ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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4.12.14
O COMBATE POLÍTICO DE SÓCRATES NÃO É O NOSSO
Agora que José Sócrates entra no seu último grande combate político – que é como ele olha para a sua prisão e para as acusações que lhe são feitas – e quando o ano eleitoral vai ser dominado pelo confronto entre os que vão usar a sua “culpabilidade” contra o PS, exigindo demarcações e purgas, e os que vão ver na prisão de Sócrates uma última manobra dos “malandros” que nos governam – duas teses politicamente fortes – resolvi andar para trás, para a memória.
Deixei de lado o argumento “responsável” de que “o que é da Justiça é da Justiça” e “não se deve misturar Justiça e “política”, porque isso pouco mais é do que “linguagem de madeira”, langue de bois, que se pode recitar (e desejar), mas que será varrida pela vida pública concreta que em democracia não é asséptica e inclui tudo: vinganças e amizades, desejos e medos, suspeitas e certezas, imagens e factos. Como é que chegamos aqui? Para quem escreve todas as semanas nos jornais isso significa: viste o que aí vinha?
No livro que publiquei sobre os “dias do lixo” não os comecei por Passos Coelho, Relvas, Gaspar e companhia, mas pelos últimos anos de José Sócrates. Foi aí que começaram os “dias do lixo”. No dia 16 de Outubro de 2010, governava Sócrates, escrevi no Público um conjunto de frases para os “tempos de hoje”. Peço desculpa de me citar, mas a gente também tem de ser avaliada pelo que disse, com data.
As frases eram dirigidas a Sócrates, a um Sócrates que tinha ganho as eleições e estava em plena loucura de esbanjamento, e a Passos Coelho, a um Passos que tinha então um discurso contra Manuela Ferreira Leite muito próximo do de Sócrates. Sócrates caminhava velozmente para o PEC IV e a bancarrota, Passos Coelho tinha posições pouco distintas de Sócrates, recusando a austeridade do PC IV, a última que se poderia ter tido sem troika, porque a achava “excessiva”. Passos Coelho prometia não aumentar impostos, nem despedir ninguém, nem cortar subsídios de Natal, nem tocar nas reformas, mas apenas atacar as “gorduras” do Estado.
Ambos estavam pior do que ceguinhos. Quando falo a seguir de austeridade, falo contra Sócrates e Passos Coelho. E quando elogio a determinação sobre o défice, a dívida, não falo do Passos Coelho de 2012-4, porque os problemas que ele defronta hoje foram em grande parte criados por ele próprio, pelo modo como teve de lidar com o descalabro orçamental gerado pelas despesas sociais resultado da “surpresa” do desemprego e pela depressão na economia. Como escrevi então, a boa política é a “a que escolhe as melhores medidas de austeridade e evita as más medidas de austeridade”. Não foi o que aconteceu, a “austeridade” foi conduzida por um programa ideológico, uma profunda ignorância do país e muita incompetência – por isso, os problemas que defrontamos hoje são fruto de Sócrates e Passos Coelho em conjunto.
Retirei uma ou outra frase, não porque não as pudesse incluir, mas para economia da citação, já de si bastante pouco económica. Serviam apenas para reforçar a frase anterior. Apesar de tudo isto hoje em 2014 parecerem trivialidades, regressem a esse ano de interregno, 2010, entre a vitória eleitoral de Sócrates e a sua demissão, e leiam o que se escrevia e dizia, do PS ao PSD, para comparar.
Aqui vão algumas das frases de 2010, escritas muito antes da troika:
Este foi o mundo que Sócrates deixou e Passos Coelho continuou. A minha última frase era: "Comparado com o que aí vem nenhuma destas previsões é especialmente pessimista.” Não foram. A realidade foi muito pior: desembocou num ex-primeiro-ministro preso, em altos quadros do Estado presos, na queda do mais poderoso grupo bancário português, adorado pelos aspirantes a singapurianos novos-ricos entre o Martini man e o “homem da Regisconta”, que ainda nos governam, pela mistura de pseudo-aristocracia e altas esferas do dinheiro e do poder.
Em que é que isto tem a ver com a prisão de Sócrates? Tudo. Se ele deseja um julgamento político, ele que nos deixou de herança Passos Coelho, como ele foi herança de Santana Lopes, de mim terá apenas a repetição do que disse no passado.
Para esse peditório político não dou. Este homem fez muito mal a Portugal. Não o quero preso injustamente, nem o quero preso apenas porque fez muito mal ao seu país, até porque o fez com milhões de votos dos portugueses. Desejo-o livre pela sua pura inocência e não pelas suas atitudes de “animal feroz”, arrastando para o seu gigantesco ego um combate político que é suposto ter outros alvos e outros motivos. Apesar das frases politicamente correctas do seu comunicado, pedindo ao PS para ficar à margem, ele não deseja outra coisa que não seja envolver tudo e todos no seu destino pessoal, mesmo que isso implique comprometer a oposição a soçobrar pouco a pouco numa teoria conspirativa.
Protestem, como eu protesto, contra tudo o que seja abuso do poder judicial, fugas orientadas de informação, humilhações escusadas, mas não dêem o passo que ele deseja que dêem. Por favor, projectem a recusa zangada do Governo para melhores causas do que o destino político do engenheiro Sócrates.
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Esta pergunta foi feita por Paulo Portas, quando no Parlamento se explicava sobre os vistos gold, política de que é o principal patrocinador.
Esta frase merece ficar na memória destes anos de lixo, juntamente com o “irrevogável” do mesmo autor, e de algumas outras de Passos Coelho sobre os “piegas” versus os empreendedores, ou o “ir para além da troika”, ou a “austeridade criadora”, ou o fabuloso conceito de “justiça geracional”, ou os saltos no palco do “jovem” comissário do Impulso Jovem que nunca deve ter percebido como é que acabou a sua nobre missão de explicar a inutilidade de saber história ou sequer de estudar. Hoje tudo isto nos parece ridículo e perigoso, uma combinação sinistra,até porque tudo ainda está no activo. Vamos um dia olhar para estas frases, com a distanciação possível da história, e perceber melhor o retrato de um período negro da história portuguesa, em que o país foi estragado por uma mistura de ideias erradas e muita incompetência.
Voltando à frase de Portas, um daqueles soundbites de que os jornalistas muito gostam, e que substituem em Portas um pensamento, uma coerência, uma política e uma ética que não seja a sua vanglória e a sua sobrevivência. Podemos construir várias frases exactamente com o mesmo raciocínio que lhe serve de base.
Quem cria mais postos de trabalho? O CDS ou o BE? O CDS, claro, que está no Governo e participa na distribuição dos boys e girls e com muito afinco. Chama-se a “quota” do CDS. Quem cria mais postos de trabalho? O PSD ou o CDS? Terrível problema para o CDS, que só chega ao poder encostado nos votos do PSD e já fez disso modo de vida. A resposta é: o PSD, claro. Quem cria mais postos de trabalho? O CDS ou a Remax? A Remax claro, uma multinacional cujo nome Portas acabou por misturar nestas justificações, fazendo-lhe publicidade gratuita. Que se saiba, Portas ainda não vende casas na Micronésia, onde a Remax actua. Quem tem uma “marca” de maior prestígio e maior valor de mercado? Portas ou a Remax? A Remax, que ainda não é “irrevogável”.
