ABRUPTO

30.9.12


POR QUE É QUE JÁ NÃO POSSO OUVIR DIZER QUE "NÃO HÁ ALTERNATIVAS"?


Há exactamente um ano, escrevi um artigo sobre as alternativas, aqui publicado em 15 de Outubro de 2011. Estava a falar, na altura, nas alternativas ao cumprimento do memorando da troika, que sempre afirmei existirem mas serem piores. Referia-me essencialmente a "prender os políticos, não pagar aos bancos, confiscar o dinheiro aos ricos e "renegociar a dívida"", propostas pela extrema-direita, pelo BE e pelo PCP, mas, como também chamei a atenção, com muito mais apoio popular do que parecia no discurso "publicado". Hoje, como dantes, continuo a pensar que estas alternativas - que não adianta tratar por outro nome, porque de facto são alternativas - conduziriam a muita miséria. E são piores porque se isso por si só não as distinguiria muito da miséria actual, implicariam a construção de um Estado autoritário, mesmo totalitário. Esse Estado, assente num populismo qualquer, à direita ou à esquerda, em nome de "os ricos que paguem a crise" ou do "combate aos ladrões dos políticos", acabaria por ter uma prática persecutória inaceitável para a liberdade.

A minha principal objecção a estas alternativas não estava na miséria que provocariam, mas no facto de conduzirem a uma violência política contra as liberdades. Não importa que essa violência seja conduzida por uma polícia fiscal ou uma ASAE musculada em nome do combate à "evasão fiscal dos ricos", por uns "comités de vingadores" quaisquer, ou pela multidão na rua. Da república de Weimar, passando pela Argentina peronista, à Venezuela chavista, não faltam exemplos. Continuo a considerar inaceitáveis essas alternativas, em nome da liberdade, mas temo que o discurso actual de que "não há alternativas" seja a principal força que as alimenta. Porque já toda a gente compreendeu que a política concreta deste Governo não é alternativa ao caos, à desordem e à miséria e, acima de tudo, vai falhar o cumprimento do memorando da troika, única fonte de legitimidade a que se tem agarrado no último ano.

Peço desculpa de me citar, mas as palavras com data têm a vantagem de mostrar como era possível prever o caminho deste último ano, sem surpresas de maior, e que quem falhou não o fez por falta de críticas a seu tempo, mas porque tinha um enorme rei na barriga e um pequeno pássaro na cabeça a pensar com 140 caracteres. Em Outubro de 2011 escrevi:
"O martelo-pilão abateu-se outra vez sobre os portugueses sob a forma habitual, impostos, aumentos de preços e reduções de salários. De cada vez que se espera que seja a última, há sempre mais uma. Por isso, a coisa mais fácil de vaticinar é que esta não será a última, e se calhar nem será a mais gravosa. (...) Está-se a caminhar para um ciclo de muito difícil saída. O que de mais gravoso o primeiro-ministro escondeu (...) é que uma parte do descalabro orçamental deste ano e do previsível para o ano já não vem dos "buracos", mas da quebra de receitas do Estado, que torna o aumento dos impostos em grande parte ineficaz. Ou seja, estamos a entrar num círculo vicioso que se pode aguentar um ano ou dois e, em seguida, ficamos "gregos"."

E também escrevi sobre os meus receios sobre a capacidade do governo, esperando, ainda assim, que pelo menos cumprisse aquilo que veio mais tarde a definir como obrigatório atingir "custe o que custar":
"(...) poderíamos desejar um outro Governo mais capaz e imaginativo, poderíamos desejar acima de tudo um Governo mais experiente e melhor conhecedor da realidade nacional, que se tivesse preparado estudando o nosso país e não atirando soluções de catálogo para agradar aos blogues liberais, que não precisasse de estar a aprender ao mesmo tempo que, em absoluto estado de necessidade, precisa do martelo-pilão em vez de um martelo mais afinado, poderíamos desejar tudo diferente, mas é este que temos e se, no final, chegar a 2012 e 2013 cumprindo os objectivos do défice, fará bem."
Não cumpriu e não o fez exactamente porque as minhas suspeitas sobre a sua incompetência e as suas ideias simples e perigosas sobre o país puderam "governar" sem efectiva contestação durante um ano, "porque não havia alternativas". O resultado seria, escrevi-o também há um ano, quando ia alto o consenso à volta da "coragem" do Governo e dos méritos de Passos Coelho, Relvas e Gaspar:
"Os propagandistas podiam poupar-nos as ilusões e a demagogia ideológica: daqui não resultará qualquer Estado mais virtuoso na sua magreza, nem nenhum país mais competitivo, nem um Portugal melhor. Sairá um país mais pobre, exausto, mais dependente, menos culto, menos qualificado, com maiores diferenças sociais, mais zangado e mais violento, e, muito provavelmente, com menos liberdades. E quase de certeza sairá com um Estado mais poderoso (...) e uma sociedade civil mais fraca."
Hoje, o discurso de que "não há alternativas" é o argumento ad terrorem do Governo e do poder. É falso, propagandístico e o seu principal efeito é cobrir tudo o que tenha origem no Governo como sendo inevitável e infalível. Serviu para justificar a meia hora de trabalho suplementar, o IVA da restauração, o aumento exponencial do desemprego, a destruição experimental de parte das nossas pequenas empresas, vistas com desprezo pelos admiradores serôdios das dot.coms e dos gadgets, alimentou o exercício do poder político forte para os fracos e débil para os fortes. Serviria para justificar a TSU se as coisas não tivessem corrido tão mal. E tornou-nos num país que exporta ouro derretido das poupanças familiares, medicamentos que faltam no mercado nacional e que vão para Angola e automóveis devolvidos porque não se conseguem vender. O negócio do ouro, excelentemente personificado num anúncio televisivo de António Sala, marca os tempos actuais como a valise en carton da emigração ou os contentores dos retornados. E tornamo-nos num país que não cumpre... o memorando da troika.

