A proposta da Ministra da Justiça para a criação de uma base de dados de “pedófilos” (depois explico porque coloquei aspas), a que possam ter acesso pais de crianças, ainda que com obrigação de manter o sigilo, de modo a saber se entre os seus vizinhos há alguém que tenha sido condenado por pedofilia, é, do meu ponto de vista, abjecta.
Escolhi deliberadamente esta palavra forte, porque a proposta ofende normas escritas e não escritas do que é (ou deve ser) o funcionamento de uma sociedade que desejamos civilizada. Terei que repetir a litania óbvia, que o que digo não significa menorizar o crime da pedofilia, nem “proteger” os agressores (que neste caso já cumpriram pena), nem deixar a preocupação com a protecção das crianças e dos menores dos seus abusadores, o que não é a mesma coisa. Custa-me ter que estar a repetir este óbvio, mas seja. Pode ser que assim fique claro que este artigo não é tanto sobre a pedofilia, como sobre o funcionamento de uma sociedade civilizada. Nem, em bom rigor, é sobre os “direitos” dos pedófilos, como não é sobre os “direitos” dos assassinos, embora numa sociedade civilizada quer uns quer outros tenham direitos.
Escrevi pedofilia entre aspas porque a palavra é das mais ambíguas que por aí correm, mais sujeita a simplificações, deturpações e ignorâncias. Estamos perante realidades muito diferentes entre si, umas de claro carácter patológico, outras da ordem das perversões sexuais, outras criminosas, e outras dependentes de factores sociais e culturais. Outras ainda, indevidamente classificadas na pedofilia, que na percepção popular inclui o abuso de menores, como se fosse a mesma coisa. Outras, por fim, mais complexas, como a percentagem, mais alta do que se imagina, de pessoas com uma vida sexual normal e que nunca cometem qualquer crime, mas que também se sentem excitados com imagens de crianças. É caso de alguns consumidores de pornografia, que também vêem ou adquirem imagens proibidas e criminosas. Repito o que está em muitos estudos, sem sombra de justificação, mas apenas para revelar que o mundo a preto e branco é mau conselheiro para estas questões.
Existem classificações jurídicas precisas, mas aquilo de que trato é da percepção popular e mediática da pedofilia, que é o fundo, entre o medo legítimo e a ignorância populista, para que esta proposta governamental remete. Deixemos, por isso, o direito de lado, porque só por ilusão é que esta proposta tem a ver com um estado de direito. Remete para medos mais do que para riscos, e defronta mal os riscos.
A verdade é que o debate sobre a pedofilia está de tal maneira inquinado pela obsessão mediática com o assunto nos últimos anos, que data do “affaire Dutroux” de 1996 na Bélgica, que incluía pedofilia e assassinato, que não é possível qualquer discussão razoável sobre o assunto. Hoje, o crime hediondo por excelência é a pedofilia, antes não o era. Tudo pode ser feito, se do outro lado estiver um pedófilo real ou imaginário, e, se o “povo” mandasse, inclusive a pena de morte.
A história da percepção da pedofilia, (como por exemplo da violência doméstica), é relevante para que se seja capaz de relativizar o tema. Para quem consulta os cortes da censura nos anos do salazarismo, na secção das “questões morais e de costumes”, encontra muitas notícias que hoje seriam enquadradas na pedofilia, mas que antes eram classificadas como “abuso de menores”, ou actos, reprováveis sem dúvida, mas a que a sociedade não dava grande importância. A censura cortava, mas não se escandalizava.
Pedofilia, pura e dura, existia diante dos olhos de todos ainda há uns anos e ninguém queria saber disso para nada. Aliás, numa mistura de ignorância e hipocrisia, existia também na sociedade portuguesa, onde era possível que algumas celebridades do mundo artístico, da poesia, da música e do jet set se passeassem com pupilos entregues por pais e mães (mais neste caso por mães), que apareciam como governantas, caseiras ou empregadas de confiança, num trade off económico e social a que ninguém dava importância. Casos de pederastia e de pedofilia, apareceram em revistas do coração e do jet set, como se a mais normal das companhias para um adulto fossem menores pré-púberes em fotos nas piscinas e nos restaurantes.