E a pergunta das mais certas que há: quem destruiu mais postos de trabalho? Portas ou o BE? Portas ou a Remax? Resposta: Portas e o CDS. E Sócrates – dirão as vozes? Sim, é verdade, Sócrates, Passos Coelho e Portas estão bem uns para os outros. Repito de novo a pergunta que seria aquela que de imediato lhe faria, se ele a fizesse à minha frente: quem destruiu mais postos de trabalho? Portas ou o BE? Portas ou a Remax? Aplicada aos vistos gold, a frase de Portas tem um significado unívoco: se dá dinheiro, vale tudo. Todo o resto da argumentação é paisagem – os outros também fazem, o dinheiro entra pela banca em cheque, comprar casas de luxo ajuda à nossa economia, etc., etc. Mas a essência é: se dá dinheiro, pode comprar tudo, mesmo esse intangível valor que é a residência em Portugal e depois a nacionalidade. É este sentido que torna a frase muito simbólica dos nossos dias, em que o “estado de emergência” se faz em primeiro lugar sentir no domínio da ética pública. Eu não sou daqueles que descobriram as virtudes (e os defeitos) da doutrina social da Igreja com o Papa Francisco. No PSD, se não houvesse uma efectiva traição à sua matriz histórica e ideológica, o contributo da doutrina social da Igreja, exactamente nos aspectos em que ela hoje parece perigosamente esquerdista para os ignorantes, é genético no pensamento de Sá Carneiro. O mesmo podia ser dito do CDS, se o amoralismo oportunista de Portas e dos seus jovens lobos não tivesse já destruído o que sobrava. Por ironia do destino, no mesmo dia em que Paulo Portas disse a frase da Remax no Parlamento, eu vinha de um debate na Faculdade de Teologia da Universidade Católica sobre a exortação apostólica Evangeili Gaudium, com a vantagem de a ter lido de fresco e não apenas as frases soltas mais bombásticas que dela circulam. O documento papal não se dirige a mim, que sou agnóstico, mas a ele, que se persigna em público. Não sou nem do episcopado, nem do clero, nem das pessoas consagradas, nem fiel leigo, os destinatários da exortação. Mas, quando a Igreja se comporta como uma reserva moral da sociedade, coisa que nem sempre acontece, é civicamente muito importante que seja ouvida. E neste sentido a Igreja “arrasa”, outro verbo de que os jornalistas muito gostam, Paulo Portas. Não por exercício de interpretação, mas sim em sentido literal. Seria impossível na Igreja franciscana alguém fazer a pergunta que Portas fez no contexto do amoralismo que a domina, porque são para quem faz perguntas daquelas as frases da Evangelii Gaudium: "Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e sobre as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano." É por isso que a frase de Portas pode também ser formulada de outras maneiras: o que cria mais emprego? A prostituição ou Portas? A prostituição. O que cria mais emprego? O crime ou Portas? O crime. O que cria mais emprego? A corrupção ou Portas? A corrupção. O que cria mais emprego? A “economia paralela” ou Portas e a maioria? A economia paralela. O que cria mais empregos? A guerra ou Portas? A guerra. E por aí adiante. Há dez mil coisas más que criam mais emprego do que Portas e a maioria, e isso não as justifica. Ouça-se o Papa Francisco: "Por detrás desta atitude escondem-se a rejeição da ética e a recusa de Deus. Para a ética, olha-se habitualmente com um certo desprezo sarcástico; é considerada contraproducente, demasiado humana, porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida como uma ameaça, porque condena a manipulação e degradação da pessoa. Em última instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta comprometida que está fora das categorias do mercado. Para estas, se absolutizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e até mesmo perigoso, na medida em que chama o ser humano à sua plena realização e à independência de qualquer tipo de escravidão. A ética – uma ética não ideologizada – permite criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo os peritos financeiros e os governantes dos vários países a considerarem as palavras dum sábio da antiguidade: 'Não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos.'" Dirigida na mouche ao sentido da frase de Portas estão estas afirmações: "Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se cada acção tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas duma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor." O problema dos vistos gold é simples: dinheiro inexplicado a montante, corrupção a jusante. É por isso que o caso de corrupção que hoje está a ser investigado e atinge o coração do Estado é estrutural e não conjuntural. É um resultado de se pensar como pensa Portas: se entra dinheiro, fecha-se os olhos, e depois “o mal consentido (…) tende a expandir a sua força nociva”. (url)
A BARREIRA
“– E, se calhar, temos de ponderar sanções jurídicas para os casos em que os poderes que são distribuídos, incluindo ao Tribunal Constitucional, são extravasados.
– Que sanções podiam ser aplicadas ao Tribunal Constitucional?
– Sanções jurídicas.”
Este fabuloso diálogo é travado numa entrevista ao PÚBLICO por Teresa Leal Coelho, uma das mais próximas deputadas da actual direcção política do PSD de Passos Coelho, que, ao que se saiba, é jurista. Num mundo ideal, como é o da série americana Newsroom, devia seguir-se toda uma outra série de questões ao modelo daquelas que uma jornalista do canal fictício de televisão entendia fazer a Michelle Bachman, congressista americana republicana ligada ao Tea Party, e que dizia que Deus a tinha aconselhado a concorrer a um cargo político: “Como é que soa a voz de Deus?” Neste caso, que “sanções jurídicas” pode ter um tribunal superior pelas suas decisões? Quem as decide? Quem as aplica? Um outro tribunal superior ao superior? O Governo? A ministra da Justiça? O Parlamento? A deputada Teresa Leal Coelho? Deus? Há certamente um problema com os cursos de Direito de algumas faculdades.
Este exemplo e esta citação abrem um outro conjunto de citações tão absurdas e ridículas como perigosas, no início do livro de Jorge Reis Novais, Em Defesa do Tribunal Constitucional. Respostas aos Críticos, editado pela Almedina e que tive o gosto, junto com Marcelo Rebelo de Sousa, de apresentar. É um livro de um professor de Direito, legível por todos, cheio de humor e boa irritação, no bom sentido weberiano da empatia que percorre a melhor ciência.
Reis Novais não pretendeu escrever um livro político, mas um estudo jurídico que tem naturalmente implicações políticas. Não me pronunciarei sobre a parte jurídica, para que não tenho competência, mas discutirei por que razão este livro é muito importante para perceber os tempos em que vivemos. O livro ficará entre os poucos que permitem elucidar estes anos de crise, sem ser apenas pela perspectiva da economia que é o tema dominante da literatura e ensaística neste período.
Vale a pena lê-lo e pensar sobre o que lá está dito, porque o ataque ao Tribunal Constitucional será uma ou das poucas marcas permanentes que sobreviverão aos actuais governantes, em que o desgaste das instituições é muito fácil de fazer em anos de perda colectiva, em que a procura de bodes expiatórios encontra sempre os seus corifeus e legitimadores. Entre eles, Teresa Leal Coelho e Passos Coelho estão na parte de baixo da cadeia alimentar, que neste caso se estende para cima, para aqueles que na Comissão Europeia e no FMI (e os seus repetidores portugueses) entendem que o Tribunal Constitucional alemão é intocável e o português uma atrapalhação desfasada da “realidade”, caduca e cediça, uma qualquer “brigada” do passado, como os mais malcriados membros do Governo costumam designar quem se lhes opõe.
