ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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23.2.13
O NÚMERO QUE ESTÁ TATUADO NOS BRAÇOS DOS PORTUGUESES:
O NÚMERO DO CONTRIBUINTE
Aqui há uns anos houve uma
discussão sobre o número único a propósito do cartão do cidadão. É uma
matéria pouco popular, tida como importando apenas aos intelectuais e
aos políticos, que as pessoas comuns vêem com muita indiferença. Se lhes
parece mais eficaz que cada um tenha um número único que sirva para o
identificar num bilhete de identidade, para reconhecer uma assinatura,
na Segurança Social, no fisco, numa ficha médica, num cartão de crédito
ou de débito, qual é o problema? Se isso lhe poupa tempo e papéis, qual é
a desvantagem? Se isso permitir perseguir um criminoso, que importa
existir uma base de dados com o ADN das pessoas? E se as tecnologias o
permitirem, como permitem, qual o mal em podermos vir a ter um chip como
os cães, ou uma etiqueta electrónica como as crianças à nascença, por
que razão é que nós não podemos ser numerados por um qualquer código de
barras tatuado no braço?
A maioria das pessoas é indiferente ao
abuso do Estado nestas matérias se daí vier uma aparente maior eficácia e
menor burocracia. E os proponentes destas medidas, uns tecnocratas,
outros fascinados pelos tecnocratas, outros ainda gente mais perigosa e
securitária cujo ideal de sociedade perfeita é o 1984 de Orwell,
todos manipulam a opinião contra os antiquados defensores dos "direitos
cívicos", que continuam a achar que não se deve ter número único, chip,
ou código de barras, em nome dessas coisas tão de "velhos do Restelo"
como sejam as liberdades e o direito do indivíduo em ter uma reserva da
sua vida íntima e privada, sem intromissão indevida do Estado onde ele
não deve estar.
Infelizmente, insisto, a indiferença cívica é o
pano de fundo de muitos abusos e a sociedade e o Estado que estamos a
construir são os ideais para uma sociedade totalitária. Se uma nova
polícia política aparecer - e para quem preza a liberdade esse risco
existe sempre -, não precisa de fazer nenhuma lei nova, basta usar os
recursos já disponíveis para obter toda a informação sobre um cidadão
que queira perseguir.
A promessa que nos é feita é de que os
dados "não são cruzados". Mas esta afirmação não só não é verdadeira
como não garante nada. Não impede um serviço de informações que queira
abusar, de obter cumplicidades e "cruzar" dados, não impede uma polícia
de fazer o mesmo (o episódio do acesso da PSP às filmagens não editadas
sem ordem judicial é um exemplo de práticas costumeiras que só são
escrutinadas depois de um acidente de percurso), não impede a utilização
de software mais sofisticado para fazer buscas na Internet,
muito para além da informação já vasta que se pode obter no Google. E se
somarmos as câmaras de vigilância e outros meios cada vez mais
generalizados de controlo dos cidadãos, mais nos preocupamos com as
liberdades no mundo orwelliano em que já vivemos.
E quanto ao
"cruzamento de dados" a partir de um número único com informação
indevida, tudo isso já existe e chama-se NIF, número de identificação
fiscal, ou mais prosaicamente, "número de contribuinte". De há dez anos
para cá, o Governo Sócrates e depois o Governo Passos Coelho
transformaram o fisco no mais parecido que existe com uma polícia
global, e uma polícia global é também política, e o número de
contribuinte no verdadeiro número único dos portugueses, cujo acesso
permite todos os cruzamentos de dados e uma violação sem limites da
privacidade de cada cidadão. Se somarmos a isso o facto de o fisco ser a
única área da lei em que a presunção da inocência não existe e o ónus
da prova cai no cidadão, temos um retrato de um Estado de excepção
dentro de um Estado que se pretende de direito.
