ABRUPTO

24.2.13


EARLY MORNING BLOGS  
2304 - Quero dos Deuses só que me não lembrem 
 
 Quero dos deuses só que me não lembrem.
Serei livre — sem dita nem desdita,
Como o vento que é a vida
Do ar que não é nada.
O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos,
Cada um com seu modo, nos oprimem.
          A quem deuses concedem
          Nada, tem liberdade
.

(Ricardo Reis)

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23.2.13


ESPÍRITO DO TEMPO: HOJE 
 
Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM) 

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O NÚMERO QUE ESTÁ TATUADO NOS BRAÇOS DOS PORTUGUESES: 
O NÚMERO DO CONTRIBUINTE


Aqui há uns anos houve uma discussão sobre o número único a propósito do cartão do cidadão. É uma matéria pouco popular, tida como importando apenas aos intelectuais e aos políticos, que as pessoas comuns vêem com muita indiferença. Se lhes parece mais eficaz que cada um tenha um número único que sirva para o identificar num bilhete de identidade, para reconhecer uma assinatura, na Segurança Social, no fisco, numa ficha médica, num cartão de crédito ou de débito, qual é o problema? Se isso lhe poupa tempo e papéis, qual é a desvantagem? Se isso permitir perseguir um criminoso, que importa existir uma base de dados com o ADN das pessoas? E se as tecnologias o permitirem, como permitem, qual o mal em podermos vir a ter um chip como os cães, ou uma etiqueta electrónica como as crianças à nascença, por que razão é que nós não podemos ser numerados por um qualquer código de barras tatuado no braço?

A maioria das pessoas é indiferente ao abuso do Estado nestas matérias se daí vier uma aparente maior eficácia e menor burocracia. E os proponentes destas medidas, uns tecnocratas, outros fascinados pelos tecnocratas, outros ainda gente mais perigosa e securitária cujo ideal de sociedade perfeita é o 1984 de Orwell, todos manipulam a opinião contra os antiquados defensores dos "direitos cívicos", que continuam a achar que não se deve ter número único, chip, ou código de barras, em nome dessas coisas tão de "velhos do Restelo" como sejam as liberdades e o direito do indivíduo em ter uma reserva da sua vida íntima e privada, sem intromissão indevida do Estado onde ele não deve estar.


Infelizmente, insisto, a indiferença cívica é o pano de fundo de muitos abusos e a sociedade e o Estado que estamos a construir são os ideais para uma sociedade totalitária. Se uma nova polícia política aparecer - e para quem preza a liberdade esse risco existe sempre -, não precisa de fazer nenhuma lei nova, basta usar os recursos já disponíveis para obter toda a informação sobre um cidadão que queira perseguir. 


A promessa que nos é feita é de que os dados "não são cruzados". Mas esta afirmação não só não é verdadeira como não garante nada. Não impede um serviço de informações que queira abusar, de obter cumplicidades e "cruzar" dados, não impede uma polícia de fazer o mesmo (o episódio do acesso da PSP às filmagens não editadas sem ordem judicial é um exemplo de práticas costumeiras que só são escrutinadas depois de um acidente de percurso), não impede a utilização de software mais sofisticado para fazer buscas na Internet, muito para além da informação já vasta que se pode obter no Google. E se somarmos as câmaras de vigilância e outros meios cada vez mais generalizados de controlo dos cidadãos, mais nos preocupamos com as liberdades no mundo orwelliano em que já vivemos. 


E quanto ao "cruzamento de dados" a partir de um número único com informação indevida, tudo isso já existe e chama-se NIF, número de identificação fiscal, ou mais prosaicamente, "número de contribuinte". De há dez anos para cá, o Governo Sócrates e depois o Governo Passos Coelho transformaram o fisco no mais parecido que existe com uma polícia global, e uma polícia global é também política, e o número de contribuinte no verdadeiro número único dos portugueses, cujo acesso permite todos os cruzamentos de dados e uma violação sem limites da privacidade de cada cidadão. Se somarmos a isso o facto de o fisco ser a única área da lei em que a presunção da inocência não existe e o ónus da prova cai no cidadão, temos um retrato de um Estado de excepção dentro de um Estado que se pretende de direito.


E não preciso de estar a recitar a litania do combate à evasão fiscal, porque este caminho de abuso tem sido trilhado exactamente porque o combate à evasão fiscal tem sido ineficaz onde deveria ser. O furor do Estado volta-se contra as cabeleireiras, os mecânicos de automóveis e as tabernas, mas ignora os esquecimentos de declaração de milhões de euros, que só são declarados quando descobertos e não merecem uma palavra de condenação nem do ministro das Finanças, nem do Banco de Portugal, nem de ninguém dos indignados com a factura dos cafés. E é exactamente porque o combate à evasão fiscal falha, ou porque a economia está morta, ou porque os Monte Brancos são mais numerosos do que todas as montanhas dos Alpes, dos Andes, do Himalaia, que se assiste a uma espécie de desespero fiscal que leva o Estado (os governos) a entrar pela liberdade e individualidade dos cidadãos comuns de forma abusiva e totalitária. Digo totalitária, mais do que autoritária, porque a tentação utópica de "conhecer" e controlar a sociedade e os indivíduos através da monotorização de todas as transacções económicas é de facto resultado de mente como a do Big Brother


Num computador do fisco está toda a nossa vida já inventariada e cruzada através do número de contribuinte e dos poderes discricionários da Autoridade Tributária. Se de manhã ao pequeno-almoço não pedir factura do café, pode vir um fiscal e multar-me (não pode porque é ilegal, impossível de facto, e o Governo anda a mentir-nos a dizer que já o fez quando se devem contar pelos dedos da mão as contra-ordenações realizadas, se é que há alguma à data do anúncio), e para lavrar o "auto" terá de dizer onde estou, o que consumi sem factura e informar o Estado sobre se tomo chá, café ou chocolate, doces ou salgados, etc. Depois passo por uma livraria e na factura estão os livros que comprei e está o número de contribuinte. Hum! Este anda a ler livros subversivos, ou quer saber coisas sobre a Tabela de Mendeleev (a química é sempre perigosa), ou uma história sexualmente bizarra como a Lolita, (diga aí ao assessor do senhor ministro que um boato de pedofilia é sempre mortífero e o homem lê livros sobre isso), ou o Vox do Nicholson Baker (uma história de sexo por telefone que o procurador Starr queria usar como prova contra Clinton, pedindo à livraria que lhe confirmasse a compra do livro por Monica Lewinsky, o que a livraria recusou e bem). Depois foi almoçar, e pelo número de contribuinte verifico que almoça muitas vezes a dois, e dois é um número suspeito. Coloque lá no mapa o sítio do pequeno-almoço, mais a livraria, mais o restaurante, e as horas. E depois? A Via Verde cujo recibo tem o número de contribuinte mostra que entrou na portagem X e saiu na portagem Y. Interessante, o que é que ele foi fazer ao Entroncamento? E levantou dinheiro no Multibanco. Muito ou pouco? Bastante. Veja lá as facturas que ele pagou no Entroncamento. Aqui está, comprou uma mala de viagem. Então a factura? Não há, comprou nuns chineses, mas foi visto com a mala na câmara de vigilância de um banco. Anote aí para mandar uma inspecção do fisco e da ASAE aos chineses, imagine o que seria se nós não tivéssemos as imagens do banco! O que é que ele vai fazer com a mala? E por aí adiante.