No topo dessa cadeia, estão alguns juristas e professores de Direito que apareceram com toda uma teorização legitimadora e, no fundo, meramente utilitária, da crítica ao Tribunal Constitucional, desenvolvida quase sempre depois das decisões desse tribunal que travaram algumas medidas governamentais e não antes. Como Marcelo Rebelo de Sousa notou na apresentação do livro, alguns dos mais nacionalistas e críticos da União Europeia, passaram a ser abnegados defensores da supremacia do Direito europeu sobre a Constituição Portuguesa. No fundo, como em muitas coisas em Portugal, nestes tempos de bizarra “luta de classes”, ou se está com “eles” ou contra “eles”. O objectivo do livro de Jorge Reis Novais não é analisar o conteúdo e valor jurídico das decisões do Tribunal Constitucional, com que o autor muitas vezes discorda, mas o papel, a importância e a necessidade do próprio tribunal, e por essa via perceber o valor da Constituição em tempos de crise. Dois capítulos são particularmente interessantes: aqueles em que o autor discute o “estado de emergência financeira como pretenso estado de excepção constitucional” e outro sobre a justiça constitucional e a integração europeia, tratando dos argumentos que consideram que a nossa Constituição está ultrapassada ou submetida ao Direito europeu. Quase todo argumentário de ataque ao Tribunal Constitucional cabe nestes dois capítulos. O ataque ao Tribunal Constitucional não estava no programa da actual maioria, embora estivesse uma profunda alteração da Constituição. Uma coisa levaria à outra, mas não foi imediata, até porque o PSD estava convencido de que os juízes que nomeara se prestavam a julgar como militantes partidários e não como juízes. Enganou-se e fez mais tarde a autocrítica amarga que “não os tinha escolhido bem”. Como acontece muitas vezes com o tipo de políticos do género de Passos Coelho, o percurso e a importância de uma revisão constitucional, que exigia a colaboração do PS, variou. O projecto de Paulo Teixeira Pinto era tão radical, e tão hostil ao património social-democrata, que foi rapidamente abandonado, com Passos Coelho num congresso do PSD a negá-lo com afirmações de fé social-democrata. Como sempre, o dia de hoje faz esquecer o dia de ontem. Como é costume, a coisa não iria durar muito, e passou-se da questão da Constituição para a questão do Tribunal Constitucional. Não é a mesma coisa e não tem os mesmos riscos para a democracia, porque as opiniões sobre a Constituição são livres no sistema político, mas o ataque à autoridade de um tribunal e o permanente jogo no limite de apresentar as mesmas medidas disfarçadas de outras ou de apresentar medidas que já se sabia serem inconstitucionais para atirar para o tribunal o ónus das dificuldades da governação, é um jogo muito perigoso. O segundo pilar da democracia, o primado do direito, foi claramente posto em causa por um Governo que hipervalorizava o primeiro, a soberania popular pelo voto. Na verdade, a afirmação reiterada de que o Governo, mesmo que não concordasse com as decisões do tribunal, as cumpria, não basta para se poder afirmar que houvesse um pleno primado do direito, porque os múltiplos efeitos perversos das várias atitudes do Governo e também do Presidente, objectivamente deslegitimavam o tribunal e o valor da Constituição. O Presidente permaneceu silencioso perante atitudes inaceitáveis de pressão e mesmo insulto sobre o tribunal, um caso de funcionamento irregular das instituições e, como nota Reis Novais, não enviou para o tribunal um Orçamento que sabia ser inconstitucional e enviou outro que entendia ser constitucional, porque o Governo lhe pediu. O Governo, numa atitude bem pouco patriótica, usou o Tribunal Constitucional perante a troika, para explicar alguns dos seus falhanços, e aceitou, com satisfação, ver esses argumentos repetidos em relatórios da Comissão ou do FMI. O conflito crescente do Governo e da maioria com o Tribunal Constitucional tem a ver com o modelo de “ajustamento” seguido (insisto, um entre vários possíveis), assente num alvo, a classe média, e no saque fiscal aos rendimentos de trabalho, nos cortes a salários e pensões, violando contratos de um determinado tipo e desequilibrando relações de equidade e confiança. O choque era inevitável. Mas o que os críticos do Tribunal Constitucional nunca lembram é que podiam ter sido outros os alvos do “ajustamento”. Um outro Governo poderia ter seguido outro modelo, podia inclusive obter os recursos de que precisava com confiscos de bens, nacionalizações, a violação de outro tipo de contratos, os “blindados”, ou seja, atacando a propriedade. Aí, também o Tribunal Constitucional, e bem, travaria um Governo que prosseguisse nessa via porque violaria a Constituição portuguesa. Nessa altura, seria, para os actuais críticos, um herói, uma última barreira contra a barbárie expropriadora e, quiçá, o comunismo. Não se ouviriam críticas, mas elogios. É esta barreira que Jorge Reis Novais quer defender no seu livro e fá-lo com muita eficácia. Vale a pena ler. (url)
AS LIBÉLULAS E O ESTADO DA NAÇÃO
– Houve uma invasão de libélulas.
– O quê?
– Uma invasão de libélulas na zona ribeirinha de Lisboa.
– E depois?
– Ao menos isso.
– A invasão de libélulas?
– Sim. Os bichos são inofensivos, simpáticos, parecem helicópteros.
– …
– Aparecem nas gravuras japonesas, nos haikais, em Vítor Hugo…
– …
– “Um pimentão, dai-lhe umas asas, uma libélula vermelha!”
– O que é que te deu?
– Bashô.
– Eu sei. O que é que te deu? Picaram-te?
– As libélulas não picam ninguém. São almas.
– O quê?
– Les âmes, libellules de l'ombre...
– O quê?
– Victor Hugo. Um amador de libélulas. E há Tennyson…
– Mas isso é para as dragonflies…
– A living flash of light. E depois há as libelinhas, as libélulas em versão namorados.
– Onde é que tu já vais!
– Ainda nem sequer parti.
– Mas o que é que têm as libélulas?
– Bons olhos. Precisamos de bons olhos.
– Não me parece que sejam os olhos das libélulas que te interessam.
– Porque é que tu achas que vêm para cá?
– Porque isto parece um charco.
– Enlouqueceste.
– Sim. Passei a semana a ver os nossos governantes vestidos com a farda da Mota Engil; passei a semana a aturar o Portas a saracotear-se no México com uma corte de jornalistas com a viagem paga para lhe darem espaço televisivo todos os dias, primeiro ia almoçar com o Carlos Slim (soam as trombetas), depois o Slim não apareceu (flautim); passei a semana a ouvir o ministro da Economia a elogiar uma subida de Portugal num ranking em que afinal desceu; passei a semana a ouvir mentiras sobre o Orçamento do Estado, a ouvir mentiras sobre o BES, a ouvir mentiras sobre as previsões económicas, tão ficcionais como a fada dos dentinhos; passei a semana a ouvir o primeiro-ministro a ler um discurso escrito que negou logo a seguir quando passou à oralidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo dizer coisas diferentes com intervalo de minutos, ainda por cima sobre o bolso de centenas de milhares de pessoas (quem é que liga a isso?); passei a semana a ver um enorme vazio onde devia estar a oposição, com António Costa a comportar-se como primeiro-ministro putativo, em vez de assumir o papel de líder da oposição que é o dele até ganhar eleições; passei a semana a assistir àquela cena patética, de verdadeiros “amarelos”, na UGT, a dar legitimidade ao Governo que mais combateu o mundo do trabalho, com Passos Coelho a fustigar os trabalhadores num cenário “sindical”; passei a semana a ver imagens de Nuno Crato passeado pela UGT a bater palmas como se o masoquismo na moda fosse engolir alegremente uma manifesta provocação; passei a semana a ler jornalistas preguiçosos a repetirem os argumentos do poder sobre como foi bom o negócio do Novo Banco, passando do tudo ao nada no BESA, de como não é importante o chumbo do BCP nos testes de stress, como está sempre tudo bem quando os interlocutores são os que importam, os do clã, os que estão no “lugar certo” de Portugal, empresas, bancos, gestores, povo da economia “empreendedora”; passei a semana a ver sempre proteger os que mandam, Passos, Maria Luís, Carlos Costa, Stock da Cunha, e a considerar que tudo o que eles fazem é o “menos mau”, o “que podia ser feito”, uma “boa solução num contexto difícil”, etc., etc.; passei a semana a ver comparar realidades más com previsões boas, como se fossem a mesma coisa; passei a semana a ouvir silêncios, sobre as últimas estatísticas da pobreza, das penhoras, das dificuldades económicas, aquilo que não interessa ao “Portugal positivo”; passei a semana a ver apontar uns putativos culpados pela “sabotagem” do Citius, quando durante meses ouvimos técnicos sobre técnicos, distintos professores (será que Tribolet também faz parte da conspiração sabotadora?) a dizer que aquilo era desastre certo; passei a semana ver imagens de cãezinhos de Pavlov a abrir os dentes ao som de “Sócrates”, como se o homem ainda estivesse no poder, para esquecer que de 2011 a 2014 foram outros que aprofundaram as desgraças que ele deixou, numa indigência política assustadora do que vai ser o ano de 2015; passei uma semana a ouvir tudo o que era gente séria a contar como está a ser cheio o Estado, as fundações ligadas ao Governo, as empresas, tudo quanto é lugar seguro e bem pago e com poder, de “amigos do ajustamento”, da turma da “justiça geracional”, sem parangonas, sem publicidade, agora cada vez mais depressa, porque se aproximam tempos difíceis e o PS vai querer o seu quinhão; passei a semana a ler histórias muito silenciadas sobre milhares de euros que foram para empresas de comunicação, quase sempre as mesmas, as que trabalham para o Governo, para as empresas do PSI-20, para as autarquias cujos presidentes eram ou são os principais controladores dos aparelhos partidários, do PSD em particular; passei a semana a ouvir dizer que os aviões russos “invadiram o nosso espaço aéreo”, “passaram junto ao nosso espaço aéreo”, “passaram no espaço controlado por Portugal”, “entraram no espaço europeu” (a Rússia é uma nação europeia…), e a ouvir o ministro que mais ajudou a destruir as nossas forças armadas agarrado à oportunidade de dizer que “operacionalmente” estava tudo bem, quando se percebe nas entrelinhas que está menos bem do que parece (quantos F-16 estão canibalizados para dar as peças aos que voam, qual a autonomia real dos que voaram?).
