ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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4.12.14
O COMBATE POLÍTICO DE SÓCRATES NÃO É O NOSSO
Agora que José Sócrates entra no seu último grande combate político – que é como ele olha para a sua prisão e para as acusações que lhe são feitas – e quando o ano eleitoral vai ser dominado pelo confronto entre os que vão usar a sua “culpabilidade” contra o PS, exigindo demarcações e purgas, e os que vão ver na prisão de Sócrates uma última manobra dos “malandros” que nos governam – duas teses politicamente fortes – resolvi andar para trás, para a memória.
Deixei de lado o argumento “responsável” de que “o que é da Justiça é da Justiça” e “não se deve misturar Justiça e “política”, porque isso pouco mais é do que “linguagem de madeira”, langue de bois, que se pode recitar (e desejar), mas que será varrida pela vida pública concreta que em democracia não é asséptica e inclui tudo: vinganças e amizades, desejos e medos, suspeitas e certezas, imagens e factos. Como é que chegamos aqui? Para quem escreve todas as semanas nos jornais isso significa: viste o que aí vinha?
No livro que publiquei sobre os “dias do lixo” não os comecei por Passos Coelho, Relvas, Gaspar e companhia, mas pelos últimos anos de José Sócrates. Foi aí que começaram os “dias do lixo”. No dia 16 de Outubro de 2010, governava Sócrates, escrevi no Público um conjunto de frases para os “tempos de hoje”. Peço desculpa de me citar, mas a gente também tem de ser avaliada pelo que disse, com data.
As frases eram dirigidas a Sócrates, a um Sócrates que tinha ganho as eleições e estava em plena loucura de esbanjamento, e a Passos Coelho, a um Passos que tinha então um discurso contra Manuela Ferreira Leite muito próximo do de Sócrates. Sócrates caminhava velozmente para o PEC IV e a bancarrota, Passos Coelho tinha posições pouco distintas de Sócrates, recusando a austeridade do PC IV, a última que se poderia ter tido sem troika, porque a achava “excessiva”. Passos Coelho prometia não aumentar impostos, nem despedir ninguém, nem cortar subsídios de Natal, nem tocar nas reformas, mas apenas atacar as “gorduras” do Estado.
Ambos estavam pior do que ceguinhos. Quando falo a seguir de austeridade, falo contra Sócrates e Passos Coelho. E quando elogio a determinação sobre o défice, a dívida, não falo do Passos Coelho de 2012-4, porque os problemas que ele defronta hoje foram em grande parte criados por ele próprio, pelo modo como teve de lidar com o descalabro orçamental gerado pelas despesas sociais resultado da “surpresa” do desemprego e pela depressão na economia. Como escrevi então, a boa política é a “a que escolhe as melhores medidas de austeridade e evita as más medidas de austeridade”. Não foi o que aconteceu, a “austeridade” foi conduzida por um programa ideológico, uma profunda ignorância do país e muita incompetência – por isso, os problemas que defrontamos hoje são fruto de Sócrates e Passos Coelho em conjunto.
Retirei uma ou outra frase, não porque não as pudesse incluir, mas para economia da citação, já de si bastante pouco económica. Serviam apenas para reforçar a frase anterior. Apesar de tudo isto hoje em 2014 parecerem trivialidades, regressem a esse ano de interregno, 2010, entre a vitória eleitoral de Sócrates e a sua demissão, e leiam o que se escrevia e dizia, do PS ao PSD, para comparar.
Aqui vão algumas das frases de 2010, escritas muito antes da troika:
Este foi o mundo que Sócrates deixou e Passos Coelho continuou. A minha última frase era: "Comparado com o que aí vem nenhuma destas previsões é especialmente pessimista.” Não foram. A realidade foi muito pior: desembocou num ex-primeiro-ministro preso, em altos quadros do Estado presos, na queda do mais poderoso grupo bancário português, adorado pelos aspirantes a singapurianos novos-ricos entre o Martini man e o “homem da Regisconta”, que ainda nos governam, pela mistura de pseudo-aristocracia e altas esferas do dinheiro e do poder.
Em que é que isto tem a ver com a prisão de Sócrates? Tudo. Se ele deseja um julgamento político, ele que nos deixou de herança Passos Coelho, como ele foi herança de Santana Lopes, de mim terá apenas a repetição do que disse no passado.