De há um ano para cá, muita coisa mudou no próprio terreno do memorando da troika, nos seus co-signatários credores, na percepção do carácter perverso da "fadiga da austeridade", abrindo novas alternativas que o parceiro português recusou in limine. Mudou o contexto europeu e mudou favoravelmente, mas o Governo português nunca usou a sua boa imagem junto da troika e da Alemanha para obter uma racionalização do programa da troika, sem ser em desespero de causa e em posição de fraqueza pelo incumprimento, porque não quis. A margem de manobra não era muita, mas existia, só que o Governo quis usar o memorando para prosseguir uma agenda ideológica própria e, para isso, era útil ter um pretexto externo.

Fez orelhas moucas a qualquer proposta de alternativa, incluindo as que vinham de sectores que lhe eram próximos, como as prevenções de Manuela Ferreira Leite e do Presidente da República, em privado e em público, nem ouviu a proposta de Miguel Cadilhe sobre uma espécie de imposto de guerra excepcional e duro, que havia condições para aplicar em 2011 e já não há hoje. O mérito dessa proposta, melhorada e modificada, seria traduzir a gravidade da situação num momento excepcional, muito duro que fosse, mas único e limitado no tempo, beneficiando do consenso sobre a necessidade de austeridade que existia em 2011, e o facto de se aplicar a todo o património e não apenas aos salários. Podia atingir progressivamente todos os rendimentos e patrimónios, mesmo os mais baixos, numa altura em que o empobrecimento ainda não tinha feito os estragos que já hoje existem e ainda havia alguma folga. O facto de ser excepcional tinha a vantagem de favorecer a aceitação da sua dureza, porque as pessoas sabiam da gravidade da situação do país e estavam dispostas a fazer sacrifícios. E era uma medida "política" porque manipulava um tempo excepcional como sendo excepcional e não destruía as expectativas de futuro, como o fazem os sucessivos pacotes de medidas de austeridade, sempre insuficientes. Não era a panaceia para as mudanças estruturais necessárias, mas permitia que se fizessem depois com mais folga. Mas o Governo não quis porque o seu caminho era levar a uma brutal queda de salários, e a uma inversão das relações de força sociais, com carácter permanente.

Dou este exemplo, entre muitos, porque havia e há alternativas mesmo na prossecução do memorando da troika para quem não aceita a chantagem de que o país se divide entre quem não quer a austeridade e quem é "bom aluno" e paga as dívidas. Este preto e branco é outra versão do "não há alternativas". De facto, não há alternativas a passarmos sem austeridade, concordo, mas há alternativas a todas as políticas concretas do Governo e elas têm sido apresentadas.

Uma mentira comum da propaganda é estar sempre a dizer que "ninguém apresenta alternativas", o que não é verdade. Mas o Governo não quer ouvir, e onde hoje toca estraga tudo e acabará por ser derrubado ou por cima, porque os poderosos que sempre o apoiaram o vêem hoje como um empecilho e um risco, ou por baixo, pela multidão. Em ambos os casos é um caminho muito perigoso, até porque começa a perceber-se que é um caminho sem alternativas...

(Versão do Público de 29 de Setembro de 2012.)

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ESPÍRITO DO TEMPO:  HOJE

Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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EARLY MORNING BLOGS   

2259

The obligation of subjects to the sovereign is understood to last as long, and no longer, than the power lasteth by which he is able to protect them. 

(Thomas Hobbes)

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29.9.12

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ÍNDICE DO SITUACIONISMO: "RECADOS" ANÓNIMOS

A questão do situacionismo não é de conspiração, é de respiração.
E, nalguns casos, de respiração assistida.
Há vários problemas no nosso jornalismo político que são endémicos e contribuem para a sua má qualidade, entre eles a fusão de "recados" com fontes anónimas.  Os "recados"  são uma pura manipulação da opinião pública, transmitindo um discurso sem edição, que diz o que quer, que antecipa o que quer e que não precisa de ser confrontado com a realidade, nem com o contraditório. É um tipo de discurso político  "limpo", sem mediação jornalística, que agrada aos políticos e manipula o jornalismo e a opinião. 
O Expresso publica um por semana, tendo como origem o governo, e os gabinetes do Primeiro-ministro e do ministro Relvas, mais a sua multidão de assessores. Têm para quem os emite a vantagem de fornecer uma versão das coisas que é favorável ao poder, que ocupa normalmente uma primeira página e o seu título principal de forma vantajosa. Evita outra primeira página eventualmente mais hostil e pretende condicionar a opinião, fazer uma ameaça velada, ou testar a reacção a uma determinada medida. Muitas vezes pouco mais é do que a descrição de um "estado de alma" qualquer do primeiro-ministro (PM), destinado a sugerir que ele "sente" as mesmas indignações que o "povo", mesmo que não faça nada em consequência.
Os "recados" de hoje são mais do que isso:


"É preciso dar uma pedrada no charco e neste momento ele está claramente a pensar nisso e tem tudo em aberto: pode ser antes, durante ou após a apresentação do OE em 15 de Outubro" ("fonte próxima do PM").


"Se o PM recuou na TSU, também tem a agilidade , sem tabus, de rever o que está mal no governo." ("fonte oficial") .

Não tenho dúvidas sobre a fonte, foi o PM, ou alguém por "ele", como é identificado, que disse isto ao Expresso, usando o anonimato para exprimir não apenas opiniões, mas pressupostas intenções pessoais do PM. Num país em que houvesse um mínimo de vergonha, o Ministro da Economia apresentava a demissão de imediato, e se o ministro Relvas não estivesse envolvido na combinação, faria o mesmo. Para contentar a opinião pública, o PM ataca o seu próprio governo, debaixo da cobertura do anonimato, para transmitir uma "imagem" de determinação e firmeza em dia de manifestações. Não há uma linha destes "recados", que atravessam toda a "notícia", que não seja pura manipulação. No fundo é mais um sinal alarmante do grau de decomposição e desorientação do governo e do PM.