Passei a semana a ver com tristeza como está o meu muito amado país. Tudo a cair aos bocados na apatia e indiferença geral.
Chega. Passei-me. Vivam as libélulas!
(1 de Novembro de 2014)
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O VALOR DA BOA-FÉ NUMA SOCIEDADE QUE SE PRETENDE CIVILIZADA
Se há causa a que eu adiro sem reservas é a dos trabalhadores com reformas antecipadas do Metro de Lisboa, que viram as suas reformas cortadas unilateralmente do complemento que a empresa lhes atribuiu para os incentivar a reformar-se. Não se espantem, parece uma causa laboral como as outras, mas é mais do que as outras. É diferente.
Não é uma questão de “direitos adquiridos”, embora também o seja. Não é uma questão do cumprimento dos contratos livremente feitos, do sacrossanto princípio jurídico do pacta sunt servanda, embora também o seja. Não é questão de justiça social, embora também o seja. Não é sequer uma questão de austeridade, de repartição de sacrifícios, de acabar com uma situação de privilégios numa empresa pública. É uma causa cívica em que está em jogo um princípio moral que deveria ser a base da nossa sociedade democrática: a boa-fé.
Um dos piores dos meus anátemas contra este Governo é exactamente a destruição dessa boa-fé, como se fosse o acto mais normal do mundo, como quem respira, sem pensar duas vezes, até sem atenção, nem sequer preocupação pelos efeitos não apenas nas vítimas dos seus actos, mas no tecido social e nos laços que unem as pessoas numa sociedade civilizada e numa democracia em que todos somos proprietários e penhores do mesmo poder. Este à-vontade e esta indiferença pelo que é e significa a boa-fé vai ficar como uma mancha para o presente e para o futuro no tónus moral destes tempos.
Os trabalhadores reformados do Metro, muitas centenas de pessoas, incluindo pessoal qualificado, técnicos superiores, quadros administrativos, maquinistas, mecânicos, electricistas, pessoal da manutenção, etc., têm tudo contra eles. Nunca verão a sua causa chegar ao comentário mais fino dos grandes mestres da comunicação política televisiva, e não merecerão sequer qualquer atenção dos órgãos de comunicação social, para quem eles são um grupo, entre os muitos dos que protestam nestes dias, desvalorizados pelo desprezo que há nas redacções com as reivindicações laborais. Eles, insisto, têm tudo contra si.
São reformados, logo privilegiados em potência à luz dos alvos governamentais dos nossos dias. Mais: são muitos deles, reformados com idades a partir dos 55 anos, ou seja anteciparam as suas reformas, tornando-os assim preguiçosos potenciais que vivem “à custa dos jovens que não irão ter reforma quando forem velhos”. Violam esse conceito sinistro da “justiça geracional”, inventado por Passos Coelho e pela JSD, para culpabilizar os mais velhos. (Veremos depois porque é que se reformaram tão cedo). São trabalhadores do Metro, uma empresa pública de má fama, onde há greves “que prejudicam os utentes”, gerida pessimamente por várias administrações politicamente nomeadas, mas onde os prejuízos são sempre culpa dos trabalhadores. E tanto mais culpados quanto mais protestam e quanto maior for a mobilização do seu protesto. Muitos são sindicalizados, um crime nos dias de hoje. Numa altura em que as empresas públicas, de transportes em particular, são um alvo ideológico atirado à opinião pública, estes trabalhadores reformados, insisto reformados, têm que apresentar as suas queixas no meio de imenso ruído. Ou seja, ninguém os ouve.
O que é que aconteceu a estes reformados e como é que chegaram a esta situação? Foi política de gestão dos recursos humanos de várias administrações do Metro incentivar os trabalhadores a fazerem reformas antecipadas. A empresa entendia que ficava mais barato que os trabalhadores que fizessem 55 anos se reformassem, do que se ficassem no activo, diminuindo assim o número de trabalhadores do Metro. Outras empresas públicas (como a Carris) fizeram o mesmo, mas sem a dimensão do Metro, e algumas delas encontraram maneira de tornear os efeitos da reversão das políticas. Para incentivar essas reformas antecipadas garantiu-se aos trabalhadores que receberiam um complemento de reforma de modo a não perderem dinheiro no acto da reforma, inclusive pelo facto de esta ser antecipada. Não era uma política de opção empresarial indiferente, visto que foi prosseguida agressivamente pela empresa, com a publicação de listas dos trabalhadores com mais de 55 anos e cartas individualizadas a quem perfazia essa idade com as condições excepcionais que lhes eram atribuídas para os levar a reformarem-se. Estas passagens à reforma, que incluíam um complemento de reforma, foram negociadas em inteira liberdade (se exceptuarmos a pressão do Metro para as reformas antecipadas) e eram coerentes com os acordos vigentes na empresa, também livremente negociados. Centenas de trabalhadores reformaram-se, muitos dos quais já na vigência do actual Governo. Um deles disse numa entrevista que estas medidas "sempre foram incentivadas pelo Governo e própria empresa, para aliciar os empregados a aceitarem a pré-reforma e saírem da empresa". Tudo foi feito pelo maior bem da empresa, da boa gestão e da saúde da economia, com E grande, como agora se escreve nestes tempos. No dia 1 de Janeiro deste ano, o Governo violou o contrato que tinha feito. O corte unilateral dos complementos de reforma pelo Governo significou reduções de 40 a 60% nas reformas dos trabalhadores. Imaginem acordar no dia seguinte a ganhar menos de metade do que ganhavam no dia anterior e serem já velhos para arranjarem um novo emprego, terem encargos comportáveis quando se tinha uma outra reforma, ou seja, não era “viver acima das suas posses”, e ficarem agora sujeitos a dívidas e penhoras e acima de tudo, mesmo com a reforma por completo, vivia-se no remedeio. Não estamos a falar de gente rica, mas de trabalhadores, daqueles que se espera num país civilizado que engrossem a classe média, educando os seus filhos para viverem melhor do que os pais, acederem a consumos com que os seus avós nunca sonharam. É assim que se cresce, melhora, se avança. É isto que é o melhorismo social, a melhor garantia de um crescimento económico. E não me venham com os argumentos ad terrorem da “inevitabilidade” que, podendo ir bater a muitas portas onde há fartura, vai sempre bater nos mais fracos, nos que têm menos defesa, nos que é mais fácil vilipendiar. Ou noutra forma de argumentos ad terrorem como seja a de que há muita gente ainda pior, e que seria pior se acordassem no dia seguinte no desemprego, porque em vez de metade não teriam nada. E se morressem de noite não seria pior? Os trabalhadores reformados do Metro não têm muitas defesas, mas têm razão, razão política e razão moral, o que não é pouco. Muitos trabalhadores reagiram dizendo que, se era assim, apresentavam-se na empresa para trabalhar nas condições que tinham antes de serem empurrados para a reforma. Recorreram ao Tribunal Constitucional e perderam, numa das decisões mais injustas que esse Tribunal tomou nestes últimos anos, que também as tem tomado. Mas o problema que está presente neste caso é um problema de boa-fé, e do papel da boa-fé numa sociedade democrática e que pretende regular-se por regras de conduta civilizadas. Nem sequer pretendo discutir o que isso significa, “civilizadas”, porque toda a gente sabe o que é. E sabe também o que significa a boa-fé: significa que, se quando o governador do Banco de Portugal, seguido pelo Governo, defendeu que devia ser possível antecipar reformas com pagamento dos salários integrais, para afastar das empresas os trabalhadores com mais anos de casa e “que passam a vida nos médicos”, devia colocar-se um cartaz pestífero a dizer: não aceitem o engodo, não acreditem neles, querem enganar-vos e, depois de se reformarem, cortam-vos o que vos prometerem no passado para vos empurrar para a reforma. Como fizeram com os trabalhadores do Metro. Eles são gente de má-fé. (url)
CARTAS PORTUGUESAS A LUDWIG PAN, GEÓLOGO E AGRIMENSOR NA AUSTRÁLIA
Meu caro Ludwig Pan
Sei que chegaste à tua Colónia bem de saúde e bem de viagem. Fica pois sabendo que estas cartas de novas da minha infeliz pátria têm sido plagiadas num jornal de cá, em tom menor, muito menor, vagamente engraçado, mas ao estilo truculento que se usava no passado. Uma vergonha, mas o exemplo vem de cima. É o preço da tua fama, indo como foste, para tão longes terras, tornaste-te exótico e isso dá imprensa. Registe-se.
