ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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8.2.13
DOIS TEMPOS: O DOS DE CIMA E O DOS DE BAIXO
Correm paralelos dois tempos no Portugal da crise: um
corre em cima e é marcado essencialmente pelos de cima; outro corre em
baixo e é sofrido pelos de baixo. Não comunicam entre si, embora se
relacionem pela acção de uns, e pelas consequências em outros. O drama
da nossa democracia em tempos desta crise encontra-se nessa
incomunicabilidade que os distancia irremediavelmente um do outro,
criando uma situação disfuncional e explosiva. Quem não entende que isto
se está a passar e a agravar-se bem pode prevenir-se. É que o tempo não
corre da mesma maneira em cima e em baixo.
O tempo dos de cima é
resultado de uma interacção complexa entre o tempo político-partidário, o
tempo político-institucional, o tempo da economia, e o tempo mediático.
No seu conjunto geram uma corda entretecida de fios comuns, que se
desenvolve coerentemente entre si. Este fio temporal, insisto,
desenrola-se à margem da percepção das pessoas comuns, cujo tempo é
muito distinto.
O tempo político-institucional é marcado pelas
instituições e procedimentos da democracia. É um tempo relativamente
rígido - define duração de mandatos, datas de eleições, competências de
órgãos, poderes e atribuições. Inclui, no entanto, também factores de
ruptura e instabilidade. Crises de governação, geradas por coligações
imperfeitas e de má vontade, decisões de tribunais e poderes
presidenciais podem dissolver órgãos eleitos e definir alterações do
tempo institucional. Em Portugal, apesar da relativa estabilidade formal
das instituições, já houve várias rupturas recentes, como seja a dupla
dissolução da Assembleia da República com Santana Lopes em 2005 e com
Sócrates em 2011. Apesar disso, embora haja factores de instabilidade na
actual situação, elas não são de molde a que se possa prever com
certeza qualquer ruptura a curto prazo.
O tempo económico é por
regra geral lento, e apesar de ter alguma autonomia em relação ao tempo
político, é em tempos de crise muito sensível a este. No entanto, é mais
errático do que se pensa e os seus efeitos não se manifestam todos no
mesmo sentido, nem nas empresas, nem na sociedade "económica", nem nas
pessoas. Não actua de forma comum: pode beneficiar, por exemplo, o
sector financeiro e ser devastador para as empresas, pode melhorar
alguns números macroeconómicos e ser irrelevante para a vida concreta
das pessoas. Pode ser, e é, como sistema muito complexo, em grande parte
imprevisível. Só os economistas-políticos, neoliberais ou marxistas, é
aqui o mesmo, é que pensam existir uma correlação simples entre medidas
económicas e efeitos sociais e menosprezam a mediação do político
orgânico, ou as turbulências inorgânicas dos de baixo. Os
economistas-políticos, repito de novo, sejam neoliberais ou marxistas,
estão por isso sempre a ter "surpresas".
O tempo mediático é na
realidade o espelho de todos os outros, em particular do tempo
político-partidário, e molda-o a ciclos que lhe são próprios. A
hegemonia da narrativa comunicacional sobre a narrativa política faz com
que as duas se desenvolvam do mesmo modo e ao mesmo ritmo. Muito pouca
coisa que aí se passa - arranques, travagens, acelerações, mudanças do
positivo para o negativo, ciclos de sucesso e falhanço - tem alguma
coisa a ver com o tempo dos de baixo.
Veja-se por exemplo, o
ciclo da novidade, mecanismo fundamental da comunicação social, em que o
que aparece como novo, mesmo que seja o que está esquecido há poucos
meses, pela curta duração da memória comunicacional, tem um valor de per se,
mesmo que objectivamente não tenha nenhum significado. A este ciclo de
procura da eterna novidade está associado um outro ciclo de dualidades, a
mais importante sendo a da euforia-depressão, ou sucesso-falhanço,
positividade-negatividade. A procura da novidade leva a que haja surtos
de ascensão e queda previsíveis. Passos Coelho já esteve na alta, agora
está em baixo, na semana seguinte está em alto, Gaspar a mesma coisa,
Álvaro Santos Pereira parece um ioiô de incompetência numa semana e
noutra semana motivo de expectativas ilimitadas.
De um modo
geral, Governo e oposição alteram as graças da comunicação, fenómeno
exagerado pela amplificação do sistema político-partidário desses ciclos
alternantes. A ida aos mercados foi acolhida com muito entusiasmo
acrítico da comunicação social, beneficiando aqui uma operação de
propaganda governamental, porque permitia a "novidade": o Governo estava
a acertar, após meses a falhar. Do mesmo modo, a oposição beneficia
desse corso-ricorso, com uma ampliação do efeito de qualquer
pedra na engrenagem de uma acção governamental tida como vantajosa. É um
pouco simples, mas eficaz. As empresas de comunicação e imagem, a
miríade de assessores nos gabinetes governamentais, usam estes
mecanismos para obter efeitos positivos ou minimizar desastres políticos
tidos como "erros de comunicação".