A nossa indiferença colectiva face ao continuo abuso do Estado, que nada melhor nos dias de hoje revela do que o fisco, vai acabar por se pagar caro. Muitos tentaram fugir ao fisco? É verdade, muitos inclusive nunca pagaram impostos e vivem numa economia paralela, mas a sanha contra eles, que face ao fisco não tem direitos, nem defesa, nem advogados, contrasta com a complacência afrontosa com a fraude fiscal com os poderosos. É que também nisso, na perseguição aos pequenos, se revela o mundo totalitário de 1984 e do Triunfo dos Porcos, em que alguns são mais iguais do que outros. E pelo caminho, para garantir que os pequenos sejam apanhados na malha, pelo desespero de um fisco que quer sugar uma economia morta de recursos que ela não tem, é que se usa o número de contribuinte como número único, cruzado nos computadores das finanças, muito para além do que é necessário e equilibrado, numa ameaça às liberdades de cada português.

*

E, como em  Fahrenheit 451, de Ray Bradbury,  os perseguidos refugiam-se fora das cidades hiper-vigiadas, em locais de penumbra económica onde cada  um tem de decorar o livro da sua vida  patrimonial e financeira   antes que o Fisco o encontre, confisque e execute o portador .  Depois, sempre sem registos,  transmite o seu conteúdo a outros refugiados, que assim o preservam, até que, um dia, possuir tal livro escrito deixe de ser perigoso.

(Mário J. Heleno)

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EARLY MORNING BLOGS  
 
2303

Liberdade onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia
Porque (triste de mim!), porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a Hora
A esta parte do mundo, que desmaia.
Oh!,venha... Oh!, venha e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal que, frio e mudo,
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.

Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória ,e tudo,
Mãe do génio e prazer, ó Liberdade!
 
(Bocage)

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22.2.13


EARLY MORNING BLOGS  
 
2302

Cowards die many times before their deaths. The valiant never taste of death but once. 

( William Shakespeare)

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17.2.13



NO CENTENÁRIO DE ÁLVARO CUNHAL

 

Deixado para trás um trabalho - parte de outro trabalho maior, de muitos anos, sobre a extrema-esquerda -, que vai sair em livro muito em breve, volto à biografia de Álvaro Cunhal. Desde a publicação do terceiro volume, cobrindo os anos de prisão entre 1949 e a fuga nos primeiros dias de 1960, mantive sempre uma contínua recolha de materiais relativos ao biografado, cujo número aumentou consideravelmente. Entretanto Cunhal morreu, e um número significativo de livros e recolhas têm vindo a ser publicados, à volta da personagem, quer como homenagens relacionadas com a sua morte, quer explorando aspectos da sua vida e testemunhos biográficos. Este ano, ano do centenário do seu nascimento, o PCP anuncia um número significativo de iniciativas comemorativas, pelo que muito se irá ouvir falar de uma das personagens mais interessantes do século XX português, com enorme importância para a vida nacional, das antigas colónias e mesmo do movimento comunista internacional nas últimas décadas de existência da URSS. 


O funeral de Álvaro Cunhal, a última grande manifestação de massas do comunismo histórico, ocorrida numa democracia ocidental, mostra como a personagem ultrapassou o PCP e os comunistas, para em Portugal ser visto como uma espécie rara de "santo" laico, exemplo de virtudes pessoais na vida política, exactamente aquelas que quase ninguém associa hoje a qualquer político: honestidade, probidade, dedicação a uma convicção própria, sem esperar benesses ou vantagens, bem pelo contrário. Não é possível negar que Cunhal tinha essas virtudes, mas também é óbvio, para quem conheça a sua vida e a sua obra, que cultivou deliberadamente essa imagem de si próprio. E Cunhal é muito mais complexo psicologicamente e contraditório nos seus sentimentos do que a fachada férrea que construiu, o que é evidente na caracterização das personagens em que se auto-retrata na sua ficção.


Fora alguns escassos estudos sobre a história do PCP, menos numerosos do que a bibliografia sobre Cunhal ele mesmo, alguns de carácter académico ainda inéditos, e deixando de lado uma excepção na regra dominante que é o livro de citações de Miguel Carvalho, Álvaro Cunhal Íntimo e Pessoal, a maioria do que se publicou sobre Álvaro Cunhal é de carácter testemunhal, sem distanciação qualquer em relação aos eventos. Os livros de João Céu e Silva, Álvaro Cunhal e as Mulheres Que Tomaram Partido, e Uma Longa Viagem com Álvaro Cunhal, são os que neste tipo de publicações contêm testemunhos mais interessantes. 


Há igualmente muita hagiografia sobre Cunhal, como é o caso da série de depoimentos organizada por Urbano Tavares Rodrigues, É Tempo de Começar a Falar de Álvaro Cunhal e alguns livros de entrevistas a Cunhal nos seus últimos anos de vida. Um exemplo é a entrevista excessivamente sentimental que Maria Valentina Paiva faz, intitulada Ao Canto do Espelho, no mesmo tom das Cinco Conversas com Álvaro Cunhal de Catarina Pires. Não é que procurando bem não se encontrem algumas informações úteis, no meio de páginas e páginas de panegírico acrítico, mas são um efectivo desperdício. 


O que elas revelam é à revelia dos seus autores. Como é o caso deste retrato perfeito da notável capacidade de sedução que Cunhal tem para com as mulheres, visível neste início de entrevista que é todo um tratado:

"Catarina - Se estiver de acordo, podemos começar por falar sobre a história e sobre a forma como esta tem sido escrita ao longo dos tempos...
Álvaro - ... desculpa interromper... mas eu trato-te por tu... estás a tratar-me na terceira pessoa... não é cómodo numa conversa...
Catarina - Está bem, eu trato-o por tu..."