 

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ACORDO ORTOGRÁFICO 

Estamos para com o Acordo Ortográfico, uma aberração sem sentido que não merece sequer que se lhe discuta qualquer mérito, como se esteve para com o disparo do défice e da despesa pública: deixa-se andar e depois vê-se no que dá. Já sabemos o que deram o défice e a dívida. A única força que sustenta o Acordo é a mesma que condenou o país a esta crise profunda: inércia. Está na altura de lhe bater o pé com força, e a causa contra o Acordo até na rua terá sucesso. Bem que o Acordo podia ir junto com a TSU fazer companhia à meia hora de trabalho suplementar.

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EARLY MORNING BLOGS   

2258

Eben weil die Dinge sind, wie sie sind, werden sie nicht so bleiben, wie sie sind.

Só porque as coisas estão como estão, é que elas não vão continuar como estão.

(Bertold Brecht)

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COISAS DA SÁBADO: 
QUANTOS SURTOS DE NOVAS MEDIDAS DE AUSTERIDADE AINDA FALTAM ATÉ 2014? 


Se não me fizerem o favor de me explicar mesmo muito simples, para burros, eu faço umas contas a olho e pelo menos mais quatro surtos, ou “pacotes”, como agora se diz, ainda estão para vir. Um para corrigir o défice deste ano, já se espera, já foi anunciado, embora não se saiba muito bem o que será. Outro, para passarmos de 5%, na verdade mais de 6%, para 4,5% em 2013, que acabarão por ser mais por novo incumprimento consentido. O próximo ano é eleitoral e nem os anjinhos do céu acreditam no “que se lixem as eleições”, pelo que muitas medidas irão ser adiadas, outras terão mesmo que ir avante, troika oblige. Sabemos que parte desse “pacote” virá do aumento de impostos que “substituirá” a TSU, mas toda a gente sabe que não chega. Os efeitos de depressão da economia, de quebra de poder de compra e do aumento do desemprego em 2013, tornarão as dificuldades de receitas de 2012, numa recordação feliz para as finanças. E depois, o cataclismo final, a passagem de 4,5 para 2,5% em 2014, milagre que também espero que me seja explicado como vai ser conseguido em palavrinhas muito simples. 

Registe-se que a chegada de um novo “pacote” se sobrepõe ao anterior, e ainda há o problema de muitas destas medidas serem apresentadas como “temporárias”, uma das maiores mentiras em curso. Se acaso o fossem, então é que no actual curso das coisas, o governo fugirá pela primeira porta que se abrir para ir estudar filosofia em Paris, e, quem cá ficar, fecha a luz. Ou seja, sai do euro, manda a troika passear, come a casca das árvores e vai atrás de quem exija prender todos os políticos. É por isto que tenho muita dificuldade em perceber como é que o governo vai fazer para impedir o país de explodir, se imaginarmos que Passos Coelho terá que vir à televisão, mais três ou quatro vezes, entre confundido, compungido e “bom aluno”, fazer o mesmo papel que fez há quinze dias. Até sempre. Não dá.

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28.9.12


COISAS DA SÁBADO: EXPLIQUEM-ME POR FAVOR 


 De novo, as coisas não batem certo. Eu precisava que alguém as explicasse muito devagarinho e muito simples, como se eu fosse burro, mesmo muito burro. No dia fatídico do anúncio da TSU, Passos Coelho apresentou a medida como sendo uma esperançosa solução para combater o desemprego. Já ninguém se lembra, mas foi assim. Ou seja, o aumento da TSU não se destinava a combater o défice, mas a permitir às empresas financiarem-se, perante a míngua do crédito, com o retorno da TSU paga pelos trabalhadores. 

Havia uma referência muito confusa à decisão do Tribunal Constitucional, mas a confusão é uma regra das declarações do Primeiro-ministro, porque não se percebe o que é que uma coisa tinha a ver com a outra, dado que apenas cerca de 500 milhões ficariam nos cofres públicos para ajudar ao défice. Por isso, a correlação da decisão da TSU com o défice e o Tribunal Constitucional destinava-se apenas a fazer passar a medida por aquilo que ela não era. Na verdade, a TSU destinava-se a fazer baixar os salários, como pretendia uma parte da troika e António Borges, o que o governo tinha recusado liminarmente. Passos Coelho acabou por o admitir na entrevista, segundo momento fatídico.

Tanto era assim que Vítor Gaspar no anúncio seguinte, o terceiro momento fatídico, e que durou duas horas, veio prevenir que para cobrir o défice deste ano e do próximo iria haver mais medidas de austeridade. De novo, no meio de mais uma linguagem confusa e entaramelada, Passos Coelho admitiu-o na entrevista, perante a perplexidade do entrevistador da RTP da área económica que bem lhe perguntava pela incongruência daquilo tudo e ele não respondia. De novo, o pobre Tribunal Constitucional veio à baila, mesmo quando nada tem a ver com o disparo do défice de 2012, ano em que a sua decisão não está em vigor. 

Por tudo isto, mesmo sendo muito burro, percebo que o aumento da TSU tinha pouco a ver com o controlo do défice de 2012, ou de 2013, e por isso não podia ser associada causalmente nem à crise financeira, nem ao Tribunal, a não ser por um curandeiro holístico que nos dirá que tudo tem a ver com tudo. E sendo assim, por que razão as medidas de novos impostos são anunciadas como destinadas a “substituir” a TSU? Alguém anda a enganar-nos, mesmo aos mais burros dos burros.

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EARLY MORNING BLOGS   

2257

Denuo fortasse lutescat

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24.9.12


EARLY MORNING BLOGS   

2256
 
"In a hierarchy every employee tends to rise to his level of incompetence. Members are promoted so long as they work competently. Sooner or later they are promoted to a position at which they are no longer competent, and there they remain. In time, every post tends to be occupied by an employee who is incompetent to carry out his duties. Work is accomplished by those employees who have not yet reached their level of incompetence."