Para esse peditório político não dou. Este homem fez muito mal a Portugal. Não o quero preso injustamente, nem o quero preso apenas porque fez muito mal ao seu país, até porque o fez com milhões de votos dos portugueses. Desejo-o livre pela sua pura inocência e não pelas suas atitudes de “animal feroz”, arrastando para o seu gigantesco ego um combate político que é suposto ter outros alvos e outros motivos. Apesar das frases politicamente correctas do seu comunicado, pedindo ao PS para ficar à margem, ele não deseja outra coisa que não seja envolver tudo e todos no seu destino pessoal, mesmo que isso implique comprometer a oposição a soçobrar pouco a pouco numa teoria conspirativa.
Protestem, como eu protesto, contra tudo o que seja abuso do poder judicial, fugas orientadas de informação, humilhações escusadas, mas não dêem o passo que ele deseja que dêem. Por favor, projectem a recusa zangada do Governo para melhores causas do que o destino político do engenheiro Sócrates.
(url)
Esta pergunta foi feita por Paulo Portas, quando no Parlamento se explicava sobre os vistos gold, política de que é o principal patrocinador.
Esta frase merece ficar na memória destes anos de lixo, juntamente com o “irrevogável” do mesmo autor, e de algumas outras de Passos Coelho sobre os “piegas” versus os empreendedores, ou o “ir para além da troika”, ou a “austeridade criadora”, ou o fabuloso conceito de “justiça geracional”, ou os saltos no palco do “jovem” comissário do Impulso Jovem que nunca deve ter percebido como é que acabou a sua nobre missão de explicar a inutilidade de saber história ou sequer de estudar. Hoje tudo isto nos parece ridículo e perigoso, uma combinação sinistra,até porque tudo ainda está no activo. Vamos um dia olhar para estas frases, com a distanciação possível da história, e perceber melhor o retrato de um período negro da história portuguesa, em que o país foi estragado por uma mistura de ideias erradas e muita incompetência.
Voltando à frase de Portas, um daqueles soundbites de que os jornalistas muito gostam, e que substituem em Portas um pensamento, uma coerência, uma política e uma ética que não seja a sua vanglória e a sua sobrevivência. Podemos construir várias frases exactamente com o mesmo raciocínio que lhe serve de base.
Quem cria mais postos de trabalho? O CDS ou o BE? O CDS, claro, que está no Governo e participa na distribuição dos boys e girls e com muito afinco. Chama-se a “quota” do CDS. Quem cria mais postos de trabalho? O PSD ou o CDS? Terrível problema para o CDS, que só chega ao poder encostado nos votos do PSD e já fez disso modo de vida. A resposta é: o PSD, claro. Quem cria mais postos de trabalho? O CDS ou a Remax? A Remax claro, uma multinacional cujo nome Portas acabou por misturar nestas justificações, fazendo-lhe publicidade gratuita. Que se saiba, Portas ainda não vende casas na Micronésia, onde a Remax actua. Quem tem uma “marca” de maior prestígio e maior valor de mercado? Portas ou a Remax? A Remax, que ainda não é “irrevogável”.
