ABRUPTO

26.10.14


PONTO / CONTRAPONTO
  aos domingos às 20 horas na SICN.

  Até o retorno do  caos do futebol lhe alterar mais uma vez o horário.

Tema: telefones, pesos e medidas.

(url)


 O VALOR DA BOA-FÉ NUMA SOCIEDADE QUE SE PRETENDE CIVILIZADA


Se há causa a que eu adiro sem reservas é a dos trabalhadores com reformas antecipadas do Metro de Lisboa, que viram as suas reformas cortadas unilateralmente do complemento  que a empresa lhes atribuiu para os incentivar a reformar-se. Não se espantem, parece uma causa laboral como as outras, mas é mais do que as outras. É diferente.

 Não é uma questão de “direitos adquiridos”, embora também o seja. Não é uma questão do cumprimento dos contratos livremente feitos, do sacrossanto princípio jurídico do pacta sunt servanda, embora também o seja. Não é questão de justiça social, embora também o seja. Não é sequer uma questão de austeridade, de repartição de sacrifícios, de acabar com uma situação de privilégios numa empresa pública. É uma causa cívica em que está em jogo um princípio moral que deveria ser a base da nossa sociedade democrática: a boa-fé. 

Um dos piores dos meus anátemas contra este Governo é exactamente a destruição dessa boa-fé, como se fosse o acto mais normal do mundo, como quem respira, sem pensar duas vezes, até sem atenção, nem sequer preocupação pelos efeitos não apenas nas vítimas dos seus actos, mas no tecido social e nos laços que unem as pessoas numa sociedade civilizada e numa democracia em que todos somos proprietários e penhores do mesmo poder. Este à-vontade e esta indiferença pelo que é e significa a boa-fé vai ficar como uma mancha para o presente e para o futuro no tónus moral destes tempos. 

 Os trabalhadores reformados do Metro, muitas centenas de pessoas, incluindo pessoal qualificado, técnicos superiores, quadros administrativos, maquinistas, mecânicos, electricistas, pessoal da manutenção, etc., têm tudo contra eles. Nunca verão a sua causa chegar ao comentário mais fino dos grandes mestres da comunicação política televisiva, e não merecerão sequer qualquer atenção dos órgãos de comunicação social, para quem eles são um grupo, entre os muitos dos que protestam nestes dias, desvalorizados pelo desprezo que há nas redacções com as reivindicações laborais. Eles, insisto, têm tudo contra si. 

 São reformados, logo privilegiados em potência à luz dos alvos governamentais dos nossos dias. Mais: são muitos deles, reformados com idades a partir dos 55 anos, ou seja anteciparam as suas reformas, tornando-os assim preguiçosos potenciais que vivem “à custa dos jovens que não irão ter reforma quando forem velhos”. Violam esse conceito sinistro da “justiça geracional”, inventado por Passos Coelho e pela JSD, para culpabilizar os mais velhos. (Veremos depois porque é que se reformaram tão cedo). São trabalhadores do Metro, uma empresa pública de má fama, onde há greves “que prejudicam os utentes”, gerida pessimamente por várias administrações politicamente nomeadas, mas onde os prejuízos são sempre culpa dos trabalhadores. E tanto mais culpados quanto mais protestam e quanto maior for a mobilização do seu protesto. Muitos são sindicalizados, um crime nos dias de hoje. Numa altura em que as empresas públicas, de transportes em particular, são um alvo ideológico atirado à opinião pública, estes trabalhadores reformados, insisto reformados, têm que apresentar as suas queixas no meio de imenso ruído. Ou seja, ninguém os ouve.

 O que é que aconteceu a estes reformados e como é que chegaram a esta situação? Foi política de gestão dos recursos humanos de várias administrações do Metro incentivar os trabalhadores a fazerem reformas antecipadas. A empresa entendia que ficava mais barato que os trabalhadores que fizessem 55 anos se reformassem, do que se ficassem no activo, diminuindo assim o número de trabalhadores do Metro. Outras empresas públicas (como a Carris) fizeram o mesmo, mas sem a dimensão do Metro, e algumas delas encontraram maneira de tornear os efeitos da reversão das políticas.