(Lawrence J. Peter / Raymond Hull,  The Peter Principle)

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23.9.12


QUANDO OS DE BAIXO JÁ NÃO QUEREM E OS DE CIMA JÁ NÃO PODEM


Lenine, que era particularmente sensível à realidade do poder político, como tinham sido Maquiavel e Hobbes, escreveu que "a morte de uma organização acontece quando os de baixo já não querem e os de cima já não podem." A frase é muitas vezes usada para caracterizar uma "situação revolucionária", e tornou-se um truísmo que serve para tudo, até para Aguiar-Branco uma vez no Parlamento embasbacar os jornalistas com um discurso em que citou Lenine, Rosa Luxemburgo e Sérgio Godinho. Quase todas as citações eram abusivas, fora do contexto ou erradas - por exemplo, Rosa Luxemburgo era citada como tendo dito uma frase anos depois da data em que tinha morrido -, mas o efeito de embasbacamento verificou-se. No Parlamento os velhos esquerdistas, como eu, Rosas e Louçã, estávamos divertidos com aquilo tudo, mas que Aguiar-Branco citou Lenine para épater les journalistes, lá isso citou. Devia agora voltar à frase que citou e lê-la em Conselho de Ministros, para ilustração de Passos Coelho e dos seus colegas de governação, porque talvez assim o que essa frase diz sobre o poder político e o seu ocaso ganhe uma dimensão mais concreta.

Uma das vantagens desta frase é que ela é antitecnocrática pela sua natureza, remete para factores subjectivos que costumam ser completamente ignorados por aqueles para quem a realidade é apenas feita de coisas materiais e objectivas, em particular números, estatísticas, projecções, modelos, cuja eficácia fica garantida enquanto apenas se tratar de exercícios abstractos. Ao confundirem modelos com a realidade, eles fazem má economia e péssima política. Dir-me-ão que os melhores modelos incorporam exactamente variáveis "subjectivas", e nenhum economista ignora o papel das expectativas e o natural "ruído" do mundo, que também pode ser expresso em números, só que com equações um pouco mais complicadas e modelos mais complexos.

Porém, o forte traço tecnocrático que atravessa algumas personagens deste Governo não é o problema de fundo que emerge nos nossos dias. Não ignoro que a consciência de que muitos erros foram cometidos no âmbito da decisão política, que originaram desperdícios e "regabofe", iriam gerar o movimento contrário: chamai os técnicos, correi com os políticos. Não é nada de novo, já aconteceu muitas vezes, na I República, no início do Estado Novo, no período pós-25 de Abril. Mas seria errado considerar que o que se passa se deve apenas a um conflito entre "pessoas" e "números", a vida e os modelos, a ignorância dos factores subjectivos em detrimento da crença de que os factores objectivos são tão "incontornáveis" como o diamante é duro. Os partidários desta escola costumam lembrar-nos que os factos são duros e não adianta ignorá-los que eles batem-nos sempre à porta, com tanta maior surpresa quanto os pretendemos ignorar com lirismo verbal e florinhas cor-de-rosa sobre "primeiro as pessoas". Têm razão. Os factos batem sempre à porta de quem os ignora, e foi isso que aconteceu na última semana, mas os responsáveis são os políticos e não os tecnocratas se os deixam à solta.

Que "os de baixo já não querem" é uma evidência, mas quem criou esta situação não foram os números de Gaspar, mas a política de Passos Coelho, o continuado e sistemático desprezo pela realidade a favor de meia dúzia de ideias simples e erradas que cobrem os exercícios de Excel dos tecnocratas por um programa em que as "empresas" são boas e os trabalhadores são maus, os diligentes empreendedores querem "democracia económica" sem direitos e os "piegas" querem manter prebendas a que chamam direitos. Desde o primeiro dia até à Nini cantada, Passos Coelho deu lições de moral que eram a preto, o que as de Louçã eram a branco. Só que Passos manda e Louçã não. E a mistura de ignorância, ideias feitas, incompetência e completa falta de sentido de justiça, e de empatia pela dor alheia, veio desaguar na TSU, como se fosse uma colectiva bofetada na esmagadora maioria dos portugueses. E eles são cristãos, mas não gostam. E estão agora a retribuir.

Olhando do Governo e do poder político para "baixo", o que é que desapareceu? Margem de manobra, a fabulosa e raríssima margem de manobra que este Governo teve em 2011 e 2012, e que se traduzia na existência de um forte consenso de que era necessário haver sacrifícios. Não se pode menosprezar este facto: numa democracia, praticamente todos estavam dispostos a perderem parte do seu rendimento e regalias, para "ajudar" o país a resolver a crise que provocara a intervenção externa. Nem todos concordavam com as medidas, nem todos as achavam justas, nem todos entendiam que estavam a ser tratados com equidade, mas todos sabiam que tinha que haver austeridade. Foi isto que o Governo desbaratou, e nunca mais vai recuperar. E desbaratou-o porque confundiu perda de rendimentos com perda de direitos, perda de regalias, com aumento de desigualdade, e porque praticou um acto de completa injustiça, que virou todos os factores subjectivos contra ele, com a proposta da TSU.

E por que é que isso é dramático? Porque o Governo está longe de conseguir gerir a situação económica e financeira, quer pela sua dificuldade, quer pelos erros que cometeu. Como é que neste ambiente e contexto o Governo pode esperar exigir pelo menos mais três novas vagas de austeridade, sobre as já existentes, entre hoje e 2014? É que o Governo sabe bem de mais que vai ser preciso tomar novas medidas para garantir os 5% do défice este ano (apesar de o Tribunal lhe ter consentido o duplo corte em 2012), a passagem de 5, se os conseguir, para os 4,5% do próximo ano, aí já tendo que resolver o problema da inconstitucionalidade do duplo corte, e, por fim, que ferro e fogo de austeridade nos vão fazer passar em 2014 de 4,5 para 2,5%, um objectivo absurdo de tão zeloso que é. E isto sem contar com a TSU, que tem pouco impacto no défice.