Que mais devemos registar, agora que o plágio está na moda? O habitual, tão habitual que é profundamente aborrecido se não fosse trágico para muita gente. A nossa vida pública lembra aquelas gazetas de Veneza do século XVIII e XIX que noticiavam pouco mais do que as quedas nocturnas de alguns vadios aos canais onde, para sua sorte, eram muitas vezes pescados vivos, ou não. Monsenhor Paolo Testa escorregou e caiu. Contrariamente ao que dizem as más-línguas, especialidade veneziana, não estava “ubriaco”. E por aí adiante.
É assim por cá, eles caiem todos os dias à laguna, e logo a imprensa vem dizer que não, não foi por mal, não foi por incompetência, não foi por terem posto o pé onde não deviam, não foi por ignorância das leis da gravidade, não foi por nada. Foi o destino, a troika, as imposições de Bruxelas, a tua governante Merkel, a alma do Sócrates, a nossa resistência endémica à mudança, a conjuntura europeia, o Tribunal Constitucional, etc., etc. Pretextos para explicar a queda nas águas fétidas são muitos. Há até um grupo de comentadores que se especializou em explicar que, apesar de um dos pés ter falhado na borda do canal, uma má coisa, há uma outra boa, visto que o outro pé permaneceu uns segundos mais em terra.
É como o Orçamento, “tem umas coisas más e outras boas”… as boas são as previsões hipotéticas e umas migalhas em nome da natalidade, a única “causa” do governo e da Associação das Famílias Numerosas. As más são a “má condução da imagem do governo”, a briga em público entre o número um e o número dois, o mau timing de algumas medidas, ou seja, minudências de coreografia política. Estamos assim, meu caro Ludwig, enterrados na laguna até ao pescoço. Como homem ilustrado que és, sabes muito bem o que aquelas águas transportam.
E que mais te conte, agora que estás na civilização? Como é comer num prato, dormir numa cama, beber um Gewürztraminer, e olhar de frente com gula um Eisbein? Faz a ti próprio o favor de te poupar a esse miserável complexo de culpa alemão diante do prazer, que nos deu o pior da Alemanha, o romantismo, a obediência, a burocracia, o idealismo filosófico, a organização, e os Verdes. Como te sei não atreito aos outros males alemães, aliás bastante filhos destes, a última coisa que desejaria era que a prolongada estadia nos antípodas com os aborígenes, te tornasse num bom selvagem transposto para a Germânia, a comer tofu, algas, pastas com a palavra biológica, iogurtes de aloé vera e a beber água de uma qualquer nascente pura e cristalina nos Alpes. Bom, neste último caso, sei que não vais ceder à lei seca, porque afinal sempre havia bons whiskeys na Austrália, e recordo-me que me falaste com entusiasmo dos da Tasmânia, feitos por demónios com duas pernas.
Falo-te com acinte dessa praga adjectivada de “verde”, que na minha pátria, serviu para aumentar os impostos, com o mais nobre dos motivos, que “passa” sempre bem. O álcool também subiu, e o tabaco, os velhos impostos do vício. Aqui combate-se pela moralidade da alma e do corpo, com grande convicção do Fisco. Só é pena que os intérpretes desse combate pela “moderação fiscal” aumentando os impostos, não tenham o hábito de não mentir. É feio, mas cá por casa tornou-se tão corrente que já não se dá por ela a diferença. Acho aliás que, quem disser uma verdade, é que vai parecer que está a mentir. Sim, meu caro Ludwig, somos nós que estamos verdadeiramente nos antípodas, a andar com a cabeça para baixo.
Poupe-te pois a mais novas, que seriam aliás antigas e más. Nós por cá todos bem. Já não temos BES, só Novo Banco, já não temos governo, só um conglomerado de pessoas que se reúne às quintas-feiras, já não temos “jóias da coroa”, nem PT, nem Bava, nem anéis e vamos a caminho de vender os dedos aos chineses. Será que há alguma mezinha de farmacopeia oriental com “dedos portugueses em pó” para tratar de algum mal pernicioso? Já não temos economia, nem ensino, nem justiça. Já não temos “fanatismo orçamental”. Ri-te. Já não temos país, só nome. Passa por cá no teu regresso à Austrália, somos a última praia antes do Oceano, a seguir a Espanha e antes de sobrevoares Casablanca.
É.
Nós por cá todos bem. Mas traz a flauta e uma garrafa de schnaps. As pessoas são boas, estão é muito estuporadas.
Um abraço deste teu amigo
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TEMOS GOVERNO? NÃO TEMOS. JÁ HÁ MUITO TEMPO
A noção de que há um governo implica que exista um órgão colectivo que se reúne periodicamente, discute questões, umas mais gerais, de orientação, táctica e estratégica, outras mais limitadas como questões de condução política de um assunto, questões prementes do presente não antecipadas. Regularmente encontra-se para discutir legislação, que pode ser de um ou outro ministro, mas é decidida em conjunto com responsabilidade de todos. Para assegurar o funcionamento regular do governo existe um batalhão de assessores, secretárias, chefes de gabinete, pessoal do mais diverso, que prepara a ordem de trabalhos dos conselhos de ministros, distribui atempadamente os documentos, e elabora notas e pareceres que acompanham a legislação proposta. Sobre toda esta pesada máquina burocrática preside o Primeiro-ministro ou quem ele delegar. Por fim, redige-se um comunicado, que hoje se sabe esquece ilegalmente alguns pontos aprovados (como aconteceu no processo do BES), e existe uma conferência de imprensa semanal que apresenta o que foi decidido, muitas vezes de uma forma pouco esclarecedora, visto que algumas decisões são pré.anunciadas, ou anunciadas, sem estarem estudadas e passadas para lei.
DESGOVERNO
Tudo isto é muito bonito, mas por cá não se governa assim, desgoverna-se. Muita da legislação que chega ao Conselho de Ministros é tão mal feita que tem que ser corrigida várias vezes. Por exemplo, a legislação sobre arrendamento ou falências. Noutros casos a vil intenção é tão capciosa que só mais tarde se percebe ao que vinha o legislador. Foi o caso da legislação que proíbe os funcionários públicos reformados e pensionistas, como os professores universitários, de prestar trabalho gratuito em áreas em que são os mais especializados e conhecedores, pelo que não estão a tirar trabalho a ninguém e a servir o bem público. Como se desconfia dessa geração “velha”, que não engole tão facilmente muitas das patranhas circulantes, trata-se de os afastar da vida pública o mais possível, não vá dizerem coisas. Por aí adiante.
CACOFONIA
Mas a questão principal é mais simples de definir: é que não há governo, nem nos mínimos dos mínimos. A questão do IRS é discutida na praça pública, entre actos de propaganda e insinuações mútuas, entre o Primeiro-ministro e o Vice-Primeiro-ministro. No mesmo dia um diz A e o outro diz B, um quer parecer duro e “difícil” na sua missão austeritária, e outro partidário da “moderação tributária” (uma daquelas fórmulas vazias que Portas usa como “eurocalmo”). Na verdade, ambos estão ao mesmo: o abaixamento simbólico do IRS (registe-se simbólico) é um dos pratos da ementa eleitoral de 2015. Só que Portas quer fazer crer que a ele se deve a benesse, Passos Coelho quer fazer o brilharete de que as migalhas do IRS, arduamente conseguidas pelo governo, são a mostra do “sucesso” da política governativa. No final haverá muito pouca coisa e muita propaganda, mas só num país já com expectativas tão baixas se pode ser indiferente a este espectáculo de “governo na praça pública”, ou seja de não-governo.