Catarina tem 24 anos, o "Álvaro" tem 85 e era quem era. A partir daqui, desta intimidade forçada, quem manda na conversa é Álvaro Cunhal, que, aliás, salvo raras excepções, era muito mais aberto a ser entrevistado por mulheres do que por homens.


Outros testemunhos mais hostis são muito desiguais, e, no caso das obras escritas por ex-companheiros de Cunhal no PCP, há que ultrapassar o ajuste de contas interno, que muitas vezes acompanha esta memorialística, como é o caso de Zita Seabra. Isso não significa que muito do seu testemunho pessoal não seja certeiro e útil, mas, como igualmente acontece com Cândida Ventura, há um excesso de tese e de justificação que impregna o depoimento e que torna difícil separar o evento da sua interpretação. De qualquer modo, há igualmente silêncios, cuja superação admito ser difícil, quando se trata de mulheres, cuja relação com o mundo que viviam na clandestinidade comunista em Portugal exige uma enorme prudência, mesmo pudor, no seu tratamento. De qualquer modo, essas memórias, como quase todas, são bastante omissas quanto às relações que qualquer militante no topo acabava por ter, ou por conhecer, dos mecanismos de controlo soviéticos.


De todas essas memórias, as mais interessantes são as de Carlos Brito, que abrangem o período posterior a 1966, data do seu primeiro encontro, até à ruptura com o PCP, e que mantém intacta a complexidade da personagem, sem excluir o contexto conflitual em que ambos se envolveram, apesar da reverência que o autor manifesta para com Cunhal. Cunhal aqui é mais severo e não é propriamente homem de muitas reverências com os que abandonaram o PCP, embora com a idade e a velhice alguma complacência aumentasse. Cunhal, no fundo, como revela o Se Fores Preso Camarada e alguma ficção, era um bom conhecedor das fragilidades humanas e, verdade seja, nunca foi propenso ao moralismo.


A biografia "pessoal e íntima" de Adelino Cunha é um trabalho demasiado superficial e acrítico, em que o tom jornalístico da revelação se sobrepõe a uma análise da personagem e do seu contexto. Contando com o apoio da família, irmã, companheiras e filha de Cunhal, e de alguns militantes comunistas históricos, o livro contém algum material inédito sobre a vida de Cunhal, em particular na URSS e sobre as suas relações pessoais, numa irónica verificação, que não é só portuguesa, de que como autores e jornalistas de direita são mais capazes de aceder a dirigentes comunistas que costumam erguer uma firewall sobre a sua vida.
Porém, onde o livro é mais frágil é na colocação de Cunhal no contexto da história do PCP, da oposição portuguesa e do movimento comunista internacional, onde uma "personalização" da acção de Cunhal, com os seus amores e ódios, substitui um conhecimento real do que efectivamente se passou, resultado da escassa investigação dos materiais existentes, escritos e em arquivos, e de uma enorme insensibilidade e ignorância sobre o mundo comunista e a mentalidade militante.


Esta lista não é exaustiva e deixa de fora, por exemplo, alguns artigos originais e os filmes documentários feitos por volta da morte de Cunhal. Mas, fora dos testemunhos e depoimentos, mostra a escassez de investigação, documentação e materiais úteis, trazidos nos últimos anos para uma biografia política de Álvaro Cunhal. Neste período de tempo, onde houve uma significativa revolução para os trabalhos sobre o PCP foi de onde menos se esperava: do próprio PCP. Duas iniciativas foram fundamentais: a colocação em linha de uma parte muito significativa da imprensa do PCP na clandestinidade, o Avante!, o Militante, o Têxtil, o Marinheiro Vermelho, e muitos outros periódicos e documentos; e a publicação das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal, no seu terceiro volume, de responsabilidade de Francisco Melo. No seu conjunto, significam uma viragem na atitude tradicional do PCP de fechar a sua história à investigação independente, publicando inclusive alguns textos e documentos até então incómodos e contraditórios com a história "oficial" do partido. Falta dar o passo de abrir os arquivos históricos do partido, pelo menos até 25 de Abril, como acontece com a maioria dos partidos comunistas europeus.


A personalidade de Álvaro Cunhal merece neste ano do seu centenário um conhecimento menos preso à mitologia, quer hagiográfica, quer hostil, para poder devolver-se à memória histórica dos portugueses um homem real e bem pouco comum, em vez de uma abstracção mecânica, que, essa sim, será rapidamente esquecida. Ora, nos anos desta década infeliz, precisamos bem dessa memória mais profunda e complexa da história, para não nos embrutecermos mais do que o que já estamos.

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2301 - The Valley of Unrest

Once it smiled a silent dell
Where the people did not dwell;
They had gone unto the wars,
Trusting to the mild-eyed stars,
Nightly, from their azure towers,
To keep watch above the flowers,
In the midst of which all day
The red sun-light lazily lay.
Now each visitor shall confess
The sad valley’s restlessness.
Nothing there is motionless—
Nothing save the airs that brood
Over the magic solitude.
Ah, by no wind are stirred those trees
That palpitate like the chill seas
Around the misty Hebrides!
Ah, by no wind those clouds are driven
That rustle through the unquiet Heaven
Uneasily, from morn till even,
Over the violets there that lie
In myriad types of the human eye—
Over the lilies there that wave
And weep above a nameless grave!
They wave:—from out their fragrant tops
External dews come down in drops.
They weep:—from off their delicate stems
Perennial tears descend in gems. 
 
(Edgar Allan Poe)

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16.2.13




  HOJE DE NOVO 

a manifestação em directo


CGTP – MANIFESTAÇÃO (LISBOA, 16 DE FEVEREIRO DE 2013)




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O REDONDISMO NACIONAL


 O PS mostrou num processo atrapalhado e pastoso, como pode fazer bastante mal a um país que infelizmente já tem candidatos bastantes a exercerem essa maldade. Não digo que o PS fez tanto mal ao país como a governação, porque diferencio com clareza o que é do domínio do poder do que são as malfeitorias da oposição, sempre mais inócuas do que o que pode fazer quem detém o poder executivo. 