 Para incentivar essas reformas antecipadas garantiu-se aos trabalhadores que receberiam um complemento de reforma de modo a não perderem dinheiro no acto da reforma, inclusive pelo facto de esta ser antecipada. Não era uma política de opção empresarial indiferente, visto que foi prosseguida agressivamente pela empresa, com a publicação de listas dos trabalhadores com mais de 55 anos e cartas individualizadas a quem perfazia essa idade com as condições excepcionais que lhes eram atribuídas para os levar a reformarem-se. Estas passagens à reforma, que incluíam um complemento de reforma, foram negociadas em inteira liberdade (se exceptuarmos a pressão do Metro para as reformas antecipadas) e eram coerentes com os acordos vigentes na empresa, também livremente negociados. Centenas de trabalhadores reformaram-se, muitos dos quais já na vigência do actual Governo. Um deles disse numa entrevista que estas medidas "sempre foram incentivadas pelo Governo e própria empresa, para aliciar os empregados a aceitarem a pré-reforma e saírem da empresa". Tudo foi feito pelo maior bem da empresa, da boa gestão e da saúde da economia, com E grande, como agora se escreve nestes tempos.

 No dia 1 de Janeiro deste ano, o Governo violou o contrato que tinha feito. O corte unilateral dos complementos de reforma pelo Governo significou reduções de 40 a 60% nas reformas dos trabalhadores. Imaginem acordar no dia seguinte a ganhar menos de metade do que ganhavam no dia anterior e serem já velhos para arranjarem um novo emprego, terem encargos comportáveis quando se tinha uma outra reforma, ou seja, não era “viver acima das suas posses”, e ficarem agora sujeitos a dívidas e penhoras e acima de tudo, mesmo com a reforma por completo, vivia-se no remedeio. Não estamos a falar de gente rica, mas de trabalhadores, daqueles que se espera num país civilizado que engrossem a classe média, educando os seus filhos para viverem melhor do que os pais, acederem a consumos com que os seus avós nunca sonharam. É assim que se cresce, melhora, se avança. É isto que é o melhorismo social, a melhor garantia de um crescimento económico.

 E não me venham com os argumentos ad terrorem da “inevitabilidade” que, podendo ir bater a muitas portas onde há fartura, vai sempre bater nos mais fracos, nos que têm menos defesa, nos que é mais fácil vilipendiar. Ou noutra forma de argumentos ad terrorem como seja a de que há muita gente ainda pior, e que seria pior se acordassem no dia seguinte no desemprego, porque em vez de metade não teriam nada. E se morressem de noite não seria pior?

 Os trabalhadores reformados do Metro não têm muitas defesas, mas têm razão, razão política e razão moral, o que não é pouco. Muitos trabalhadores reagiram dizendo que, se era assim, apresentavam-se na empresa para trabalhar nas condições que tinham antes de serem empurrados para a reforma. Recorreram ao Tribunal Constitucional e perderam, numa das decisões mais injustas que esse Tribunal tomou nestes últimos anos, que também as tem tomado.

 Mas o problema que está presente neste caso é um problema de boa-fé, e do papel da boa-fé numa sociedade democrática e que pretende regular-se por regras de conduta civilizadas. Nem sequer pretendo discutir o que isso significa, “civilizadas”, porque toda a gente sabe o que é. E sabe também o que significa a boa-fé: significa que, se quando o governador do Banco de Portugal, seguido pelo Governo, defendeu que devia ser possível antecipar reformas com pagamento dos salários integrais, para afastar das empresas os trabalhadores com mais anos de casa e “que passam a vida nos médicos”, devia colocar-se um cartaz pestífero a dizer: não aceitem o engodo, não acreditem neles, querem enganar-vos e, depois de se reformarem, cortam-vos o que vos prometerem no passado para vos empurrar para a reforma. Como fizeram com os trabalhadores do Metro. Eles são gente de má-fé.

(url)


CARTAS PORTUGUESAS A LUDWIG PAN, GEÓLOGO E AGRIMENSOR NA AUSTRÁLIA 

(As duas primeiras  aqui, a terceira aquia quarta aqui, a quinta aqui, a sexta aqui.)



Meu caro Ludwig Pan

Sei que chegaste à tua Colónia bem de saúde e bem de viagem. Fica pois sabendo que estas cartas de novas da minha infeliz pátria têm sido plagiadas num jornal de cá, em tom menor, muito menor, vagamente engraçado, mas ao estilo truculento que se usava no passado. Uma vergonha, mas o exemplo vem de cima. É o preço da tua fama, indo como foste, para tão longes terras, tornaste-te exótico e isso dá imprensa. Registe-se.

