminuir o valor do trabalho, impor uma violenta carga fiscal sobre o trabalho. O empobrecimento, que os nossos governantes com todo o à vontade tratam de “efeito colateral”, algo de tão inevitável que não vale a pena defrontá-lo, era na verdade um mecanismo estrutural, para voltarmos a esse estado natural a partir do qual se podia esperar uma “economia sã”. Nay.
Podia continuar por aqui adiante, mas cansa. Cansa ouvir isto, como me cansa a mim escrevê-lo. Para sair disto, vale a pena aprender com os escoceses. Vejam lá o que fizeram esses malvados. Deram alento a uma ideia que parecia morta, marginal, apenas circulando pelas franjas da vida política, a de uma Escócia independente. Na última década, essa ideia, a que ninguém atribuía importância, tão grande era a inevitabilidade do Reino Unido, começou a crescer, impôs mais autonomia e tornou central o debate da independência. Várias coisas ajudaram, a tradição operária escocesa, a preservação da cultura nacional, e a afronta que alguns governantes ingleses, como Thatcher, fizeram aos rudes highlanders, que lá por usarem saias, nem por isso deixam de ser homens e mulheres orgulhosos num mundo europeu demasiado submisso. E quando os sins e os nãos se aproximaram perigosamente, soaram os alarmes por toda essa Europa burocrática, estabelecida, convencida e em grande parte inútil. Aye.
A independência escocesa teria problemas, - por mim se a maioria dos escoceses quer ficar no Reino Unido, um sítio particularmente civilizado da Europa, muito bem, - mas em bom rigor qual era o mal de serem independentes? Que ameaças traria à Europa? Traria à Espanha por causa da Catalunha, mas pensam que o “não“ escocês resolve o problema? Traria à Ucrânia oriental, mas a situação de independência de facto existe e só em termos geopolíticos se pode explicar o grande amor europeu à integralidade territorial da Ucrânia, que não se aplica à Moldova, nem à Geórgia, nem à Arménia. As instituições europeias hoje representam uma espécie de polícia da boa economia do “ajustamento”, da boa política do establishment, da boa área de influência, a alemã. Os escoceses mandaram-lhe um valente abanão, vindo da história, ou seja da surpresa, da vida, da liberdade. E não pediram autorização a ninguém. Nem a Bruxelas, nem a Londres, nem a Berlim. Aye, aye.