Não vão conseguir, porque aí Portugal será mesmo a Grécia, sem disfarces. O problema é que de há uma semana para cá, já o sabem, que "os de cima já não podem". Talvez seja por isso que, cheio de patriotismo, Paulo Portas quis abandonar o barco e Passos Coelho, sozinho, teria posto a hipótese de se demitir. Que acabou a margem de manobra, sabe-o Passos Coelho, sabe-o Portas, que deve estar tão furioso com a forma pueril como isto aconteceu, sabe-o Ricardo Salgado, que esse sabe tudo, sabe Cavaco Silva, sabe-o Seguro, com pasmo e terror, e até Borges começa a perceber que afinal "o ajustamento não vai correr tão depressa" como desejava. Sabem os blogues ligados ao poder, que forneceram a Passos Coelho um ersatz simplista de vulgata liberal e receberam em troca lugares de assessoria, onde, ou se rabia em desespero, ou se foge por todas as cordas possíveis. Daqui a uns dias, vão almoçar ou jantar com Seguro num evento directo nas redes sociais, para descobrir que "afinal não é tão mau como parecia". É um espectáculo triste, mas já vi vários e o padrão é sempre o mesmo.

Como é que se vai sair disto? Não vai. Vai haver primeiro um ainda maior apodrecimento da situação, semelhante ao modelo de resposta à crise Relvas, ceder na TSU, fazer de conta que não aconteceu nada, incensar a manifestação para a tornar inócua e, mais tarde do que cedo, remodelar. Só que os quadros de Excel de Gaspar vão continuar a piorar e virão próximos pacotes de austeridade em clima de desespero. E aí a crise vai atingir o âmago da democracia, onde aliás já está.

(Versão do Público de 22 de Setembro de 2012.)

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COISAS DA SÁBADO:  É UM FILME IMBECIL E PERIGOSO, MAS CENSURÁ-LO AINDA É MAIS PERIGOSO 

O filme que provocou a ira dos radicais muçulmanos é um filme paupérrimo, ignorante, imbecil e provocatório. A única coisa em que é eficaz é na provocação, mas a liberdade tem que cobrir as provocações, as coisas que detestamos, recusamos, nos metem nojo e aversão, porque se não é assim não é liberdade. 

E convém não inverter a questão. O mal da reacção ao filme é que é o problema, não é o filme. Se a “rua” islâmica, tão louvada na Primavera, se revela intolerante e fanática no Inverno, o problema é com a “rua”. Coisas deste tipo feitas contra os cristãos, blasfemas e provocatórias, sem qualquer qualidade, são do dia-a-dia no mundo cristão. Sempre que há a tentação de proibi-las, - e há muitas vezes essa tentação -, levanta-se um clamor pela liberdade e contra a censura e isso mostra a saúde das sociedades democráticas. Só faltava agora que se começasse a interiorizar por medo, uma nova censura face ao radicalismo islâmico. Temo que esse caminho esteja já a ser seguido.

*

Fico decepcionada com a sua perspectiva sobre esta questão.

Eu estou convencida que faz parte da consciência e cidadania não gozar com as crenças religiosas de cada um, ainda que,  este escárnio tenha sido feito como uma forma de provocar o fanatismo islâmico e expor o seu lado mais negativo. Talvez o autor, um judeu ao que parece, tenha tido aliás outros objectivos para além de afirmar o seu direito à livre expressão.

Gostava de ver o que aconteceria se algum islamita tivesse feito um filme semelhante utilizando figuras que os cristão reverenciam (afinal também existe um fanatismo cristão actual que remonta a séculos de crimes sinistros). 

Responder ao fanatismo desta forma coloca-nos simplesmente ao mesmo nível de "barbárie". Digo isto não judicativamente, por achar que se trata de questão cultural, que persiste numa civilização que não passou, como o Ocidente, por um Renascimento.

De qualquer modo creio que o fanatismo, que em grande parte pressupõe uma grande tensão interior dos sujeitos, não vai desaparecer administrando mais doses de acirração (que se traduzem, é bom não esquecer, em mais mortes e destruição).


(Gisela Moniz)
Pois eu concordo inteiramente com o seu (JPP) texto.

Qualquer que seja o propósito do filme, ele é apenas isso, um filme. E por causa desse filme foi gente assassinada. Chegado aqui temos no ocidente os habituais "sim, mas":
"Claro que sou contra os atentados ao World Trade Center, mas... há que entender tendo em conta as relações americanas com Israel",
"claro que sou contra a fatwa a Salman Rushdie, mas... a culpa é dele que devia saber no que se metia ao escrever o que escreveu",
"claro que sou contra o assassinato de Theo Van Gogh, mas... tal como Rushdie, ele devia ter tido o bom-senso necessário para não fazer o filme que fez",
"claro que sou contra os ataques a embaixadas dinamarquesas por causa de uma caricatura, mas... temos que compreender que não existe uma cultura universal, pelo que seria arrogância pressupor que o mundo inteiro se rege pelos mesmos valores do ocidente",
etc, etc, etc.

Tudo isto tresanda. Vivemos na ilusão de estarmos numa sociedade em que a liberdade de expressão existe, e em que a blasfémia (crime sem vítima) é condenada. Vivemos uma farsa. A farsa de que a submissão e aceitação do inaceitável é decisão nossa, de acordo com os nossos valores. Na realidade, iludimo-nos. Quando se vive com medo de abrir a boca, quando procuramos auto-justificar o silêncio resultante do medo como sendo "bom-senso", "compreensão", "multiculturalismo", "civilidade", etc., significa que não estamos a escolher nada, a escolha foi feita por nós. Limitamo-nos, por auto-estima, a fingir que sim.