E não preciso de
estar a recitar a litania do combate à evasão fiscal, porque este
caminho de abuso tem sido trilhado exactamente porque o combate à evasão
fiscal tem sido ineficaz onde deveria ser. O furor do Estado volta-se
contra as cabeleireiras, os mecânicos de automóveis e as tabernas, mas
ignora os esquecimentos de declaração de milhões de euros, que só são
declarados quando descobertos e não merecem uma palavra de condenação
nem do ministro das Finanças, nem do Banco de Portugal, nem de ninguém
dos indignados com a factura dos cafés. E é exactamente porque o combate
à evasão fiscal falha, ou porque a economia está morta, ou porque os Monte Brancos
são mais numerosos do que todas as montanhas dos Alpes, dos Andes, do
Himalaia, que se assiste a uma espécie de desespero fiscal que leva o
Estado (os governos) a entrar pela liberdade e individualidade dos
cidadãos comuns de forma abusiva e totalitária. Digo totalitária, mais
do que autoritária, porque a tentação utópica de "conhecer" e controlar a
sociedade e os indivíduos através da monotorização de todas as
transacções económicas é de facto resultado de mente como a do Big Brother.
Num
computador do fisco está toda a nossa vida já inventariada e cruzada
através do número de contribuinte e dos poderes discricionários da
Autoridade Tributária. Se de manhã ao pequeno-almoço não pedir factura
do café, pode vir um fiscal e multar-me (não pode porque é ilegal,
impossível de facto, e o Governo anda a mentir-nos a dizer que já o fez
quando se devem contar pelos dedos da mão as contra-ordenações
realizadas, se é que há alguma à data do anúncio), e para lavrar o
"auto" terá de dizer onde estou, o que consumi sem factura e informar o
Estado sobre se tomo chá, café ou chocolate, doces ou salgados, etc.
Depois passo por uma livraria e na factura estão os livros que comprei e
está o número de contribuinte. Hum! Este anda a ler livros subversivos,
ou quer saber coisas sobre a Tabela de Mendeleev (a química é sempre
perigosa), ou uma história sexualmente bizarra como a Lolita, (diga aí ao assessor do senhor ministro que um boato de pedofilia é sempre mortífero e o homem lê livros sobre isso), ou o Vox
do Nicholson Baker (uma história de sexo por telefone que o procurador
Starr queria usar como prova contra Clinton, pedindo à livraria que lhe
confirmasse a compra do livro por Monica Lewinsky, o que a livraria
recusou e bem). Depois foi almoçar, e pelo número de contribuinte
verifico que almoça muitas vezes a dois, e dois é um número suspeito.
Coloque lá no mapa o sítio do pequeno-almoço, mais a livraria, mais o
restaurante, e as horas. E depois? A Via Verde cujo recibo tem o número
de contribuinte mostra que entrou na portagem X e saiu na portagem Y.
Interessante, o que é que ele foi fazer ao Entroncamento? E levantou
dinheiro no Multibanco. Muito ou pouco? Bastante. Veja lá as facturas
que ele pagou no Entroncamento. Aqui está, comprou uma mala de viagem.
Então a factura? Não há, comprou nuns chineses, mas foi visto com a mala
na câmara de vigilância de um banco. Anote aí para mandar uma inspecção
do fisco e da ASAE aos chineses, imagine o que seria se nós não
tivéssemos as imagens do banco! O que é que ele vai fazer com a mala? E
por aí adiante.
A nossa indiferença colectiva face ao continuo
abuso do Estado, que nada melhor nos dias de hoje revela do que o fisco,
vai acabar por se pagar caro. Muitos tentaram fugir ao fisco? É
verdade, muitos inclusive nunca pagaram impostos e vivem numa economia
paralela, mas a sanha contra eles, que face ao fisco não tem direitos,
nem defesa, nem advogados, contrasta com a complacência afrontosa com a
fraude fiscal com os poderosos. É que também nisso, na perseguição aos
pequenos, se revela o mundo totalitário de 1984 e do Triunfo dos Porcos,
em que alguns são mais iguais do que outros. E pelo caminho, para
garantir que os pequenos sejam apanhados na malha, pelo desespero de um
fisco que quer sugar uma economia morta de recursos que ela não tem, é
que se usa o número de contribuinte como número único, cruzado nos
computadores das finanças, muito para além do que é necessário e
equilibrado, numa ameaça às liberdades de cada português.
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© José Pacheco Pereira
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