Nesta narrativa
comunicacional, que os partidos políticos levam para o Parlamento em
"intervenções políticas" que são um reflexo da imprensa do dia, nós
assistimos à criação de um tempo político virtual. Todos estes tempos de
cima podem ser sintetizados na sua força virtual, e na sua fraqueza
real, pelas afirmações sobre a luz ao fundo do túnel. Aqui, economistas,
banqueiros, jornalistas, comentadores, políticos, empresários
entretêm-se à compita em dizer que saímos da crise em finais de 2013 (já
foi em 2010, 2011, 2012, 2013, logo no início), ou em 2014, ou depois
de 2015, ou depois de uma década. Talvez em nenhum tipo de afirmações,
predições, adivinhações, desejos, seja mais nítido a separação dos
tempos entre os de cima e os de baixo, como aqui.
Quem é o "nós"?
Não é certamente os de baixo, os que estão na mó de baixo, os que estão
a descer, os que estão a empobrecer, os que já são pobres. Não adianta
fazer muitas precisões sociológicas, basta dizer que são a esmagadora
maioria dos portugueses. "Nós", o povo português.
O tempo destes é
de natureza muito diferente do tempo dos de cima. É dramático, em
primeiro lugar. Os de cima podem dizer "atravessamos tempos difíceis",
mas eles não são o paradigma desses tempos difíceis. Podem estar a
sofrer algumas dificuldades, mas a sua margem de manobra é infinitamente
maior. É verdade que a "vida custa a todos", mas por cima custa
bastante menos. Os dilemas são soft, em baixo são hard.
Em
cima pode haver dificuldades, em baixo há desespero. É por isso que não
significa rigorosamente nada para os de baixo, que depois de baterem no
fundo todos os números, da economia, do desemprego, do PIB, haja uma
pequena recuperação. Tudo o que sobe tem de descer e tudo o que desce a
uma dada altura deixa de descer. Mas o que significa isso para o tempo
de um desempregado de "longa duração"? Vai ter emprego em 2015? Vai
poder dar uma educação superior aos seus filhos como podia dar em 2007?
Vai poder pagar a renda de casa? O que significa isso a quem perdeu a
casa para o banco em 2011, 2012, 2013, vai poder recuperá-la em 2014, ou
2015, mesmo que se saia da recessão? Quem viu falir a sua pequena
empresa, de que vivia o "patrão" e dois ou três empregados, no comércio
ou na restauração, vai poder reabri-la depois da ida protegida pelo BCE
aos mercados? Quem deixou de poder pagar ao fisco e tem uma execução
sobre os seus escassos bens, sobre o seu salário, vai poder de repente
ganhar mais para pagar os seus impostos altíssimos?
O tempo para
estes portugueses não tem folga nenhuma, nem ciclos de novidade, nem
surtos de depressão e euforia. A sua vida centra-se no fim do mês até à
primeira conta que não pode pagar. A sua vida não conhece "novidades"
mediáticas, nem luzes ao fundo do túnel, nem que seja para daqui a um
ano. Se aguentar significa continuar vivo, como na frase vil de um
banqueiro, que trata os sem-abrigo como exemplo aceitável, muitos vão
continuar vivos. Aleluia! Outros vão morrer na tristeza e no desespero e
outros pedirão à morte que venha com pressa. Mas o tempo de todos é
imediato, doloroso, sem futuro, para eles não tem qualquer significado
nada que não mude a sua condição a muito curto prazo.
A profunda
doença da nossa democracia, em Portugal de 2013, é que os que vivem no
tempo dos de cima nada têm a dizer aos que vivem no tempo dos de baixo.
Os políticos, os partidos, que em democracia só ganham sentido quando
exprimem os interesses, as necessidades, as dificuldades de todos,
insisto de todos e no presente, falham esse dever.
É possível?
Claro que é possível. É só saber olhar, saber ver, saber falar com, e
saber decidir em função dos interesses de muitos. É fazer as escolhas
certas e não se distrair. É olhar para o salário do fim do mês, para a
vida no desemprego, para o que diz, com inteira clareza, a Cáritas, em
vez de estar obcecado com o jornal do dia seguinte. O maior risco da
nossa democracia é que quem devia falar está calado, e que quem fala
devia estar calado.
* Você escreve: "Só os economistas-políticos, neoliberais ou marxistas, é aqui o mesmo, é que pensam existir uma correlação simples entre medidas económicas e efeitos sociais e menosprezam a mediação do político orgânico, ou as turbulências inorgânicas dos de baixo. Os economistas-políticos, repito de novo, sejam neoliberais ou marxistas, estão por isso sempre a ter "surpresas"." (url)
© José Pacheco Pereira
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