Com isto, arriscamo-nos seriamente a uma de duas saídas: (a) retrocesso no ocidente e assumpção da blasfémia como, se não crime, pelo menos vivido como tal pela generalidade da população, ou (b) reacção progressivamente mais virulenta contra a dita rua árabe, possivelmente através da extrema direita, se o centro democrático continuar a encolher os ombros. E se esperarmos que parta do mundo árabe a reacção aos seus próprios "extremismos", é melhor que o façamos sentados.

Nada de bom virá daqui.

ps: a Gisela Moniz escreveu "Gostava de ver o que aconteceria se algum islamita tivesse feito um filme semelhante utilizando figuras que os cristão reverenciam (afinal também existe um fanatismo cristão actual que remonta a séculos de crimes sinistros). "

Não foram islamitas, mas em 1979 os Monty Python fizeram "A vida de Brian". Houve na altura, principalmente nos EUA, manifestações contra o filme, exigindo a sua proibição. Imediatamente, em reacção, formaram-se manifestações a favor, em que se viam cartazes contra qualquer tipo de censura. Antes que me esqueça: tanto quanto sei, ninguém foi fisicamente atacado e muito menos assassinado. O único Python que se encontra hoje morto foi vítima de cancro. Agora pergunto-lhe a si: Consegue imaginar algo semelhante na rua árabe? Acha que um filme destes a mimar a vida de Maomé acabaria sem sangue? Acha que haveria a mais pálida oposição, vinda de dentro do mundo muçulmano, à censura e violência?
For the record: sou ateu, não tenho ilusões quanto à existência de extremistas cristãos (como Anders Breivik, para não irmos mais longe). Se hoje vivemos num estado secular, nem que seja na aparência (mas isso seria para outro dia), foi uma conquista de séculos. E muitos morreram na fogueira para cá chegarmos. Não nutro maior simpatia pela cristandade do que pelo islamismo. Mas também não tenho ilusões sobre onde é que prefiro viver.
(Hugo Carreira)

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EARLY MORNING BLOGS   

2255
 
Nihil est incertius vulgo, nihil obscurius voluntate hominum, nihil fallacius ratione tota comitiorum.
 
(Cícero) 

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ESPÍRITO DO TEMPO:  HOJE

Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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22.9.12


EARLY MORNING BLOGS   

2254
γηράσκω δ᾽ αἰεὶ πολλὰ διδασκόμενος.
 
Envelheço, aprendendo sempre mais coisas.

(Solon)

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COISAS DA SÁBADO:  
PENSAR SOBRE AS FRASES QUE SE DIZEM: “ESTAMOS NUMA SITUAÇÃO DE GRANDE GRAVIDADE”  


Estou a escrever a dias desta revista sair, o que no actual ambiente volátil da nossa vida política é um risco maior. Tudo pode mudar, embora o que possa mudar já esteja inscrito nos acontecimentos da semana passada. Comecemos pelo princípio: não estamos bem informados do que se passou. Pior ainda, estamos desinformados sobre o que se passou, porque, quando se analisam os eventos, nada bate certo. 

Veja-se, por exemplo, esta frase repetida pelos governantes do PSD e pelo CDS na oposição, “estamos numa situação de grande gravidade”. Aqui está uma frase que deveria ser bem entendida, porque ela põe em causa toda a narrativa legitimadora do governo de há um ano para cá. Se entendida de forma genérica, é verdadeira, mas não diz nada de novo, nem ganha por isso mais “gravidade” actual. A questão está em saber, porque é que hoje estamos numa “situação de grande gravidade”, depois do governo (Passos, Gaspar, Aguiar Branco, Relvas, etc.) e do proto-governo (Borges) nos terem dito durante um ano que as coisas estavam a correr muito bem. Borges e Gaspar disseram várias vezes que o “ajustamento estava a correr muito bem e mais depressa do que se esperava”, a nossa situação estava “melhor” do que há um ano, e os sinais eram tão positivos que Passos Coelho prometeu a retoma em 2013, há cerca de um mês. O que é que se está a passar para a “gravidade” de hoje? 

Aqui penso que falta informação, mas a avaliação da troika parece ter corrido muito pior do que o governo quer admitir. Já se sabia do descarrilamento do défice, mas sabe-se pouco sobre os seus valores reais. Estamos em pleno “socratismo” de jonglerie com os números. E mais coisas devem estar a correr mal, para que a troika apareça tão inflexível com o seu melhor aluno, qualidade que pelos vistos nos obteve um adiamento que o governo sempre disse ser mau, mas nada mais. 

Os próprios números do adiamento são bizarros: de 5 para 4,5 e depois para 2,5, em três anos. Porquê este ritmo tão desigual na distribuição temporal do esforço? E por que razão se vai chegar aos 2,5 e não aos 3 exigidos? E como é que se vai passar dos 4,5 para 2,5 sem ainda mais brutais medidas de austeridade? É que, se de cada vez que o governo falha um objectivo, como ocorreu este ano (ainda sem estar em vigor a decisão do Tribunal Constitucional), há um novo plano de austeridade, isto vai rebentar muito mais cedo do que se pensa. 

É mesmo a Grécia que aí vem e não é porque as pessoas não aceitem muita austeridade, já aceitaram, é que não aceitam pagar pelo falhanço de um governo a quem dão tudo e tudo é desbaratado, nem por um governo que parece hostiliza-los pela exibição de flagrante injustiça que é a TSU. Esta é que devia ser “a situação de grande gravidade”. E é de responsabilidade do governo.

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17.9.12


ÀS VEZES APETECE LEMBRAR, por que razão não tenho surpresas...

Em Setembro, todos os actores do poder, da oposição e das diferentes forças políticas, económicas e sociais estarão encostados à parede num quarto cada vez mais pequeno. Encostados a um canto. Uns sabem, outros não. Uns vão saber a mal, outros vão tentar abrir um buraco na parede.
(...)