O grande argumento a favor de um registo de pedófilos é o carácter compulsivo do crime, e o risco da sua repetição. Mas se é assim estamos perante algo que é da ordem da doença e deve ser tratado como uma doença. Acresce, que não vejo muitas estatísticas a apoiarem as afirmações da Ministra sobre a reincidência em Portugal, tanto mais que o contexto conhecido da maioria dos crimes de pedofilia em Portugal é o familiar. Ou seja, outro mundo bem diferente dos filmes de Hollywood em que a pedofilia e o serial killing são tratados de forma idêntica. São coisas de pais com filhas e amigas das filhas, de tios com sobrinhas, de padrastos e padrinhos com enteadas e afilhados.
Sem dúvida que deve prevalecer o “superior interesse da criança”. A questão é saber se a prevalência desse interesse é garantida por estas medidas, o que muito duvido. Um pedófilo compulsivo, não se deterá na obrigação de dizer qual é a sua residência à polícia e procurará fora do registo, encontrar as suas vítimas. O registo será um pesadelo é para aqueles que tendo sido condenados por pedofilia, muitos dos quais não são pedófilos na definição rigorosa do termo, e que, cumprida a sua pena, queiram andar com a sua vida para frente.
Os defensores da proposta indignam-se muito quando se referem estas possibilidades mais que realistas, com afirmações do género de que o “superior interesse da criança” prevalece sobre tudo o resto e que, portanto, as acusações de que o registo é uma forma de “condenação perpétua” são irrelevantes. Eu não sei se a Ministra sai à rua, à rua física, ou à rua da Internet. Eu já vi, e mais do que uma vez, cartazes em A4, feitos numa impressora e num computador caseiro, com uma fotografia do sr. X ou Y, e com dizeres do género: “atenção, X (nome completo), que mora aqui (endereço completo), é pedófilo. Cuidado com ele”. Não sei se é verdade ou mentira, mas um cartaz desses é de uma enorme violência. Ninguém os assina, ninguém os valida. Mas estão lá, as mesmas informações que a base de dados dará aos pais e que virão para a rua inevitavelmente, de forma anónima, num cartaz, ou num grafito, ou num panfleto anónimo.
Daí a chegarem ao Correio da Manhã, é só encontrar um pretexto hábil. Estou a ver, sem sequer ser necessário ter muita imaginação: “jardim infantil abriu ao lado da residência de um pedófilo”. Ou, residentes do bairro X, querem que o senhor Y saia do seu bairro e um grupo de mães irá de cartazes para a sua porta dizer “rua! Queremos um bairro livre de pedófilos!”. Passou a ser notícia. Quem é que vai querer no seu prédio, na sua rua, no seu bairro, um homem (porque estamos quase sempre a falar de homens) que está registado na lista de pedófilos oficial, ou seja, que o Estado considera perigoso para as crianças?
Tenho poucas dúvidas, mesmo na minha ignorância jurídica, de que a proposta é inconstitucional, pelo que não é a sua efectivação que me preocupa. Se, por absurdo, a proposta fosse constitucional, então não precisaríamos de constituição para nada, porque impera a lei da selva em múltiplas formas, condenações perpétuas, justiça privada, violação de direitos.
O que me preocupa é outra coisa: é o que ela revela dos costumes da sociedade que estamos a construir. Porque não se trata apenas de erigir um pelourinho no meio da praça, mas de ir para além da imagem do pelourinho, porque é errada a sugestão de que esta proposta é arcaizante. Bem pelo contrário, é moderníssima. Só seria possível numa sociedade mediática, com Facebook, Internet, telefones inteligentes e tablets, porque transporta a lei da selva em muita Internet para o meio das ruas. E isso é muito perigoso, também para o “superior interesse da criança”, que inclui viver numa sociedade regulada e mediada, que defronta todos os problemas, mesmo os que nos parecem mais repulsivos, com limitações, a mais importante das quais é a de que não vale tudo.