E a pergunta das mais certas que há: quem destruiu mais postos de trabalho? Portas ou o BE? Portas ou a Remax? Resposta: Portas e o CDS. E Sócrates – dirão as vozes? Sim, é verdade, Sócrates, Passos Coelho e Portas estão bem uns para os outros. Repito de novo a pergunta que seria aquela que de imediato lhe faria, se ele a fizesse à minha frente: quem destruiu mais postos de trabalho? Portas ou o BE? Portas ou a Remax? Aplicada aos vistos gold, a frase de Portas tem um significado unívoco: se dá dinheiro, vale tudo. Todo o resto da argumentação é paisagem – os outros também fazem, o dinheiro entra pela banca em cheque, comprar casas de luxo ajuda à nossa economia, etc., etc. Mas a essência é: se dá dinheiro, pode comprar tudo, mesmo esse intangível valor que é a residência em Portugal e depois a nacionalidade. É este sentido que torna a frase muito simbólica dos nossos dias, em que o “estado de emergência” se faz em primeiro lugar sentir no domínio da ética pública. Eu não sou daqueles que descobriram as virtudes (e os defeitos) da doutrina social da Igreja com o Papa Francisco. No PSD, se não houvesse uma efectiva traição à sua matriz histórica e ideológica, o contributo da doutrina social da Igreja, exactamente nos aspectos em que ela hoje parece perigosamente esquerdista para os ignorantes, é genético no pensamento de Sá Carneiro. O mesmo podia ser dito do CDS, se o amoralismo oportunista de Portas e dos seus jovens lobos não tivesse já destruído o que sobrava. Por ironia do destino, no mesmo dia em que Paulo Portas disse a frase da Remax no Parlamento, eu vinha de um debate na Faculdade de Teologia da Universidade Católica sobre a exortação apostólica Evangeili Gaudium, com a vantagem de a ter lido de fresco e não apenas as frases soltas mais bombásticas que dela circulam. O documento papal não se dirige a mim, que sou agnóstico, mas a ele, que se persigna em público. Não sou nem do episcopado, nem do clero, nem das pessoas consagradas, nem fiel leigo, os destinatários da exortação. Mas, quando a Igreja se comporta como uma reserva moral da sociedade, coisa que nem sempre acontece, é civicamente muito importante que seja ouvida. E neste sentido a Igreja “arrasa”, outro verbo de que os jornalistas muito gostam, Paulo Portas. Não por exercício de interpretação, mas sim em sentido literal. Seria impossível na Igreja franciscana alguém fazer a pergunta que Portas fez no contexto do amoralismo que a domina, porque são para quem faz perguntas daquelas as frases da Evangelii Gaudium: "Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e sobre as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano." É por isso que a frase de Portas pode também ser formulada de outras maneiras: o que cria mais emprego? A prostituição ou Portas? A prostituição. O que cria mais emprego? O crime ou Portas? O crime. O que cria mais emprego? A corrupção ou Portas? A corrupção. O que cria mais emprego? A “economia paralela” ou Portas e a maioria? A economia paralela. O que cria mais empregos? A guerra ou Portas? A guerra. E por aí adiante. Há dez mil coisas más que criam mais emprego do que Portas e a maioria, e isso não as justifica. Ouça-se o Papa Francisco: "Por detrás desta atitude escondem-se a rejeição da ética e a recusa de Deus. Para a ética, olha-se habitualmente com um certo desprezo sarcástico; é considerada contraproducente, demasiado humana, porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida como uma ameaça, porque condena a manipulação e degradação da pessoa. Em última instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta comprometida que está fora das categorias do mercado. Para estas, se absolutizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e até mesmo perigoso, na medida em que chama o ser humano à sua plena realização e à independência de qualquer tipo de escravidão. A ética – uma ética não ideologizada – permite criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo os peritos financeiros e os governantes dos vários países a considerarem as palavras dum sábio da antiguidade: 'Não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos.'" Dirigida na mouche ao sentido da frase de Portas estão estas afirmações: "Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se cada acção tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas duma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor." O problema dos vistos gold é simples: dinheiro inexplicado a montante, corrupção a jusante. É por isso que o caso de corrupção que hoje está a ser investigado e atinge o coração do Estado é estrutural e não conjuntural. É um resultado de se pensar como pensa Portas: se entra dinheiro, fecha-se os olhos, e depois “o mal consentido (…) tende a expandir a sua força nociva”. (url)
A BARREIRA
“– E, se calhar, temos de ponderar sanções jurídicas para os casos em que os poderes que são distribuídos, incluindo ao Tribunal Constitucional, são extravasados.
– Que sanções podiam ser aplicadas ao Tribunal Constitucional?
– Sanções jurídicas.”
Este fabuloso diálogo é travado numa entrevista ao PÚBLICO por Teresa Leal Coelho, uma das mais próximas deputadas da actual direcção política do PSD de Passos Coelho, que, ao que se saiba, é jurista. Num mundo ideal, como é o da série americana Newsroom, devia seguir-se toda uma outra série de questões ao modelo daquelas que uma jornalista do canal fictício de televisão entendia fazer a Michelle Bachman, congressista americana republicana ligada ao Tea Party, e que dizia que Deus a tinha aconselhado a concorrer a um cargo político: “Como é que soa a voz de Deus?” Neste caso, que “sanções jurídicas” pode ter um tribunal superior pelas suas decisões? Quem as decide? Quem as aplica? Um outro tribunal superior ao superior? O Governo? A ministra da Justiça? O Parlamento? A deputada Teresa Leal Coelho? Deus? Há certamente um problema com os cursos de Direito de algumas faculdades.
