ABRUPTO

2.2.13


FUTEBOL POLÍTICO

Vivemos nos últimos dias um momento de apogeu de uma arte muito portuguesa, cujo exercício se tem aprimorado nos tempos mais recentes: o futebol político. Nesta semana, o Governo meteu um clamoroso golo nas balizas da oposição com o "regresso aos mercados". Nas semanas anteriores, a oposição meteu outros tantos golos, quanto lhes permitiram a gloriosa táctica das regras de Chatham House em conferências de propaganda pagas por nós, ou o relatório "muito bem feito" do FMI, e outras confusões avulsas. Portas parece que meteu um golo a Relvas na RTP e Relvas para se vingar atirou seiscentas bolas contra os trabalhadores da RTP. Gaspar também já tinha metido um golo a Portas, pelo que este registou num caderninho mental a necessidade de ajustar as contas numa próxima ocasião. Passos Coelho, esse, vê a bola passar. E por aí adiante.

Vários locais são o território ideal para este futebol político: o Parlamento, os blogues e os jornais, No Parlamento, o dualismo Governo/partidos de Governo versus partidos da oposição domina todo o debate. Ele é pela sua natureza posicional em vez de ser racional, depende não do que se pensa, mas do lugar onde se está. Defende-se com unhas, dentes e palavras os "nossos", e atacam-se os "outros". Alguns deputados mais truculentos fizeram e fazem a sua carreira dessa aptidão especial de fidelidade canina ao seu lado, sem memória, sem razão e quase sempre sem vergonha. Os regionalistas tornam-se centralistas, os nortistas descobrem-se sulistas, os liberais em defensores acesos de um Estado burocrático e colectivista, os do "partido dos contribuintes" passam a adeptos do partido dos impostos, os da lavoura passam para a indústria, o que servia há um ano já não serve um ano depois. Não são argumentos que se contrapõem mas factos-assassinos: o facto A destinado a esmagar o facto B, as "trapalhadas" actuais de Passos defrontam a "bancarrota" de há um ano de Sócrates, e vice-versa. 
 

Cada um diz ao outro: também tu já fizeste isto, pelo que não tens o direito a falar. Pouco importa o tempo, ou as circunstâncias: o debate parlamentar é a-histórico pela sua natureza, é uma retórica dualista e grosseira, confrontacional, sem contexto, nem pano de fundo. Na verdade, tudo o que se diz em resposta podia ser dito sem se ouvir a pergunta. O deputado A pode falar em urdu, porque o deputado B que lhe responde fala em gaélico e pouco importa que as línguas não comuniquem entre si, porque cada um está a falar para a sua claque, que só se reconhece na língua do seu clube, na cor da sua camisola, no hastear da sua bandeira. Ou então está a falar para o seu chefe, ou a sua secção ou a sua federação, para que mais tarde venha a ser recompensado com a manutenção na lista de deputados, o objectivo corrente da maioria dos deputados: ficar onde se está.

O Parlamento está cada vez mais parecido com os blogues e vice-versa. Não é de estranhar porque cada vez comunicam mais no estilo, nos temas, na maneira clubística de ter lado, bandeira, camisola, e, mesmo nas últimas eleições, na proveniência e autoria. A política na Internet, blogues, redes sociais, Facebook e twitter em particular, tem todos os elementos desse simplismo reducionista essencial que serve às mil maravilhas como extenso campo ao futebol político. O modo tribal como os blogues funcionam, o ideal que é poder comunicar sem ter nada para dizer em 140 caracteres, com a sua especial adaptação à má-língua e intriga, a confraternização adolescente e o intimismo artificial das páginas de Facebook, tudo isto atrai as almas simples do futebol político. Cada vez mais as "jotas" se formam ali, deixando para trás estudos sérios e livros, tudo coisas muito intelectuais, complicadas, inúteis, talvez piegas.
 

Os blogues da situação que antes eram da oposição, desfalcados dos muitos assessores que deram ao actual poder, animam-se de repente quando há um golo do Governo. Esta semana ressuscitaram dos quase mortos muitos dos seus autores, que voltaram eufóricos à escrita. Pelo contrário, o ar enfiado dos blogues da oposição contrasta com semanas e semanas de euforia com as asneiras da equipa do Governo. A vida nem sempre é fácil, e com Seguro é ainda mais difícil. Estas formas pouco subtis de felicidade grupal animam a auto-estima das claques que nas páginas de comentários se insultam umas às outras. É um mundo mentalmente pobre, mas muito animado.


A comunicação social funciona em contínuo com este futebol político, parlamentar, partidário e da rede, sendo aliás não só parte do jogo, como o terreno ideal do jogo. A maneira como os jogadores Cavaco, Seguro, Passos, Relvas, Portas e Gaspar estão sempre a ser descritos como se "arrasando" uns aos outros, ganhando ou perdendo, tendo as setas para baixo ou para cima nas secções de rating dos jornais, não é mais do que a tradução desta visão lúdica da política. Os títulos seguem a mesma linha de simplicidade espectacular. De facto não é xadrez, é futebol.

 
O que se passa com esta descrição da política como um jogo de futebol é que impregna o espaço público de "explicações" simples, fáceis e reducionistas, que não explicam nada e pelo contrário têm o efeito de ocultar tudo o que é importante e valorizar tudo o que é irrelevante. Se associarmos a esta mecânica a incapacidade de manter o foco da atenção no que é importante, em detrimento do que lhes parece ser "novidade", mesmo que trivial, o resultado é um permanente discurso errático, sem memória, poder analítico, saber, ou seja, sem informação. O que é que sabemos sobre as privatizações, as negociações (ou a ausência delas) na Europa ou com a troika, que acordos e compromissos existem com a banca, que fazem de facto Relvas em Angola e no Brasil, Passos Coelho em S. Bento, Portas no CDS, e Gaspar na burocracia financeira do BCE e do FMI? De tudo o que é importante sabemos muito pouco, a não ser as fugas de informação orientadas, de Marques Mendes à primeira página do Expresso. Se há paciente que sofre de distúrbio de Défice de Atenção com Hiperactividade é a comunicação social, com as honrosas excepções que brilham no escuro.


Há um pequeno problema no futebol político: se olhassem para as bancadas apercebiam-se de duas coisas. Uma, a de que ninguém os está a ver; a outra, de quem os está a ver prepara-se para saltar para o campo e linchar as equipas. Isto assim não vai longe.

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© José Pacheco Pereira
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