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MOEDAS E O SEU ORÇAMENTO
A representação portuguesa na Comissão europeia passou de oitenta para oito, mas a excepção foram os oitenta. Há ainda muito para esclarecer sobre o que aconteceu com a escolha de Barroso, mas a escolha do pelouro de Moedas é normal. Podíamos ter tido melhor? Parece que sim, a julgar pelas notícias sobre Silva Peneda, que não foi indicado por politiquice doméstica, porque não faz parte da coterie do Primeiro-ministro. Mas esse upgrade era um mérito individual de Peneda, não um “direito” nacional. Nacionalmente tínhamos direito a Moedas e temos Moedas que, estou convencido, fará um trabalho com uma suficiência que não voará, mas também não nos envergonhará.
Agora, a máquina de propaganda continua a actuar com impunidade, com a falta de vigilância crítica que a nossa comunicação social revela sempre face ao poder. É que os oitenta mil milhões que foram avançados como o orçamento que Moedas iria gerir, um “argumento” para emproar a importância do seu cargo, não são para ele gerir, mas sim para ele co-gerir. É dinheiro que vai ser usado transversalmente por vários comissários numa hierarquia em que Moedas está no patamar de baixo. Convinha ver os organigramas e as declarações europeias sobre por onde passa esse orçamento. Mas, como serviu para sugerir que afinal o nosso “amigo” Juncker nos tinha dado um grande presente (que não deu), lá veio a propaganda sem contraditório.
(url) 18.10.14
Um dos livros mais interessantes sobre o modo como se pode condicionar a opinião foi publicado há uns anos por Paul Hollander e chamava-se Peregrinos Políticos.
O livro retratava o modo como nos países socialistas, da URSS a Cuba, passando pela China, se usavam os intelectuais para os tornar instrumentos não voluntários de propaganda dos regimes comunistas. Uma parte considerável fazia propaganda porque queria, mas Hollander analisa os mecanismos involuntários, muito mais interessantes e acima de tudo muito mais eficazes para os tornar porta-vozes de regimes políticos com que muitos deles nem sequer simpatizavam. A vaidade era um dos mecanismos mais usados, tratando intelectuais e literatos menores como se fossem gigantes da literatura, em claro contraste com a importância e a reverência que lhes era dada nos seus países de origem. O resultado da lisonja era uma predisposição para aceitar a manipulação e reproduzir a propaganda.
Um dos exemplos deste tipo de comportamentos, mais sofisticado, encontrava-se num célebre crítico culinário, de um dos grandes jornais americanos, conhecido anticomunista e que foi convidado pelos chineses. Chegado à China, ofereceram-lhe uma viagem em que lhe foram servidas as maiores iguarias da cozinha chinesa. O resultado foi uma série de artigos do crítico maravilhado, descrevendo as qualidades excepcionais das refeições que lhe serviram, a confecção, os ingredientes, a aparência, tudo do melhor que havia. O anticomunismo do crítico sofisticado do jornal ficou pelo caminho e os artigos que escreveu acabaram por corresponder aos desejos dos anfitriões. Fora da cozinha e da mesa, deixou de haver China, comunismo, repressão, violência.
A apresentação do orçamento de estado, complementado em simultâneo com dois conjuntos de legislação com impacto orçamental, mas separadas do corpo principal, as mudanças no IRS “pró-família” e a “fiscalidade verde”, tem tido efeitos parecidos com a complacência do crítico americano com o comunismo chinês, obtida por via da comida. Trata-se de uma operação em que a realidade, a dura e crua realidade de que nos espera mais um ano de extrema austeridade, disfarçado com uma nuvem cor de rosa de palavreado, distracções, disfarces e mesmo mentiras, usando em pleno todos os mecanismos com que se pretende manipular a opinião pública. O resultado é um ar ainda mais poluído pela propaganda, nem sempre muito sofisticada, como os pratos chineses, mas adaptada às características dos que a servem ou a provam.
Começa pela apresentação simultânea de três documentos: um péssimo, um mau e um bom. O péssimo é muito péssimo e é o Orçamento, de longe o mais importante dos três. O bom documento contém as mudanças pró-família do IRS. O mau é o aumento dos impostos da “fiscalidade verde”. Embora possa haver argumentos técnicos para separar as medidas do IRS do Orçamento, a verdade é que noutras alturas o governo não o fez. O objectivo neste caso, para além de poder concentrar a atenção no “bom” papel e ocultar os “maus”, é usá-lo para entalar o PS: então o PS nega-se ao “consenso” sobre medidas favoráveis à família? Não pode. E assim se obriga a oposição a dar caução ao “bom papel” e amenizar, por essa caução alargada, o efeito negativo do conjunto do Orçamento. Canaliza-se a discussão para o que interessa ao Governo e, queira-se ou não, favorece-se uma interpretação benigna do conjunto do Orçamento. Quanto à “fiscalidade verde”, faz-se o mesmo que habitualmente se faz com os chamados “impostos do vício”, o politicamente correcto do “verde” ajuda a legitimar mais um aumento de impostos puro e simples. E aí ficamos distraídos com os sacos de plástico, muitos dos quais já são biodegradáveis e por isso “verdes”, e falamos menos dos aumentos nos combustíveis e nos transportes. Ao destacar este diploma, pode-se assim dizer que não há aumentos de impostos no Orçamento, visto que a “fiscalidade verde” fica à parte. Na verdade, no cômputo global dos três documentos, mesmo incluindo o “bom”, a carga fiscal aumenta, visto que se vai buscar mais dinheiro do que o que se devolve às famílias. Ou seja, o dinheiro que os portugueses vão pagar ao estado aumenta. Como é que é assim possível que o Primeiro-ministro e a Ministra das Finanças e os seus propagandistas digam que não há aumentos de impostos? É possível apenas porque somos complacentes com a mentira, tão habituados estamos a viver no seu seio. Depois há vários truques habituais e um truque novo, mas com os métodos habituais. O chamado “cenário macro-económico” é tido por quase todos os economistas e por várias instituições como “irrealista” ou como não-credível, o que não é de estranhar visto que nenhum dos anteriores cenários do mesmo tipo feitos por este governo acertou. Os mais amigos do governo limitam-se a dizer que, se essas previsões acertarem, é porque se deu um “milagre”. Eu sei que há economistas que acreditam em milagres, mas não vi Nossa Senhora descer em pleno conselho de ministros. Sendo assim, como é possível titular, sem aspas ou autoria, que no próximo ano o crescimento será de X, ou que o desemprego descerá Y, misturando assim na mente das pessoas uma previsão com a realidade? A propaganda faz-se destas confusões. Umas vezes usa-se um critério, outra vez outro, umas vezes é uma percentagem de um número, outras vezes de outro, umas vezes compara-se com um ano, outras vezes com um outro, umas vezes compara-se com um número real, outras vezes com uma previsão que nos dá jeito. Era uma especialidade de Sócrates, é uma especialidade de Passos Coelho. Estes truques já são velhos, mas servem sempre para aumentar a confusão, o “manto diáfano da fantasia” que esconde o núcleo duro da verdade. Outras mentiras ajudam ao serviço, a das medidas “provisórias” que são definitivas, e a nova versão de continuar a tirar no presente e prometer que no futuro se dará o que se tirou. A única verdade, absoluta, certeira, sólida, densa, pesada, é que este Orçamento é mais um de muitos, se incluirmos a sucessão reveladora de rectificativos, todos da mesma a natureza, destinados a cobrir falhanços, feitos com muita incompetência, muito dolo, muito engano, muita propaganda, muitas ideias péssimas. Começaram por ser apresentados como orçamentos salvíficos do “homem novo” liberal, que ia “libertar” a economia, acabar com os que viviam à custa do estado e dos “direitos adquiridos” e alcandorar, à vanguarda da nação redimida, os empreendedores. A troika era apenas um bem vindo milagre externo para ajudar à redenção do país dos “piegas”. Depois, à medida que as coisas iam falhando, passou-se aos orçamentos “obrigatórios” da troika, vista agora como jugo. Lamento, mas não acredito em nada do que estes senhores dizem. E quando não se acredita neste logro institucionalizado, a nossa cabeça passa a pensar com meridiana clareza. Já não acredito há muito tempo e não acreditando, engano-me muito pouco. Pode parecer soberba, mas é puro bom senso, ou, quando muito, alguma atenção aos homens, aos actos e às palavras. Nunca me esqueço que o criador deste governo e deste Primeiro-ministro se chama Miguel Relvas, com a ajuda prestimosa de José Sócrates. Nunca embarquei nas medidas “provisórias” e disse sempre que seriam definitivas até ao Tribunal Constitucional lhes por um travão. Nunca acreditei nas “reformas estruturais” que nunca passaram de despedimentos e cortes. Nunca aceitei chamar "poupanças”, nem “cortes nas despesas” aquilo que eram apenas cortes cegos, muitos dos quais de vão pagar muito caro, em novas despesas, como se vê na justiça, na educação, nos serviços públicos. Nunca aceitei chamar “ajustamento” ao empobrecimento e destruição da classe média, e no enclausuramento dos pobres numa redoma de assistência e caridade. Nunca deixei de olhar para os meus concidadãos e ver aquilo que as estatísticas revelam, mas revelam mal: a vida estuporada, até ao fim dos seus dias, de muitos e muitos, em nome de experiências, ilusões e incompetências, para chegar aos dias de hoje e terem que ver servidos, no seu imaginário prato, mais do mesmo. Sem uma reforma do estado digna desse nome, sem uma melhoria de nada, sem nenhuma transformação estrutural. Apenas mais engano e propaganda, sem convicção sem ânimo. Quando cada vez mais leio os propagandistas do regime, os maiores e os menores, a culparem o país e os portugueses, essa turba de amantes do “estado” que não querem reformas, que não se deixam governar, que são medíocres e … piegas, eu percebo muito bem que para eles soa já ao fim. Eles são bons, o país não os merece. E é verdade, o país não os merece. Merece muito melhor. (url) 11.10.14
ABJECÇÃO
A proposta da Ministra da Justiça para a criação de uma base de dados de “pedófilos” (depois explico porque coloquei aspas), a que possam ter acesso pais de crianças, ainda que com obrigação de manter o sigilo, de modo a saber se entre os seus vizinhos há alguém que tenha sido condenado por pedofilia, é, do meu ponto de vista, abjecta.