Que mais devemos registar, agora que o plágio está na moda? O habitual, tão habitual que é profundamente aborrecido se não fosse trágico para muita gente. A nossa vida pública lembra aquelas gazetas de Veneza do século XVIII e XIX que noticiavam pouco mais do que as quedas nocturnas de alguns vadios aos canais onde, para sua sorte, eram muitas vezes pescados vivos, ou não. Monsenhor Paolo Testa escorregou e caiu. Contrariamente ao que dizem as más-línguas, especialidade veneziana, não estava “ubriaco”. E por aí adiante. 

É assim por cá, eles caiem todos os dias à laguna, e logo a imprensa vem dizer que não, não foi por mal, não foi por incompetência, não foi por terem posto o pé onde não deviam, não foi por ignorância das leis da gravidade, não foi por nada. Foi o destino, a troika, as imposições de Bruxelas, a tua governante Merkel, a alma do Sócrates, a nossa resistência endémica à mudança, a conjuntura europeia, o Tribunal Constitucional, etc., etc. Pretextos para explicar a queda nas águas fétidas são muitos. Há até um grupo de comentadores que se especializou em explicar que, apesar de um dos pés ter falhado na borda do canal, uma má coisa, há uma outra boa, visto que o outro pé permaneceu uns segundos mais em terra. É como o Orçamento, “tem umas coisas más e outras boas”… as boas são as previsões hipotéticas e umas migalhas em nome da natalidade, a única “causa” do governo e da Associação das Famílias Numerosas. As más são a “má condução da imagem do governo”, a briga em público entre o número um e o número dois, o mau timing de algumas medidas, ou seja, minudências de coreografia política. Estamos assim, meu caro Ludwig, enterrados na laguna até ao pescoço. Como homem ilustrado que és, sabes muito bem o que aquelas águas transportam. E que mais te conte, agora que estás na civilização? Como é comer num prato, dormir numa cama, beber um Gewürztraminer, e olhar de frente com gula um Eisbein? Faz a ti próprio o favor de te poupar a esse miserável complexo de culpa alemão diante do prazer, que nos deu o pior da Alemanha, o romantismo, a obediência, a burocracia, o idealismo filosófico, a organização, e os Verdes. Como te sei não atreito aos outros males alemães, aliás bastante filhos destes, a última coisa que desejaria era que a prolongada estadia nos antípodas com os aborígenes, te tornasse num bom selvagem transposto para a Germânia, a comer tofu, algas, pastas com a palavra biológica, iogurtes de aloé vera e a beber água de uma qualquer nascente pura e cristalina nos Alpes. Bom, neste último caso, sei que não vais ceder à lei seca, porque afinal sempre havia bons whiskeys na Austrália, e recordo-me que me falaste com entusiasmo dos da Tasmânia, feitos por demónios com duas pernas. 

Falo-te com acinte dessa praga adjectivada de “verde”, que na minha pátria, serviu para aumentar os impostos, com o mais nobre dos motivos, que “passa” sempre bem. O álcool também subiu, e o tabaco, os velhos impostos do vício. Aqui combate-se pela moralidade da alma e do corpo, com grande convicção do Fisco. Só é pena que os intérpretes desse combate pela “moderação fiscal” aumentando os impostos, não tenham o hábito de não mentir. É feio, mas cá por casa tornou-se tão corrente que já não se dá por ela a diferença. Acho aliás que, quem disser uma verdade, é que vai parecer que está a mentir. Sim, meu caro Ludwig, somos nós que estamos verdadeiramente nos antípodas, a andar com a cabeça para baixo. 

Poupe-te pois a mais novas, que seriam aliás antigas e más. Nós por cá todos bem. Já não temos BES, só Novo Banco, já não temos governo, só um conglomerado de pessoas que se reúne às quintas-feiras, já não temos “jóias da coroa”, nem PT, nem Bava, nem anéis e vamos a caminho de vender os dedos aos chineses. Será que há alguma mezinha de farmacopeia oriental com “dedos portugueses em pó” para tratar de algum mal pernicioso? Já não temos economia, nem ensino, nem justiça. Já não temos “fanatismo orçamental”. Ri-te. Já não temos país, só nome. Passa por cá no teu regresso à Austrália, somos a última praia antes do Oceano, a seguir a Espanha e antes de sobrevoares Casablanca.