Este exemplo e esta citação abrem um outro conjunto de citações tão absurdas e ridículas como perigosas, no início do livro de Jorge Reis Novais, Em Defesa do Tribunal Constitucional. Respostas aos Críticos, editado pela Almedina e que tive o gosto, junto com Marcelo Rebelo de Sousa, de apresentar. É um livro de um professor de Direito, legível por todos, cheio de humor e boa irritação, no bom sentido weberiano da empatia que percorre a melhor ciência.
Reis Novais não pretendeu escrever um livro político, mas um estudo jurídico que tem naturalmente implicações políticas. Não me pronunciarei sobre a parte jurídica, para que não tenho competência, mas discutirei por que razão este livro é muito importante para perceber os tempos em que vivemos. O livro ficará entre os poucos que permitem elucidar estes anos de crise, sem ser apenas pela perspectiva da economia que é o tema dominante da literatura e ensaística neste período.
Vale a pena lê-lo e pensar sobre o que lá está dito, porque o ataque ao Tribunal Constitucional será uma ou das poucas marcas permanentes que sobreviverão aos actuais governantes, em que o desgaste das instituições é muito fácil de fazer em anos de perda colectiva, em que a procura de bodes expiatórios encontra sempre os seus corifeus e legitimadores. Entre eles, Teresa Leal Coelho e Passos Coelho estão na parte de baixo da cadeia alimentar, que neste caso se estende para cima, para aqueles que na Comissão Europeia e no FMI (e os seus repetidores portugueses) entendem que o Tribunal Constitucional alemão é intocável e o português uma atrapalhação desfasada da “realidade”, caduca e cediça, uma qualquer “brigada” do passado, como os mais malcriados membros do Governo costumam designar quem se lhes opõe.
No topo dessa cadeia, estão alguns juristas e professores de Direito que apareceram com toda uma teorização legitimadora e, no fundo, meramente utilitária, da crítica ao Tribunal Constitucional, desenvolvida quase sempre depois das decisões desse tribunal que travaram algumas medidas governamentais e não antes. Como Marcelo Rebelo de Sousa notou na apresentação do livro, alguns dos mais nacionalistas e críticos da União Europeia, passaram a ser abnegados defensores da supremacia do Direito europeu sobre a Constituição Portuguesa. No fundo, como em muitas coisas em Portugal, nestes tempos de bizarra “luta de classes”, ou se está com “eles” ou contra “eles”. O objectivo do livro de Jorge Reis Novais não é analisar o conteúdo e valor jurídico das decisões do Tribunal Constitucional, com que o autor muitas vezes discorda, mas o papel, a importância e a necessidade do próprio tribunal, e por essa via perceber o valor da Constituição em tempos de crise. Dois capítulos são particularmente interessantes: aqueles em que o autor discute o “estado de emergência financeira como pretenso estado de excepção constitucional” e outro sobre a justiça constitucional e a integração europeia, tratando dos argumentos que consideram que a nossa Constituição está ultrapassada ou submetida ao Direito europeu. Quase todo argumentário de ataque ao Tribunal Constitucional cabe nestes dois capítulos. O ataque ao Tribunal Constitucional não estava no programa da actual maioria, embora estivesse uma profunda alteração da Constituição. Uma coisa levaria à outra, mas não foi imediata, até porque o PSD estava convencido de que os juízes que nomeara se prestavam a julgar como militantes partidários e não como juízes. Enganou-se e fez mais tarde a autocrítica amarga que “não os tinha escolhido bem”. Como acontece muitas vezes com o tipo de políticos do género de Passos Coelho, o percurso e a importância de uma revisão constitucional, que exigia a colaboração do PS, variou. O projecto de Paulo Teixeira Pinto era tão radical, e tão hostil ao património social-democrata, que foi rapidamente abandonado, com Passos Coelho num congresso do PSD a negá-lo com