Mas o PS bem nos podia ter poupado a esta exibição completamente assente numa lógica mediática por fora, embora a realidade da divisão entre os socialistas e a lógica aparelhística sejam a realidade por dentro. É que com esta exibição, a que o nome de medíocre é elogioso, mostra uma das razões pelas quais este governo sobrevive com uma frágil, insegura, débil, comprometida, hesitante, oposição e deixa para os extremos e a rua, a resposta da raiva. 

António Costa quis e a meio deixou de querer, e isso é mortífero para quem quer e não deixou de querer. E o seu maior pecado é deixar-nos sozinhos com Seguro um dos melhores exemplos do redondismo nacional, num país com muitos candidatos à função e em que para se estar no pódio é preciso mesmo muito redondismo. Como todos os “jotas” Seguro actua em função de meia dúzia de ideias sobre a política, em particular aquilo que passa por ser “liderança”, e pelo que os jornais dizem dele. Se dizem que “negoceia”, ele estremece na afronta à sua “liderança”, e vem dar um “murro na mesa”, se dizem que ele é “fraco”, ele vem falar de alto e num discurso cheios de “eus”, “eu avisei”, como há muito disse”, “”eu propus, o governo não quis ouvir e agora faz”, por aí adiante, manifesta uma vanglória vazia que ninguém reconhece, nem sequer ouve.

 Ao fim de uma semana de encenação, Seguro e Costa produziram uma nova variante da “redação da vaca”, do género “a vaca é muito boa, porque dá leite”, etc., que pela sua vacuidade política, insisto política, não merece muitos comentários. Mas voltarei a ele, ao “documento de Coimbra”, com aquele masoquismo essencial que o comentário às vezes tem. Fico-me agora com o revelador incidente do título redondista, “Portugal primeiro”, o mesmo que Passos Coelho usou e que deve existir em múltiplas variantes em centenas de moções das “jotas” de ambos os partidos e depois, quando eles crescem em idade e funções, é transplantado para moções de distritais e federações. Como é que podia ser diferente se eles, Passos, Relvas e Seguro, são iguais, a sua literacia política é idêntica, a sua carreira semelhante que nem a papel químico? Portugal tem uma maldição qualquer em cima.

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EARLY MORNING BLOGS  
 
2300

Bright star! would I were steadfast as thou art—
  Not in lone splendour hung aloft the night,
And watching, with eternal lids apart,
  Like Nature’s patient sleepless Eremite,
The moving waters at their priestlike task
  Of pure ablution round earth’s human shores,
Or gazing on the new soft fallen mask
  Of snow upon the mountains and the moors—
No—yet still steadfast, still unchangeable,
  Pillow’d upon my fair love’s ripening breast,

  Awake for ever in a sweet unrest,
Still, still to hear her tender-taken breath,
And so live ever—or else swoon to death.


(Keats)

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15.2.13




DOIS PAPAS E A “LEI DA VIDA” 


Cada Papa é um Papa e se há lugar onde a diferença individual, a personalidade, o carácter, as ideias, as agendas, a religiosidade, o pensamento sobre a Igreja, a sensibilidade, se revela bem é no papado. Vejam-se só alguns dos Papas do século XX e XXI: Pio XII, Paulo VI, João XXXIII, João Paulo II, e Bento XVI, para perceber que, mesmo pesando as circunstâncias de tempos muito diferentes, cada um trouxe uma marca de individualidade à Igreja Católica Apostólica Romana. É natural que assim seja porque o processo de selecção, se deixarmos de parte o papel difícil de identificar do Espírito Santo, é um dos mais complexos, rigorosos e competitivos do mundo. Só lá chega quem quer ou quem o colégio eleitoral dos cardeais quer, e tal parlamento junta um grupo de pessoas que já leu tudo, já viveu muito e, acima de tudo, já viu de tudo. 

 E, mesmo um agnóstico, desconfiado com a realpolitik vaticana, mediamente sabedor que entre si os bispos e os cardeais são capazes de se detestar com bastante vigor (veja-se o modo conflitual como correu o Concílio Vaticano II, com ataques, defesas, conspirações, sindicatos de voto, etc.), é capaz de admitir que a fé, um sentimento ao mesmo tempo simples e complicado, conta nestes momentos em que é suposto também falarem com Deus. 

Dito isto, voltemos ao modo como dois Papas que colaboraram intimamente e se conheciam muito bem entre si, defrontaram de forma diferente a “lei da vida”. Tenho para mim que a decrepitude e doença intencionalmente reveladas até ao fim por João Paulo II não é diferente na sua intenção e mensagem da abdicação por “falta de força vital” de Bento XVI, mas complementar. Cada um quis dizer uma coisa diferente, porque há na vida a necessidade de dizer e “testemunhar” coisas diferentes. Ambos escolheram aliás fazê-lo na modernidade, seja lá o que isso for. João Paulo II quis mostrar o sofrimento que a doença e a velhice trazem até à última gota, num mundo em que há cada vez mais velhos que com ele se podiam identificar na dor. Num mundo em que o culto da juventude é um elemento do hedonismo contemporâneo, João Paulo II falou da tragédia íntima dos velhos pelo seu próprio exemplo, e a propaganda pelo exemplo é a melhor propaganda como sabiam muito bem os anarquistas. 

Bento XVI fala noutra direcção, mas também com idêntica universalidade, valorizando a vitalidade e a capacidade intelectual que são necessárias para o exercício de uma função tão delicada e árdua como é o papado. Ele não se reformou porque chegou ao limite de idade, ele chegou a um limite de idade íntimo por julgamento próprio, e quis mostrar, também pelo exemplo, que não há drama nenhum para a Igreja em não ser Papa vitalício, se o detentor da Cadeira de Pedro, não se sentir capaz de a servir como certamente desejava. É um gesto que é também um sinal para a hierarquia da Igreja. Nós podemos entender prosaicamente o gesto de cada um, mas de certeza que, quer João Paulo II, quer Bento XVI não o entendem assim, mas trazem a essa decisão, que decisão própria se trata, o peso da sua religiosidade e da sua fé. Ambos fizeram, com as suas atitudes, bem à instituição à frente de que estão, até pela diferença e com a diferença.

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12.2.13



  EARLY MORNING BLOGS  
 
2299

Power does not corrupt men; fools, however, if they get into a position of power, corrupt power.