Escolhi deliberadamente esta palavra forte, porque a proposta ofende normas escritas e não escritas do que é (ou deve ser) o funcionamento de uma sociedade que desejamos civilizada. Terei que repetir a litania óbvia, que o que digo não significa menorizar o crime da pedofilia, nem “proteger” os agressores (que neste caso já cumpriram pena), nem deixar a preocupação com a protecção das crianças e dos menores dos seus abusadores, o que não é a mesma coisa. Custa-me ter que estar a repetir este óbvio, mas seja. Pode ser que assim fique claro que este artigo não é tanto sobre a pedofilia, como sobre o funcionamento de uma sociedade civilizada. Nem, em bom rigor, é sobre os “direitos” dos pedófilos, como não é sobre os “direitos” dos assassinos, embora numa sociedade civilizada quer uns quer outros tenham direitos. Escrevi pedofilia entre aspas porque a palavra é das mais ambíguas que por aí correm, mais sujeita a simplificações, deturpações e ignorâncias. Estamos perante realidades muito diferentes entre si, umas de claro carácter patológico, outras da ordem das perversões sexuais, outras criminosas, e outras dependentes de factores sociais e culturais. Outras ainda, indevidamente classificadas na pedofilia, que na percepção popular inclui o abuso de menores, como se fosse a mesma coisa. Outras, por fim, mais complexas, como a percentagem, mais alta do que se imagina, de pessoas com uma vida sexual normal e que nunca cometem qualquer crime, mas que também se sentem excitados com imagens de crianças. É caso de alguns consumidores de pornografia, que também vêem ou adquirem imagens proibidas e criminosas. Repito o que está em muitos estudos, sem sombra de justificação, mas apenas para revelar que o mundo a preto e branco é mau conselheiro para estas questões. Existem classificações jurídicas precisas, mas aquilo de que trato é da percepção popular e mediática da pedofilia, que é o fundo, entre o medo legítimo e a ignorância populista, para que esta proposta governamental remete. Deixemos, por isso, o direito de lado, porque só por ilusão é que esta proposta tem a ver com um estado de direito. Remete para medos mais do que para riscos, e defronta mal os riscos. A verdade é que o debate sobre a pedofilia está de tal maneira inquinado pela obsessão mediática com o assunto nos últimos anos, que data do “affaire Dutroux” de 1996 na Bélgica, que incluía pedofilia e assassinato, que não é possível qualquer discussão razoável sobre o assunto. Hoje, o crime hediondo por excelência é a pedofilia, antes não o era. Tudo pode ser feito, se do outro lado estiver um pedófilo real ou imaginário, e, se o “povo” mandasse, inclusive a pena de morte. A história da percepção da pedofilia, (como por exemplo da violência doméstica), é relevante para que se seja capaz de relativizar o tema. Para quem consulta os cortes da censura nos anos do salazarismo, na secção das “questões morais e de costumes”, encontra muitas notícias que hoje seriam enquadradas na pedofilia, mas que antes eram classificadas como “abuso de menores”, ou actos, reprováveis sem dúvida, mas a que a sociedade não dava grande importância. A censura cortava, mas não se escandalizava. Pedofilia, pura e dura, existia diante dos olhos de todos ainda há uns anos e ninguém queria saber disso para nada. Aliás, numa mistura de ignorância e hipocrisia, existia também na sociedade portuguesa, onde era possível que algumas celebridades do mundo artístico, da poesia, da música e do jet set se passeassem com pupilos entregues por pais e mães (mais neste caso por mães), que apareciam como governantas, caseiras ou empregadas de confiança, num trade off económico e social a que ninguém dava importância. Casos de pederastia e de pedofilia, apareceram em revistas do coração e do jet set, como se a mais normal das companhias para um adulto fossem menores pré-púberes em fotos nas piscinas e nos restaurantes. O grande argumento a favor de um registo de pedófilos é o carácter compulsivo do crime, e o risco da sua repetição. Mas se é assim estamos perante algo que é da ordem da doença e deve ser tratado como uma doença. Acresce, que não vejo muitas estatísticas a apoiarem as afirmações da Ministra sobre a reincidência em Portugal, tanto mais que o contexto conhecido da maioria dos crimes de pedofilia em Portugal é o familiar. Ou seja, outro mundo bem diferente dos filmes de Hollywood em que a pedofilia e o serial killing são tratados de forma idêntica. São coisas de pais com filhas e amigas das filhas, de tios com sobrinhas, de padrastos e padrinhos com enteadas e afilhados. Sem dúvida que deve prevalecer o “superior interesse da criança”. A questão é saber se a prevalência desse interesse é garantida por estas medidas, o que muito duvido. Um pedófilo compulsivo, não se deterá na obrigação de dizer qual é a sua residência à polícia e procurará fora do registo, encontrar as suas vítimas. O registo será um pesadelo é para aqueles que tendo sido condenados por pedofilia, muitos dos quais não são pedófilos na definição rigorosa do termo, e que, cumprida a sua pena, queiram andar com a sua vida para frente. Os defensores da proposta indignam-se muito quando se referem estas possibilidades mais que realistas, com afirmações do género de que o “superior interesse da criança” prevalece sobre tudo o resto e que, portanto, as acusações de que o registo é uma forma de “condenação perpétua” são irrelevantes. Eu não sei se a Ministra sai à rua, à rua física, ou à rua da Internet. Eu já vi, e mais do que uma vez, cartazes em A4, feitos numa impressora e num computador caseiro, com uma fotografia do sr. X ou Y, e com dizeres do género: “atenção, X (nome completo), que mora aqui (endereço completo), é pedófilo. Cuidado com ele”. Não sei se é verdade ou mentira, mas um cartaz desses é de uma enorme violência. Ninguém os assina, ninguém os valida. Mas estão lá, as mesmas informações que a base de dados dará aos pais e que virão para a rua inevitavelmente, de forma anónima, num cartaz, ou num grafito, ou num panfleto anónimo. Daí a chegarem ao Correio da Manhã, é só encontrar um pretexto hábil. Estou a ver, sem sequer ser necessário ter muita imaginação: “jardim infantil abriu ao lado da residência de um pedófilo”. Ou, residentes do bairro X, querem que o senhor Y saia do seu bairro e um grupo de mães irá de cartazes para a sua porta dizer “rua! Queremos um bairro livre de pedófilos!”. Passou a ser notícia. Quem é que vai querer no seu prédio, na sua rua, no seu bairro, um homem (porque estamos quase sempre a falar de homens) que está registado na lista de pedófilos oficial, ou seja, que o Estado considera perigoso para as crianças? Tenho poucas dúvidas, mesmo na minha ignorância jurídica, de que a proposta é inconstitucional, pelo que não é a sua efectivação que me preocupa. Se, por absurdo, a proposta fosse constitucional, então não precisaríamos de constituição para nada, porque impera a lei da selva em múltiplas formas, condenações perpétuas, justiça privada, violação de direitos. O que me preocupa é outra coisa: é o que ela revela dos costumes da sociedade que estamos a construir. Porque não se trata apenas de erigir um pelourinho no meio da praça, mas de ir para além da imagem do pelourinho, porque é errada a sugestão de que esta proposta é arcaizante. Bem pelo contrário, é moderníssima. Só seria possível numa sociedade mediática, com Facebook, Internet, telefones inteligentes e tablets, porque transporta a lei da selva em muita Internet para o meio das ruas. E isso é muito perigoso, também para o “superior interesse da criança”, que inclui viver numa sociedade regulada e mediada, que defronta todos os problemas, mesmo os que nos parecem mais repulsivos, com limitações, a mais importante das quais é a de que não vale tudo. (url) 4.10.14
Já se percebeu que o “argumento Sócrates” vai ser um dos principais instrumentos de combate a António Costa e ao PS. Ele fala, ou, mais comummente, não fala, e Sócrates é atirado para cima da mesa como a pedra de serviço.