afirmações de fé social-democrata. Como sempre, o dia de hoje faz esquecer o dia de ontem. Como é costume, a coisa não iria durar muito, e passou-se da questão da Constituição para a questão do Tribunal Constitucional. Não é a mesma coisa e não tem os mesmos riscos para a democracia, porque as opiniões sobre a Constituição são livres no sistema político, mas o ataque à autoridade de um tribunal e o permanente jogo no limite de apresentar as mesmas medidas disfarçadas de outras ou de apresentar medidas que já se sabia serem inconstitucionais para atirar para o tribunal o ónus das dificuldades da governação, é um jogo muito perigoso. O segundo pilar da democracia, o primado do direito, foi claramente posto em causa por um Governo que hipervalorizava o primeiro, a soberania popular pelo voto. Na verdade, a afirmação reiterada de que o Governo, mesmo que não concordasse com as decisões do tribunal, as cumpria, não basta para se poder afirmar que houvesse um pleno primado do direito, porque os múltiplos efeitos perversos das várias atitudes do Governo e também do Presidente, objectivamente deslegitimavam o tribunal e o valor da Constituição. O Presidente permaneceu silencioso perante atitudes inaceitáveis de pressão e mesmo insulto sobre o tribunal, um caso de funcionamento irregular das instituições e, como nota Reis Novais, não enviou para o tribunal um Orçamento que sabia ser inconstitucional e enviou outro que entendia ser constitucional, porque o Governo lhe pediu. O Governo, numa atitude bem pouco patriótica, usou o Tribunal Constitucional perante a troika, para explicar alguns dos seus falhanços, e aceitou, com satisfação, ver esses argumentos repetidos em relatórios da Comissão ou do FMI. O conflito crescente do Governo e da maioria com o Tribunal Constitucional tem a ver com o modelo de “ajustamento” seguido (insisto, um entre vários possíveis), assente num alvo, a classe média, e no saque fiscal aos rendimentos de trabalho, nos cortes a salários e pensões, violando contratos de um determinado tipo e desequilibrando relações de equidade e confiança. O choque era inevitável. Mas o que os críticos do Tribunal Constitucional nunca lembram é que podiam ter sido outros os alvos do “ajustamento”. Um outro Governo poderia ter seguido outro modelo, podia inclusive obter os recursos de que precisava com confiscos de bens, nacionalizações, a violação de outro tipo de contratos, os “blindados”, ou seja, atacando a propriedade. Aí, também o Tribunal Constitucional, e bem, travaria um Governo que prosseguisse nessa via porque violaria a Constituição portuguesa. Nessa altura, seria, para os actuais críticos, um herói, uma última barreira contra a barbárie expropriadora e, quiçá, o comunismo. Não se ouviriam críticas, mas elogios. É esta barreira que Jorge Reis Novais quer defender no seu livro e fá-lo com muita eficácia. Vale a pena ler. (url)
AS LIBÉLULAS E O ESTADO DA NAÇÃO
– Houve uma invasão de libélulas.
– O quê?
– Uma invasão de libélulas na zona ribeirinha de Lisboa.
– E depois?
– Ao menos isso.
– A invasão de libélulas?
– Sim. Os bichos são inofensivos, simpáticos, parecem helicópteros.
– …
– Aparecem nas gravuras japonesas, nos haikais, em Vítor Hugo…
– …
– “Um pimentão, dai-lhe umas asas, uma libélula vermelha!”
– O que é que te deu?
– Bashô.
– Eu sei. O que é que te deu? Picaram-te?
– As libélulas não picam ninguém. São almas.
– O quê?
– Les âmes, libellules de l'ombre...
– O quê?
– Victor Hugo. Um amador de libélulas. E há Tennyson…
– Mas isso é para as dragonflies…
– A living flash of light. E depois há as libelinhas, as libélulas em versão namorados.
– Onde é que tu já vais!
– Ainda nem sequer parti.
– Mas o que é que têm as libélulas?
– Bons olhos. Precisamos de bons olhos.
– Não me parece que sejam os olhos das libélulas que te interessam.
– Porque é que tu achas que vêm para cá?
– Porque isto parece um charco.
– Enlouqueceste.