 (George Bernard Shaw)

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10.2.13



ESPÍRITO DO TEMPO: HOJE 
 
Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM) 

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9.2.13


A TV RURAL  E A FELICIDADE PELA AGRICULTURA


Talvez poucas coisas sejam mais simbólicas do pensamento do poder dos nossos dias, se é que se pode chamar pensamento “àquilo”, é a proposta vinda da maioria da Assembleia, PSD e CDS, mais uns PS que são iguaizinhos, de “sugerir” à RTP produzir um remake da TV Rural do engenheiro Sousa Veloso. É um puro condensado de tudo o que está mal na elite do poder dos nossos dias, em versão mesquinha e ridícula e gritante. O gritante tem uma vantagem. 

Esta proposta revela tudo: ignorância em geral, falta de mundo, falta de vida fora da politiquice, ignorância do que deve ser a relação do poder político com a televisão (mas conhecimento, mostrado á revelia da vontade, do que é o “serviço público”); ignorância do que é a televisão em 2013; ignorância do que é a agricultura, ignorância do que são hoje os agricultores, ignorância do agro, da terra, da lavoura, do campo, de Portugal. Para eles o campo é tão mítico como uma personagem do Harry Potter, para usar uma comparação mitológica que devem conhecer e deixar-me de Grécia, Roma e a Bíblia, que não conhecem de todo. 

Que o ministério da lavoura precise de um espaço de propaganda entende-se. Que haja quem precise no âmbito dessa mesma propaganda do poder, de acreditar que há uma multidão de jovens desempregados que se volta para a agricultura, sem crédito para comprar as terras, sem crédito para comprar sementes e adubos e acima de tudo sem ter a mínima noção do que é fazer uma empresa agrícola em 2013, e ainda menos do que é o trabalho na terra, entende-se. Que haja quem pense que ainda se pode ir para a televisão insistir nos tratamentos para o míldio e o oídio, como fazia e bem o bom do engenheiro Veloso, ou recitar o Borda de Água e os seus bons conselho quanto ao que se deve plantar em Fevereiro, entende-se. Quem tenha uma vaga ideia do que era o piquenicão e pensa que este ainda pode sobreviver às festas dos supermercados, entende-se também. No fundo, tudo se pode entender, mas tudo ao mesmo tempo, poupem-nos.

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“ESTOU DE CONSCIÊNCIA TRANQUILA”

 Esta frase é repetida à náusea pelos governantes sempre que se descobre alguma coisa intranquila. Relvas é o recordista da frase, porque aconteça o que acontecer está sempre “tranquilo”, e, com o exemplo a vir de cima, este governo é especialmente “tranquilo”. Com Sócrates havia tempestades e fúrias e invectivas, com Passos Coelho e Relvas é o Mar da Tranquilidade e a perfeição ética. Mas no fundo é a mesma coisa: não vale a pena andarem a indignar-se por aí que connosco está sempre tudo bem. O CDS por seu lado preocupa-se com as aparências, na boa tradição de que “aquilo que parece é”, até porque está hoje muito castrado e posto na ordem, por razões que não me parecem ser apenas “patrióticas”. Ele há destinos. 

Esta gente faz o que quer e sobra-lhes tempo, com o sentimento de impunidade que tão fundo existe numa cultura de irresponsabilidade que mergulha na mentalidade de políticos que já viram e passaram por tudo aquilo que derrubaria um governo num país civilizado e que aqui é recebido com um encolher de ombros. E como eles é que mandam, querem lá saber se a poderosa “confiança” que o Primeiro-ministro tem em todos, de Relvas a Franquelim, tem que se medir com a generalizada desconfiança dos portugueses. O problema com o novo secretário de estado, numa bizarra remodelação que por si só mereceria maior escrutínio sobre o “estado do governo”, não é ter sido quadro do BPN e da SLN. Por si só tal qualidade podia implicar um período de nojo, pelo menos até ao fim dos processos-crime e outros, mas não define uma incompatibilidade com funções públicas. Podia até ter havido um whistleblower no processo, que poderia ser um herói se os portugueses soubessem que eles lhes poupou, em devido tempo, os milhares de milhões de euros que o banco custou e está a custar, porque ainda não acabou a saga. Poderia, embora o mais provável pelo nosso historial nessas matérias, é que fosse acusado de ser ele o responsável pela queda do banco e banido de vez do círculo de confiança com que o nosso establishment político-económico se blinda. E se o tivesse feito, não seria certamente chamado para o governo, porque os que estão dentro desse círculo, como os actuais governantes, teriam um medo enorme desse denunciante em potência. 

Franquelim Alves não devia poder ser secretário de estado por outras razões: porque omitiu a sua passagem no BPN e na SLN, em cargos que seriam relevantes em qualquer currículo, e porque admitiu que ocultou durante mais tempo do que hoje admite, o conhecimento de crimes financeiros e económicos, de que teve que ter conhecimento, nomeadamente o Banco Insular e as imparidades. É por isso co-responsável pela conta absurda que os portugueses estão a pagar, como aliás alguns dos autores das escandalosas PPPs e que também estão no governo como se nada fosse. Como houve má fé na ocultação no currículo oficial da passagem pelo BPN e pela SLN, com o divertido argumento que não estava no currículo porque “toda a gente sabia”, e negligência ou pior na ocultação do crime, não deveria ser convidado a estar no governo. Mas como factos do mesmo género estão no currículo não escrito de muitos governantes, a começar pelo topo, é natural que a tranquilidade reine.

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  LATE MORNING BLOGS  
 
2298

Concordia discors.

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8.2.13


DOIS TEMPOS: O DOS DE CIMA E O DOS DE BAIXO


Correm paralelos dois tempos no Portugal da crise: um corre em cima e é marcado essencialmente pelos de cima; outro corre em baixo e é sofrido pelos de baixo. Não comunicam entre si, embora se relacionem pela acção de uns, e pelas consequências em outros. O drama da nossa democracia em tempos desta crise encontra-se nessa incomunicabilidade que os distancia irremediavelmente um do outro, criando uma situação disfuncional e explosiva. Quem não entende que isto se está a passar e a agravar-se bem pode prevenir-se. É que o tempo não corre da mesma maneira em cima e em baixo.

O tempo dos de cima é resultado de uma interacção complexa entre o tempo político-partidário, o tempo político-institucional, o tempo da economia, e o tempo mediático. No seu conjunto geram uma corda entretecida de fios comuns, que se desenvolve coerentemente entre si. Este fio temporal, insisto, desenrola-se à margem da percepção das pessoas comuns, cujo tempo é muito distinto. 