Já escrevi e repito que nesse canto da casa onde estamos, a raiva vai ser a resposta mais comum. A raiva é um sentimento complicado, que nem sempre transparece na violência pública, seja contra os familiares, os colegas, os polícias, a montra de um banco, ou um carro preto do Governo. George Santayana escreveu que "a depressão era uma raiva espalhada fina" e, numa das melhores descrições da raiva "espalhada grossa", Melville falava do capitão Ahab que descarregava sobre a baleia branca "a raiva e ódio sentido por toda a raça humana de Adão até aos nossos dias". E como se não chegasse tão monumental violência ainda diz que se "o peito [de Ahab] fosse um morteiro, faria explodir a granada do seu coração em brasa sobre ela", a baleia. Já temos baleia, temos o morteiro e temos o capitão Ahab.

Não há segredo nenhum sobre a pretensa passividade e "aquiescência" dos "pacientes" e "pacíficos" portugueses face ao "ajustamento". E não há segredo nenhum porque não há qualquer dessas atitudes, nem paciência, nem passividade, e muito menos aquiescência. (...)

É na pedrada na rua que se vê a raiva? Não, não é. Não olhem para a raiva de baixo, olham para a raiva de cima. É que não são só os de baixo que percebem que estão a ficar encostados a um canto, são também os de cima. Os de cima já perceberam que os melhores tempos já estão no passado, que o Governo já está mais estragado e hesitante do que o que eles desejavam, que já não está intacto e forte, mas que uma mistura de Relvas, mais o défice incontrolado, mais, espantem-se, a proximidade de eleições, está a dar second thoughts àqueles que queriam apenas como "bons alunos" e executores. O magma da "política", que os de cima tanto desprezam, começa a vir à superfície e será o "ruído" que não desejam. Ou, como diz o FMI de forma certeira, há "fadiga do ajustamento". (...)  Começam a ter a sensação de que foi uma oportunidade única, ainda é uma oportunidade única, mas que está a acabar, começa a faltar o espaço. O canto começa a ficar apertado. Daí a raiva crescente.

(...)  No meio disto tudo, Passos Coelho fornece outro produto, mais à sua dimensão de executante, mas que também transporta alguma desta raiva. É quando Passos Coelho diz que "não estamos a exigir de mais", como se fosse pouco o que se está a "exigir" e ainda não levaram em cima com a dose toda. É quando avança com mais uma comparação moral que mostra o imaginário onde estamos metidos; não podemos correr o risco de nos cruzar com os nossos credores "nos bons restaurantes e boas lojas". É mesmo isso que os portugueses andaram a fazer nos últimos anos, a comprar malas Vuitton e sapatos Jimmy Choo!

Passos dizia que as pessoas "simples" percebiam isto, porque de facto para ele as coisas são assim simples. Então como é que nos devemos "cruzar com os nossos credores"? De alpergatas, vestidos de chita, trabalhando dez horas por um salário de miséria? É que não é preciso andar muito tempo para trás para ter sido assim. Ainda há quem se lembre. Deve ser por isso que é preciso "ajustar".

(...)  Em alturas de mudança social profunda, neste caso associada à destruição da classe média e ao empobrecimento generalizado, quem não percebe isto, não percebe nada. Em Setembro, acordará do seu sono percebendo o canto a que está encostado. Ou em Agosto, ou em Outubro. Porque estas coisas, uma vez maduras, não escolhem nem dia nem hora.

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TEORIA DOS IRRITANTES NATURAIS

Ele há momentos em que se eriça à volta da maioria das pessoas uma pequena selva de irritantes naturais. Este é um deles. Os irritantes podem ser pessoas, palavras, tiques, imagens, gestos, mas onde eles aparecem, falam, existem, deixam um rastro de irritação, propício a desestabilizar o mais pacífico dos cidadãos. Nem todos os irritantes actuam nos mesmos públicos e alguns neutralizam-se uns aos outros, completam-se e anulam-se. Pode até admitir-se que haja irritantes úteis, que funcionam como alertas ou que obrigam a pensar. Mas a maioria é apenas pouco mais do que uma vaga urticária, inútil, má, e incómoda.

Convém precisar que a relação que os irritantes geram nas pessoas comuns não é de amor e de ódio, mas apenas uma epidérmica rejeição. Depois, cada um vai à sua vida, e o tempo acaba por apagar a irritação, ficando apenas uma grande indiferença. Pode demorar mais ou menos, mas no fim fica apenas uma vermelhidão distante e vaga. Os que geram amor e ódio é outra coisa, muitas vezes confundida na nossa iliteracia mediática com o carisma. O carisma é outro campeonato, o carisma é muito raro e não se confunde com a capacidade de polarização. Personagens menores podem polarizar, personagens ainda mais menores podem irritar, mas a qualidade carismática é essencialmente criativa. E isso não abunda por cá.

O par Miguel Relvas/José Sócrates

Como convém a um verdadeira teoria dos irritantes naturais, usando uma bartheana cesura, o par Miguel Relvas/José Sócrates permite distinguir o mero irritante do polarizador, a coisa epidérmica, que não deixará mais do que uma memória picaresca, em confronto com os sulcos mais profundos daquele que junta por amor e repele por ódio. Não se trata de moralizar ou hierarquizar entre um e outro, mas apenas de definir a dimensão e os efeitos de cada um dos tipos.

Não se trata de pessoas mas de "tipos". É por isso que vários outros pares não funcionam como irritantes, e muito menos chegam à condição superior de polarizadores. Por exemplo, Passos Coelho/Sócrates não tem sentido: Passos Coelho apenas agora inicia a sua carreira de irritante, e nunca será um irritante ideal, a não ser que vá muitas vezes fazer-nos mal e a seguir cantar canções meli-melo. O par Passos Coelho/Seguro é muito equilibrado e próximo, mas nenhum ainda atingiu a condição de irritante eficaz, quanto mais a de polarizador.

