ABRUPTO

15.2.13




DOIS PAPAS E A “LEI DA VIDA” 


Cada Papa é um Papa e se há lugar onde a diferença individual, a personalidade, o carácter, as ideias, as agendas, a religiosidade, o pensamento sobre a Igreja, a sensibilidade, se revela bem é no papado. Vejam-se só alguns dos Papas do século XX e XXI: Pio XII, Paulo VI, João XXXIII, João Paulo II, e Bento XVI, para perceber que, mesmo pesando as circunstâncias de tempos muito diferentes, cada um trouxe uma marca de individualidade à Igreja Católica Apostólica Romana. É natural que assim seja porque o processo de selecção, se deixarmos de parte o papel difícil de identificar do Espírito Santo, é um dos mais complexos, rigorosos e competitivos do mundo. Só lá chega quem quer ou quem o colégio eleitoral dos cardeais quer, e tal parlamento junta um grupo de pessoas que já leu tudo, já viveu muito e, acima de tudo, já viu de tudo. 

 E, mesmo um agnóstico, desconfiado com a realpolitik vaticana, mediamente sabedor que entre si os bispos e os cardeais são capazes de se detestar com bastante vigor (veja-se o modo conflitual como correu o Concílio Vaticano II, com ataques, defesas, conspirações, sindicatos de voto, etc.), é capaz de admitir que a fé, um sentimento ao mesmo tempo simples e complicado, conta nestes momentos em que é suposto também falarem com Deus. 

Dito isto, voltemos ao modo como dois Papas que colaboraram intimamente e se conheciam muito bem entre si, defrontaram de forma diferente a “lei da vida”. Tenho para mim que a decrepitude e doença intencionalmente reveladas até ao fim por João Paulo II não é diferente na sua intenção e mensagem da abdicação por “falta de força vital” de Bento XVI, mas complementar. Cada um quis dizer uma coisa diferente, porque há na vida a necessidade de dizer e “testemunhar” coisas diferentes. Ambos escolheram aliás fazê-lo na modernidade, seja lá o que isso for. João Paulo II quis mostrar o sofrimento que a doença e a velhice trazem até à última gota, num mundo em que há cada vez mais velhos que com ele se podiam identificar na dor. Num mundo em que o culto da juventude é um elemento do hedonismo contemporâneo, João Paulo II falou da tragédia íntima dos velhos pelo seu próprio exemplo, e a propaganda pelo exemplo é a melhor propaganda como sabiam muito bem os anarquistas. 

Bento XVI fala noutra direcção, mas também com idêntica universalidade, valorizando a vitalidade e a capacidade intelectual que são necessárias para o exercício de uma função tão delicada e árdua como é o papado. Ele não se reformou porque chegou ao limite de idade, ele chegou a um limite de idade íntimo por julgamento próprio, e quis mostrar, também pelo exemplo, que não há drama nenhum para a Igreja em não ser Papa vitalício, se o detentor da Cadeira de Pedro, não se sentir capaz de a servir como certamente desejava. É um gesto que é também um sinal para a hierarquia da Igreja. Nós podemos entender prosaicamente o gesto de cada um, mas de certeza que, quer João Paulo II, quer Bento XVI não o entendem assim, mas trazem a essa decisão, que decisão própria se trata, o peso da sua religiosidade e da sua fé. Ambos fizeram, com as suas atitudes, bem à instituição à frente de que estão, até pela diferença e com a diferença.

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© José Pacheco Pereira
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