– Sim. Passei a semana a ver os nossos governantes vestidos com a farda da Mota Engil; passei a semana a aturar o Portas a saracotear-se no México com uma corte de jornalistas com a viagem paga para lhe darem espaço televisivo todos os dias, primeiro ia almoçar com o Carlos Slim (soam as trombetas), depois o Slim não apareceu (flautim); passei a semana a ouvir o ministro da Economia a elogiar uma subida de Portugal num ranking em que afinal desceu; passei a semana a ouvir mentiras sobre o Orçamento do Estado, a ouvir mentiras sobre o BES, a ouvir mentiras sobre as previsões económicas, tão ficcionais como a fada dos dentinhos; passei a semana a ouvir o primeiro-ministro a ler um discurso escrito que negou logo a seguir quando passou à oralidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo dizer coisas diferentes com intervalo de minutos, ainda por cima sobre o bolso de centenas de milhares de pessoas (quem é que liga a isso?); passei a semana a ver um enorme vazio onde devia estar a oposição, com António Costa a comportar-se como primeiro-ministro putativo, em vez de assumir o papel de líder da oposição que é o dele até ganhar eleições; passei a semana a assistir àquela cena patética, de verdadeiros “amarelos”, na UGT, a dar legitimidade ao Governo que mais combateu o mundo do trabalho, com Passos Coelho a fustigar os trabalhadores num cenário “sindical”; passei a semana a ver imagens de Nuno Crato passeado pela UGT a bater palmas como se o masoquismo na moda fosse engolir alegremente uma manifesta provocação; passei a semana a ler jornalistas preguiçosos a repetirem os argumentos do poder sobre como foi bom o negócio do Novo Banco, passando do tudo ao nada no BESA, de como não é importante o chumbo do BCP nos testes de stress, como está sempre tudo bem quando os interlocutores são os que importam, os do clã, os que estão no “lugar certo” de Portugal, empresas, bancos, gestores, povo da economia “empreendedora”; passei a semana a ver sempre proteger os que mandam, Passos, Maria Luís, Carlos Costa, Stock da Cunha, e a considerar que tudo o que eles fazem é o “menos mau”, o “que podia ser feito”, uma “boa solução num contexto difícil”, etc., etc.; passei a semana a ver comparar realidades más com previsões boas, como se fossem a mesma coisa; passei a semana a ouvir silêncios, sobre as últimas estatísticas da pobreza, das penhoras, das dificuldades económicas, aquilo que não interessa ao “Portugal positivo”; passei a semana a ver apontar uns putativos culpados pela “sabotagem” do Citius, quando durante meses ouvimos técnicos sobre técnicos, distintos professores (será que Tribolet também faz parte da conspiração sabotadora?) a dizer que aquilo era desastre certo; passei a semana ver imagens de cãezinhos de Pavlov a abrir os dentes ao som de “Sócrates”, como se o homem ainda estivesse no poder, para esquecer que de 2011 a 2014 foram outros que aprofundaram as desgraças que ele deixou, numa indigência política assustadora do que vai ser o ano de 2015; passei uma semana a ouvir tudo o que era gente séria a contar como está a ser cheio o Estado, as fundações ligadas ao Governo, as empresas, tudo quanto é lugar seguro e bem pago e com poder, de “amigos do ajustamento”, da turma da “justiça geracional”, sem parangonas, sem publicidade, agora cada vez mais depressa, porque se aproximam tempos difíceis e o PS vai querer o seu quinhão; passei a semana a ler histórias muito silenciadas sobre milhares de euros que foram para empresas de comunicação, quase sempre as mesmas, as que trabalham para o Governo, para as empresas do PSI-20, para as autarquias cujos presidentes eram ou são os principais controladores dos aparelhos partidários, do PSD em particular; passei a semana a ouvir dizer que os aviões russos “invadiram o nosso espaço aéreo”, “passaram junto ao nosso espaço aéreo”, “passaram no espaço controlado por Portugal”, “entraram no espaço europeu” (a Rússia é uma nação europeia…), e a ouvir o ministro que mais ajudou a destruir as nossas forças armadas agarrado à oportunidade de dizer que “operacionalmente” estava tudo bem, quando se percebe nas entrelinhas que está menos bem do que parece (quantos F-16 estão canibalizados para dar as peças aos que voam, qual a autonomia real dos que voaram?).
Passei a semana a ver com tristeza como está o meu muito amado país. Tudo a cair aos bocados na apatia e indiferença geral.
Chega. Passei-me. Vivam as libélulas!
(1 de Novembro de 2014)
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© José Pacheco Pereira
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