É um pouco pobre como argumento, mas não deixa de ter alguma eficácia marginal, à falta de melhor. É verdade que Sócrates é um dos principais responsáveis pelo estado calamitoso do país, tornou-se uma personagem que provoca uma imediata repulsa, tem uma imagem pública pelas ruas da amargura e a mera evocação do seu nome provoca fúria. Muitos portugueses detestam-no com grande convicção e tornou-se símbolo de uma era cujo resultado foi a bancarrota e a troika. Num ou noutro aspecto, o balanço da sua actuação como Primeiro-ministro podia ser mais mitigado, - nem tudo é de sua inteira responsabilidade, - mas o que sobra de sua directa e intransmissível responsabilidade, mais que justifica o anátema que caiu sobre o seu nome. Quem não percebe isso vive na Lua.
Mas a história de Sócrates, convém recordar, não é a preto e branco e muitos dos que hoje andam com as pedras com o seu nome para atirar ao PS tem bem pouca autoridade para o fazer. Eu sei, até pela minha experiência de crítico, - que pode ser consultada no arquivo destes artigos, - como era solitário e incompreendido criticar Sócrates. No PSD, sim no PSD, nos mesmos meios que se colaram com cola-tudo ao “ajustamento” e ao governo salvífico de Passos Coelho-Gaspar-Portas, desde os altos negócios, ao aprendiz de feiticeiro num mini-blogue, houve louvaminhas a Sócrates que nunca mais acabavam.
Sócrates foi endeusado por muitos os que saíram dos almoços de negócios e dos escritórios de advogados, das recepções e inaugurações, dos gabinetes e dos telefonemas, onde o frequentavam e incensavam, para agora o tratar como demónio vivo. Eu li milhares de palavras sobre como Sócrates era o representante de um “novo” socialismo moderado, aberto ao mercado e aos negócios, cujos esforços para corrigir o défice deixado por Santana Lopes, era notável e apoiando-o nalguns dos conflitos corporativos mais duros que o seu governo teve, como o dos professores. Havia igualmente a tese, que sempre combati, de que Sócrates tinha tirado “espaço político” ao PSD, governando como um social-democrata e que isso marcava um ponto sem retorno ideológico e político. Passos Coelho, então desenvolvimentista contra Manuela Ferreira Leite que dizia que “não havia dinheiro”, estava muito próximo de Sócrates na visão, nem mais nem menos, … das grandes obras públicas. Estão todos esquecidos, não é verdade?
Mas há mais: quando o nome de Sócrates começou a aparecer em todas as trapalhadas, suspeitas, histórias e negócios, do curso às marquises, do Freeport à Cova da Beira, do bizarro contrato com Figo à tentativa de controlar os media, a TVI em particular, usando a PT, quando se conheceram detalhes da iniciativa dos magistrados de Aveiro de processar Sócrates por abuso do poder, somaram-se as declarações em sua defesa de Passos e Miguel Relvas, queixando-se que lhe estava a ser movido um “ataque pessoal”. Este par do PSD protegeu Sócrates quanto pôde das consequências que podia ter o inquérito parlamentar, considerando que não se devia ir mais longe, de novo porque isso seria um “ataque pessoal”. Isto vindo do mesmo homem, Passos Coelho, que há uma semana, referindo-se claramente a Sócrates numa insinuação disse: “Não possuo riqueza acumulada nem tenho em nome de tias, filhos e primos quaisquer bens”. Estamos conversados. É por isso que eu não aceito o “argumento Sócrates” em 2014 e espero que o “argumento Sócrates” se transforme no “argumento Sócrates-Passos Coelho-Portas”, identificando-se assim a tripla que, desde pelo menos 2008, e até antes, ajudou a destruir Portugal, a destruir a sua economia e finanças, a por em causa a sua independência, a alterar profundamente os equilíbrios entre grupos sociais, a dividir os portugueses atirando-os uns contra os outros e aprovar muitas medidas iníquas, que minaram a boa-fé que deve presidir à actuação do estado em democracia. E que ajudaram a que a democracia portuguesa conheça um crise de representação muito grave. Sócrates e Passos Coelho não destruíram os mesmos aspectos, não destruíram as mesmas coisas nem da mesma maneira, não actuaram de modo igual, mas deixaram um rastro demolidor de que o país muito dificilmente se vai livrar tão cedo e vai condenar muitos portugueses a passar os últimos anos da sua vida sem esperança nem destino que não seja empobrecer e ficar cada vez pior. Ambos mostraram pouco apreço pela lei e pelo estado de direito, actuando no limite ou para além da legalidade, ambos se rodearam de cortes interessadas e interesseiras com origem nos seus partidos, permeando os lugares de estado com os seus boys, numa exibição de prepotência com base nas suas maiorias absolutas. Um esbanjou sem controlo milhões e milhões em projectos “bandeira” e em “má despesa pública”, outro dividiu os contratos entre os de primeira (PPPs e swaps, tributos aos credores) e os de segunda (reformas e pensões, acordos colectivos de trabalho, compromissos laborais, etc.), criando desequilíbrios que fazem com que os frutos do trabalho e da riqueza sejam hoje pior distribuídos. Ambos permitiram a captura do sistema político pela banca, com os resultados que o caso BES revela em todo o seu esplendor. E ambos usaram e abusaram dos poderes do estado para colocarem os cidadãos no seu sítio, quer fosse com o fisco, com a inversão do ónus da prova, quer fosse a ASAE a multar restaurantes por causa dos galheteiros. Ambos foram total e completamente anti-liberais, no plano económico, social e político. Sócrates e Passos Coelho são muito diferentes, mas são também muito iguais. Aquilo em que foram e são mais iguais é na amoralidade que introduziram e reforçaram na vida pública, aqui também com a prestimosa ajuda de Portas. A moralidade na vida pública não se nota quando existe, mas torna-se um monstro que inquina tudo quando não existe. Ambos usaram do dolo, do engano como método de governar, utilizando todas as técnicas das agências de comunicação e marketing, as novas formas de propaganda. Ambos desconhecem o seu país, não gostam do seu povo, não prezam a sua independência, fazem gala de não precisar da História para nada e são incapazes de aprender, embora sejam muito capazes de se adaptar, sem memória, nem honra, nem compromisso com a verdade. Em suma, eles marcaram a chegada ao poder de uma geração de governantes muito iguais entre si, gente mal formada, mal preparada, mal-educada, mal instruída e mal-intencionada. De gente como Sócrates e Passos Coelho. É isto que o “argumento Sócrates” me lembra. Nunca o utilizarei a não ser em tandem com o “argumento Passos Coelho”. Até porque, convém recordar, que quem está no poder é o segundo e não o primeiro. E quanto a António Costa eu só posso desejar que não repita os erros trágicos de Sócrates e que não repita os erros trágicos de Passos Coelho. Até, porque, realisticamente, não é impossível que venha a repetir mais facilmente os erros de Passos Coelho do que os de Sócrates. Vamos ver. (url)
© José Pacheco Pereira
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