O tempo político-institucional é marcado pelas instituições e procedimentos da democracia. É um tempo relativamente rígido - define duração de mandatos, datas de eleições, competências de órgãos, poderes e atribuições. Inclui, no entanto, também factores de ruptura e instabilidade. Crises de governação, geradas por coligações imperfeitas e de má vontade, decisões de tribunais e poderes presidenciais podem dissolver órgãos eleitos e definir alterações do tempo institucional. Em Portugal, apesar da relativa estabilidade formal das instituições, já houve várias rupturas recentes, como seja a dupla dissolução da Assembleia da República com Santana Lopes em 2005 e com Sócrates em 2011. Apesar disso, embora haja factores de instabilidade na actual situação, elas não são de molde a que se possa prever com certeza qualquer ruptura a curto prazo. 

O tempo económico é por regra geral lento, e apesar de ter alguma autonomia em relação ao tempo político, é em tempos de crise muito sensível a este. No entanto, é mais errático do que se pensa e os seus efeitos não se manifestam todos no mesmo sentido, nem nas empresas, nem na sociedade "económica", nem nas pessoas. Não actua de forma comum: pode beneficiar, por exemplo, o sector financeiro e ser devastador para as empresas, pode melhorar alguns números macroeconómicos e ser irrelevante para a vida concreta das pessoas. Pode ser, e é, como sistema muito complexo, em grande parte imprevisível. Só os economistas-políticos, neoliberais ou marxistas, é aqui o mesmo, é que pensam existir uma correlação simples entre medidas económicas e efeitos sociais e menosprezam a mediação do político orgânico, ou as turbulências inorgânicas dos de baixo. Os economistas-políticos, repito de novo, sejam neoliberais ou marxistas, estão por isso sempre a ter "surpresas".

O tempo mediático é na realidade o espelho de todos os outros, em particular do tempo político-partidário, e molda-o a ciclos que lhe são próprios. A hegemonia da narrativa comunicacional sobre a narrativa política faz com que as duas se desenvolvam do mesmo modo e ao mesmo ritmo. Muito pouca coisa que aí se passa - arranques, travagens, acelerações, mudanças do positivo para o negativo, ciclos de sucesso e falhanço - tem alguma coisa a ver com o tempo dos de baixo. 

Veja-se por exemplo, o ciclo da novidade, mecanismo fundamental da comunicação social, em que o que aparece como novo, mesmo que seja o que está esquecido há poucos meses, pela curta duração da memória comunicacional, tem um valor de per se, mesmo que objectivamente não tenha nenhum significado. A este ciclo de procura da eterna novidade está associado um outro ciclo de dualidades, a mais importante sendo a da euforia-depressão, ou sucesso-falhanço, positividade-negatividade. A procura da novidade leva a que haja surtos de ascensão e queda previsíveis. Passos Coelho já esteve na alta, agora está em baixo, na semana seguinte está em alto, Gaspar a mesma coisa, Álvaro Santos Pereira parece um ioiô de incompetência numa semana e noutra semana motivo de expectativas ilimitadas. 

De um modo geral, Governo e oposição alteram as graças da comunicação, fenómeno exagerado pela amplificação do sistema político-partidário desses ciclos alternantes. A ida aos mercados foi acolhida com muito entusiasmo acrítico da comunicação social, beneficiando aqui uma operação de propaganda governamental, porque permitia a "novidade": o Governo estava a acertar, após meses a falhar. Do mesmo modo, a oposição beneficia desse corso-ricorso, com uma ampliação do efeito de qualquer pedra na engrenagem de uma acção governamental tida como vantajosa. É um pouco simples, mas eficaz. As empresas de comunicação e imagem, a miríade de assessores nos gabinetes governamentais, usam estes mecanismos para obter efeitos positivos ou minimizar desastres políticos tidos como "erros de comunicação".

Nesta narrativa comunicacional, que os partidos políticos levam para o Parlamento em "intervenções políticas" que são um reflexo da imprensa do dia, nós assistimos à criação de um tempo político virtual. Todos estes tempos de cima podem ser sintetizados na sua força virtual, e na sua fraqueza real, pelas afirmações sobre a luz ao fundo do túnel. Aqui, economistas, banqueiros, jornalistas, comentadores, políticos, empresários entretêm-se à compita em dizer que saímos da crise em finais de 2013 (já foi em 2010, 2011, 2012, 2013, logo no início), ou em 2014, ou depois de 2015, ou depois de uma década. Talvez em nenhum tipo de afirmações, predições, adivinhações, desejos, seja mais nítido a separação dos tempos entre os de cima e os de baixo, como aqui. 

Quem é o "nós"? Não é certamente os de baixo, os que estão na mó de baixo, os que estão a descer, os que estão a empobrecer, os que já são pobres. Não adianta fazer muitas precisões sociológicas, basta dizer que são a esmagadora maioria dos portugueses. "Nós", o povo português. 

O tempo destes é de natureza muito diferente do tempo dos de cima. É dramático, em primeiro lugar. Os de cima podem dizer "atravessamos tempos difíceis", mas eles não são o paradigma desses tempos difíceis. Podem estar a sofrer algumas dificuldades, mas a sua margem de manobra é infinitamente maior. É verdade que a "vida custa a todos", mas por cima custa bastante menos. Os dilemas são soft, em baixo são hard.
Em cima pode haver dificuldades, em baixo há desespero. É por isso que não significa rigorosamente nada para os de baixo, que depois de baterem no fundo todos os números, da economia, do desemprego, do PIB, haja uma pequena recuperação. Tudo o que sobe tem de descer e tudo o que desce a uma dada altura deixa de descer. Mas o que significa isso para o tempo de um desempregado de "longa duração"? Vai ter emprego em 2015? Vai poder dar uma educação superior aos seus filhos como podia dar em 2007? Vai poder pagar a renda de casa? O que significa isso a quem perdeu a casa para o banco em 2011, 2012, 2013, vai poder recuperá-la em 2014, ou 2015, mesmo que se saia da recessão? Quem viu falir a sua pequena empresa, de que vivia o "patrão" e dois ou três empregados, no comércio ou na restauração, vai poder reabri-la depois da ida protegida pelo BCE aos mercados? Quem deixou de poder pagar ao fisco e tem uma execução sobre os seus escassos bens, sobre o seu salário, vai poder de repente ganhar mais para pagar os seus impostos altíssimos? 