É. Nós por cá todos bem. Mas traz a flauta e uma garrafa de schnaps. As pessoas são boas, estão é muito estuporadas. Um abraço deste teu amigo

(url)




TEMOS GOVERNO? NÃO TEMOS. JÁ HÁ MUITO TEMPO 

 A noção de que há um governo implica que exista um órgão colectivo que se reúne periodicamente, discute questões, umas mais gerais, de orientação, táctica e estratégica, outras mais limitadas como questões de condução política de um assunto, questões prementes do presente não antecipadas. Regularmente encontra-se para discutir legislação, que pode ser de um ou outro ministro, mas é decidida em conjunto com responsabilidade de todos. Para assegurar o funcionamento regular do governo existe um batalhão de assessores, secretárias, chefes de gabinete, pessoal do mais diverso, que prepara a ordem de trabalhos dos conselhos de ministros, distribui atempadamente os documentos, e elabora notas e pareceres que acompanham a legislação proposta. Sobre toda esta pesada máquina burocrática preside o Primeiro-ministro ou quem ele delegar. Por fim, redige-se um comunicado, que hoje se sabe esquece ilegalmente alguns pontos aprovados (como aconteceu no processo do BES), e existe uma conferência de imprensa semanal que apresenta o que foi decidido, muitas vezes de uma forma pouco esclarecedora, visto que algumas decisões são pré.anunciadas, ou anunciadas, sem estarem estudadas e passadas para lei. 

 DESGOVERNO 

Tudo isto é muito bonito, mas por cá não se governa assim, desgoverna-se. Muita da legislação que chega ao Conselho de Ministros é tão mal feita que tem que ser corrigida várias vezes. Por exemplo, a legislação sobre arrendamento ou falências. Noutros casos a vil intenção é tão capciosa que só mais tarde se percebe ao que vinha o legislador. Foi o caso da legislação que proíbe os funcionários públicos reformados e pensionistas, como os professores universitários, de prestar trabalho gratuito em áreas em que são os mais especializados e conhecedores, pelo que não estão a tirar trabalho a ninguém e a servir o bem público. Como se desconfia dessa geração “velha”, que não engole tão facilmente muitas das patranhas circulantes, trata-se de os afastar da vida pública o mais possível, não vá dizerem coisas. Por aí adiante. 

 CACOFONIA 

Mas a questão principal é mais simples de definir: é que não há governo, nem nos mínimos dos mínimos. A questão do IRS é discutida na praça pública, entre actos de propaganda e insinuações mútuas, entre o Primeiro-ministro e o Vice-Primeiro-ministro. No mesmo dia um diz A e o outro diz B, um quer parecer duro e “difícil” na sua missão austeritária, e outro partidário da “moderação tributária” (uma daquelas fórmulas vazias que Portas usa como “eurocalmo”). Na verdade, ambos estão ao mesmo: o abaixamento simbólico do IRS (registe-se simbólico) é um dos pratos da ementa eleitoral de 2015. Só que Portas quer fazer crer que a ele se deve a benesse, Passos Coelho quer fazer o brilharete de que as migalhas do IRS, arduamente conseguidas pelo governo, são a mostra do “sucesso” da política governativa. No final haverá muito pouca coisa e muita propaganda, mas só num país já com expectativas tão baixas se pode ser indiferente a este espectáculo de “governo na praça pública”, ou seja de não-governo.

(url)


 MOEDAS E O SEU ORÇAMENTO

A representação portuguesa na Comissão europeia passou de oitenta para oito, mas a excepção foram os oitenta. Há ainda muito para esclarecer sobre o que aconteceu com a escolha de Barroso, mas a escolha do pelouro de Moedas é normal. Podíamos ter tido melhor? Parece que sim, a julgar pelas notícias sobre Silva Peneda, que não foi indicado por politiquice doméstica, porque não faz parte da coterie do Primeiro-ministro. Mas esse upgrade era um mérito individual de Peneda, não um “direito” nacional. Nacionalmente tínhamos direito a Moedas e temos Moedas que, estou convencido, fará um trabalho com uma suficiência que não voará, mas também não nos envergonhará. 

Agora, a máquina de propaganda continua a actuar com impunidade, com a falta de vigilância crítica que a nossa comunicação social revela sempre face ao poder. É que os oitenta mil milhões que foram avançados como o orçamento que Moedas iria gerir, um “argumento” para emproar a importância do seu cargo, não são para ele gerir, mas sim para ele co-gerir. É dinheiro que vai ser usado transversalmente por vários comissários numa hierarquia em que Moedas está no patamar de baixo. Convinha ver os organigramas e as declarações europeias sobre por onde passa esse orçamento. Mas, como serviu para sugerir que afinal o nosso “amigo” Juncker nos tinha dado um grande presente (que não deu), lá veio a propaganda sem contraditório.

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]