O tempo para estes portugueses não tem folga nenhuma, nem ciclos de novidade, nem surtos de depressão e euforia. A sua vida centra-se no fim do mês até à primeira conta que não pode pagar. A sua vida não conhece "novidades" mediáticas, nem luzes ao fundo do túnel, nem que seja para daqui a um ano. Se aguentar significa continuar vivo, como na frase vil de um banqueiro, que trata os sem-abrigo como exemplo aceitável, muitos vão continuar vivos. Aleluia! Outros vão morrer na tristeza e no desespero e outros pedirão à morte que venha com pressa. Mas o tempo de todos é imediato, doloroso, sem futuro, para eles não tem qualquer significado nada que não mude a sua condição a muito curto prazo. 

A profunda doença da nossa democracia, em Portugal de 2013, é que os que vivem no tempo dos de cima nada têm a dizer aos que vivem no tempo dos de baixo. Os políticos, os partidos, que em democracia só ganham sentido quando exprimem os interesses, as necessidades, as dificuldades de todos, insisto de todos e no presente, falham esse dever. 

É possível? Claro que é possível. É só saber olhar, saber ver, saber falar com, e saber decidir em função dos interesses de muitos. É fazer as escolhas certas e não se distrair. É olhar para o salário do fim do mês, para a vida no desemprego, para o que diz, com inteira clareza, a Cáritas, em vez de estar obcecado com o jornal do dia seguinte. O maior risco da nossa democracia é que quem devia falar está calado, e que quem fala devia estar calado.

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Você escreve: "Só os economistas-políticos, neoliberais ou marxistas, é aqui o mesmo, é que pensam existir uma correlação simples entre medidas económicas e efeitos sociais e menosprezam a mediação do político orgânico, ou as turbulências inorgânicas dos de baixo. Os economistas-políticos, repito de novo, sejam neoliberais ou marxistas, estão por isso sempre a ter "surpresas"."

O Marxismo não propõe essa correlação simples. Até porque o próprio marxismo, e desde logo Marx, é mais complexo do que isso. É verdade, no entanto, que essa relação simples ou dogmática fez parte da história do comunismo na fase mais dura do estalinismo e foi responsável, a meu ver, pela eleição, por Stalin, dos Socias-democratas como os inimigos por excelência dos comunistas - eleição essa que ainda assim viria depois a ser revista  por Stalin.

Julgo que Althusser coloca melhor a questão quando fala da determinação EM ÚLTIMA INSTÂNCIA da infraestrutura relativamente à superestrutura - instância essa, portanto, que presume a acção sobre a relação infra/super de jogos intermédios de outro tipo e que, portanto, a questão não se resume esta relação directa e simples. Aliás, o sinal prático de que esta correlação não era absolutizada mesmo em Stalin está na atenção que na altura a própria URSS dava às manifestações culturais no que respeita quer à sua interpretação ou teoria quer  à gestão das exibições culturais em espaços públicos. No fundo, nem Stalin levou às últimas consequências o dogmatismo teórico que propôs, ou seja, os cuidados com a produção cultural denunciam pelo menos uma suspeita teórica desse dogmatismo.

A meu ver, e falo como comunista (embora não militante do PCP - desde logo porque já há uns bons anos que emigrei), a determinação do económico face ao político é essencialmente negativa, no sentido filosófico do termo, ou seja, diz menos sobre a capacidade de prever efectivamente o que as pessoas vão decidir do que diz sobre o que as pessoas poderão estar dispostas a ouvir e considerar e cujo só se percebe "a posteriori". Um caso paradigmático hoje em dia é, a meu ver, a ascensão dos neonazis na Grécia, ou seja, um dos efeitos da crise grega, para os gregos, poderá ser a disponibilidade de muitos para escutar, dar atenção, ao discurso neonazi - algo que talvez fosse impensável caso a crise não fosse tão profunda. É portanto nesta linha que eu interpreto hoje essa questão da determinação de última instância do económico sobre o ideológico, digamos assim, ou sobre o político.

Em conclusão, os marxistas ou comunistas contemporâneos só aderem a esse dogmatismo se não estiverem actualizados, não só face à história da URSS como ainda face aos próprios desenvolvimentos teóricos que a ideia comunista tem tomado ao longo da sua própria história, nomeadamente na fase contemporânea ou pós-soviética.

No caso Português não se conhece bem, ou não é público em forma sistematizada, as actualizações teóricas do PCP no entanto olhando para o seu programa e para o seu discurso vemos que não parece ser esse dogmatismo que prevalece - a defesa do sistema eleitoral pluripartidário que o PCP faz no seu Programa tal como a defesa da pequena e média propriedade do capital parece indicar que a história da URSS não caiu em saco roto no PCP.

Claro que o PCP mantém uma relação tensa com o sistema vigente mas esta tensão não significa uma rejeição de todas as premissas do sistema mas sim, a meu ver, e acima de tudo, uma rejeição da premissa essencial. Esta premissa, que colocarei a seguir, tem de ser rejeitada pelo PCP se, especulativamente, ele não quiser ser derrotado a toda a linha - ou seja, é derrotado, em sentido especulativo, aquele que num conflito com um oposto tomar para si a "lógica" desse oposto. A premissa de que falo, e para concluir, é que à política cabe somente a administração dos assuntos correntes do capitalismo, ou seja: à política cabe não ser política.
 
João Vasco. 

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  LATE MORNING BLOGS  
 
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Mendacem memorem esse oporte.

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7.2.13


A PARTIDOCRACIA NO SEU ESPLENDOR…

... no PSD, no Porto e em Vila Nova de Gaia; no PS, à volta do conflito Seguro – Costa. Os homens do aparelho fazem sempre as mesmas perguntas: quem é que eu devo apoiar para manter o lugar que tenho (deputado, vereador, assessor, gestor, etc.); quem é que devo apoiar para ter o lugar que quero (no partido, na administração, na autarquia, no governo, etc.), quem é meu “amigo”, quem é o meu “inimigo”, quem é que parece mais capaz para defender os interesses do meu grupo, da minha estrutura, A mim e aos “meus”, amigos, amantes, família, companheiros fiéis, parceiros de negócio. Quem perturba esta lógica, é atirado para as trevas exteriores, seja qual for a sua mais-valia social. Quem não a põe em causa, mesmo que seja um absoluto medíocre, está em casa. Uma vez entrado no sistema, fica lá sempre se se comportar como se espera, se for “confiável”, se não fizer ondas, se mostrar a camisola, se reagir pavlovianamente a tudo o que afecte os interesses do aparelho. 

É assim que se fazem as carreiras, é assim que tudo se move. É assim que estamos.

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EARLY  NIGHT BLOGS  
 
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"It is vain to say human beings ought to be satisfied with tranquility; they must have action; and they will make it if they cannot find it. "

(Charlotte Bronte)

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2.2.13


FUTEBOL POLÍTICO

Vivemos nos últimos dias um momento de apogeu de uma arte muito portuguesa, cujo exercício se tem aprimorado nos tempos mais recentes: o futebol político. Nesta semana, o Governo meteu um clamoroso golo nas balizas da oposição com o "regresso aos mercados". Nas semanas anteriores, a oposição meteu outros tantos golos, quanto lhes permitiram a gloriosa táctica das regras de Chatham House em conferências de propaganda pagas por nós, ou o relatório "muito bem feito" do FMI, e outras confusões avulsas. Portas parece que meteu um golo a Relvas na RTP e Relvas para se vingar atirou seiscentas bolas contra os trabalhadores da RTP. Gaspar também já tinha metido um golo a Portas, pelo que este registou num caderninho mental a necessidade de ajustar as contas numa próxima ocasião. Passos Coelho, esse, vê a bola passar. E por aí adiante.

Vários locais são o território ideal para este futebol político: o Parlamento, os blogues e os jornais, No Parlamento, o dualismo Governo/partidos de Governo versus partidos da oposição domina todo o debate. Ele é pela sua natureza posicional em vez de ser racional, depende não do que se pensa, mas do lugar onde se está. Defende-se com unhas, dentes e palavras os "nossos", e atacam-se os "outros". Alguns deputados mais truculentos fizeram e fazem a sua carreira dessa aptidão especial de fidelidade canina ao seu lado, sem memória, sem razão e quase sempre sem vergonha. Os regionalistas tornam-se centralistas, os nortistas descobrem-se sulistas, os liberais em defensores acesos de um Estado burocrático e colectivista, os do "partido dos contribuintes" passam a adeptos do partido dos impostos, os da lavoura passam para a indústria, o que servia há um ano já não serve um ano depois. Não são argumentos que se contrapõem mas factos-assassinos: o facto A destinado a esmagar o facto B, as "trapalhadas" actuais de Passos defrontam a "bancarrota" de há um ano de Sócrates, e vice-versa. 
 

Cada um diz ao outro: também tu já fizeste isto, pelo que não tens o direito a falar. Pouco importa o tempo, ou as circunstâncias: o debate parlamentar é a-histórico pela sua natureza, é uma retórica dualista e grosseira, confrontacional, sem contexto, nem pano de fundo. Na verdade, tudo o que se diz em resposta podia ser dito sem se ouvir a pergunta. O deputado A pode falar em urdu, porque o deputado B que lhe responde fala em gaélico e pouco importa que as línguas não comuniquem entre si, porque cada um está a falar para a sua claque, que só se reconhece na língua do seu clube, na cor da sua camisola, no hastear da sua bandeira. Ou então está a falar para o seu chefe, ou a sua secção ou a sua federação, para que mais tarde venha a ser recompensado com a manutenção na lista de deputados, o objectivo corrente da maioria dos deputados: ficar onde se está.

O Parlamento está cada vez mais parecido com os blogues e vice-versa. Não é de estranhar porque cada vez comunicam mais no estilo, nos temas, na maneira clubística de ter lado, bandeira, camisola, e, mesmo nas últimas eleições, na proveniência e autoria. A política na Internet, blogues, redes sociais, Facebook e twitter em particular, tem todos os elementos desse simplismo reducionista essencial que serve às mil maravilhas como extenso campo ao futebol político. O modo tribal como os blogues funcionam, o ideal que é poder comunicar sem ter nada para dizer em 140 caracteres, com a sua especial adaptação à má-língua e intriga, a confraternização adolescente e o intimismo artificial das páginas de Facebook, tudo isto atrai as almas simples do futebol político. Cada vez mais as "jotas" se formam ali, deixando para trás estudos sérios e livros, tudo coisas muito intelectuais, complicadas, inúteis, talvez piegas.
 

Os blogues da situação que antes eram da oposição, desfalcados dos muitos assessores que deram ao actual poder, animam-se de repente quando há um golo do Governo. Esta semana ressuscitaram dos quase mortos muitos dos seus autores, que voltaram eufóricos à escrita. Pelo contrário, o ar enfiado dos blogues da oposição contrasta com semanas e semanas de euforia com as asneiras da equipa do Governo. A vida nem sempre é fácil, e com Seguro é ainda mais difícil. Estas formas pouco subtis de felicidade grupal animam a auto-estima das claques que nas páginas de comentários se insultam umas às outras. É um mundo mentalmente pobre, mas muito animado.


A comunicação social funciona em contínuo com este futebol político, parlamentar, partidário e da rede, sendo aliás não só parte do jogo, como o terreno ideal do jogo. A maneira como os jogadores Cavaco, Seguro, Passos, Relvas, Portas e Gaspar estão sempre a ser descritos como se "arrasando" uns aos outros, ganhando ou perdendo, tendo as setas para baixo ou para cima nas secções de rating dos jornais, não é mais do que a tradução desta visão lúdica da política. Os títulos seguem a mesma linha de simplicidade espectacular. De facto não é xadrez, é futebol.

 
O que se passa com esta descrição da política como um jogo de futebol é que impregna o espaço público de "explicações" simples, fáceis e reducionistas, que não explicam nada e pelo contrário têm o efeito de ocultar tudo o que é importante e valorizar tudo o que é irrelevante. Se associarmos a esta mecânica a incapacidade de manter o foco da atenção no que é importante, em detrimento do que lhes parece ser "novidade", mesmo que trivial, o resultado é um permanente discurso errático, sem memória, poder analítico, saber, ou seja, sem informação. O que é que sabemos sobre as privatizações, as negociações (ou a ausência delas) na Europa ou com a troika, que acordos e compromissos existem com a banca, que fazem de facto Relvas em Angola e no Brasil, Passos Coelho em S. Bento, Portas no CDS, e Gaspar na burocracia financeira do BCE e do FMI? De tudo o que é importante sabemos muito pouco, a não ser as fugas de informação orientadas, de Marques Mendes à primeira página do Expresso. Se há paciente que sofre de distúrbio de Défice de Atenção com Hiperactividade é a comunicação social, com as honrosas excepções que brilham no escuro.


Há um pequeno problema no futebol político: se olhassem para as bancadas apercebiam-se de duas coisas. Uma, a de que ninguém os está a ver; a outra, de quem os está a ver prepara-se para saltar para o campo e linchar as equipas. Isto assim não vai longe.

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© José Pacheco Pereira
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