Já pelo contrário o par Relvas/Sócrates é mais útil para compreender as distinções. O primeiro é um irritante puro, o segundo uma coisa bastante mais séria e perigosa. Miguel Relvas é hoje o maior irritante colectivo no activo da vida política portuguesa, substituindo o filósofo de Paris, imerso numa crescente pacificação que o tempo e a distância ajudam. Pode até ser injusto, Sócrates fez muito pior ao país do que alguma vez Relvas terá oportunidade de fazer, mas isto dos irritantes vive muito do simbólico e do momento e do pôr-se a jeito, coisa que Sócrates sempre evitou com cuidado. Ambos partilham uma enorme desfaçatez, aquilo que em linguagem comum se chama de "falta de vergonha", mas nem por isso estão no mesmo plano face ao "povo".

Sócrates polariza, gera fúria e gerava medo. Relvas gera irritação, vaias, protestos, anedotas, mas não passa disso. Hoje colocar Relvas em público é a melhor garantia de provocar uma manifestação espontânea em qualquer público, seja o do seu amado futebol, seja o do clube excursionista de A-dos-Loucos ou a Associação dos Originários de Portugal em Neuss, Alemanha, seja do Jardim Infantil "Gugu" na Moita, seja na Volta à França, ou na Volta à Espanha. É por isso que Relvas passou a viver exilado, entre Timor, Angola e o Brasil, competindo pelos périplos internacionais com Paulo Portas. Porém actualiza-se todos os dias como irritante activo porque entende que pode falar ao país à prudente distância de muitos milhares de quilómetros, num exercício que deixa sempre o Governo pior do que o que estava.

De Relvas ficarão imitadores, de Sócrates ficarão seguidores, fãs, nostalgia nuns, vontade de vingança noutros. Apesar de Sócrates estar acima da vulgar condição de irritante, nem por isso deixa de gerar alguns irritantes activos, em particular os seus órfãos, muito vocais na comunicação social, no Twitter, e nos blogues. Como a nossa sociedade é machista, a parte desses órfãos conhecida como as "viúvas de Sócrates" geram ainda mais irritação. 


O "Pedro" do Facebook

Um cidadão e um pai chamado "Pedro" resolveu escrever uma carta no Facebook. A carta apresentava-se como "pessoal", mas destinava-se a ser lida por um público potencial de 845 milhões de pessoas. Para pessoal, é um pouco gente a mais. Mas o "Pedro" que escreveu a carta, usando a rede social preferida pelos adolescentes, quer mergulhar-nos numa espécie de nevoeiro afectivo que desculpe os actos do seu alter ego político. Usar o Facebook para vender políticas hostis ao comum dos cidadãos com o mel forçado e hipócrita da intimidade "pessoal", é um eficaz irritante. Nem toda a gente é Obama, nem tem o seu team.

Os "silêncios patrióticos"

Os "silêncios patrióticos" de Paulo Portas, que sugerem palavras que não são pronunciadas para não prejudicar a "Pátria", são irritantes naturais porque toda a gente percebe que são apenas conveniências partidárias envolvidas num teatro do mesmo teor. Tomar as pessoas por parvas é um irritante natural perfeito.


O "não há alternativa"

Enquanto a frase "não há alternativa" se aplicava apenas à austeridade em geral, a frase era sensata e suscitava uma aquiescência triste, mas cordata. Não era um irritante, mas uma inevitabilidade, que pessoas racionais sabiam não poder ser contornada. "Não havia alternativa."

Depois a frase começou a azedar. Primeiro, havia quem dissesse que "não havia alternativa" com ar feliz, como quem diz, portaram-se mal, "viveram acima das vossas posses" e por isso precisam de um tratamento drástico de "austeridade". Não o Estado, não o Governo, não os políticos, não os bancos, não as pessoas imprevidentes e gastadoras, mas "todos". Ora quando chegou ao "todos", a frase tornava-se injusta, e quando se tornou habitual como um instrumento discursivo na política, começou e bem a irritar todos aqueles que sabiam não fazer parte desses "todos".

O moralismo, aliado ao paternalismo, começou a fazer estragos na "inevitabilidade". Porque uma coisa era ter de passar mal uns tempos para consertar um país, que fora muito estragado pelas governações mais recentes, outra é ter de ouvir uma reprimenda moral associada a medidas que são apresentadas como se fossem punições, palmadas no aluno malcomportado que não fez "o trabalho de casa". Diga-se de passagem que a história adolescente do "trabalho de casa" é também um pequeno irritante.

Hoje o "não há alternativa" é usado para blindar das críticas as políticas do Governo, fazendo esquecer que elas são opções entre várias "alternativas". Se não houvesse "alternativas", não precisávamos de um governo para coisa nenhuma, bastava um comité de técnicos para aplicar uma "ciência" incontestável. Não é assim e por isso a questão da qualidade da governação vem ao de cima cada vez mais, com resultados pouco brilhantes.

Por isso, estar sempre a ouvir que "não há alternativas" à medida A ou B, faz-nos lembrar o cemitério de medidas para as quais não havia "alternativa" e que ficaram pelo caminho. Por exemplo: a meia hora suplementar diária. Já chega de "inevitabilidades" que irritam.


O "pacto de agressão" do PCP

Em 2012, não é propriamente muito sensato para um partido com tradição de usar sempre a mesma cassete, e por todos os seus militantes a usar expressões estereotipadas, com marca da casa. O efeito é levar as pessoas a distanciarem-se do discurso do partido e a fechar de imediato os ouvidos. Um caso típico é o uso e abuso da expressão "pacto de agressão", um pequeno irritante que torna a linguagem do PCP em pura linguagem de pau. Que o PCP entenda que o pacto com a troika é um pacto de agressão, está no seu direito. Mas "assinar" as suas declarações, intervenções, falas, com estereótipos identitários, só lhes tira eficácia, afasta-as de comunicarem com os outros, funcionando como se fosse uma senha interior, sem sentido para o comum dos mortais, que pode achar que há mesmo um "pacto de agressão", mas que não gosta que lhe falem em slogans. E irrita. 
(Versão do Público de 15 de Setembro de 2012.)

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Nothing is so hard for those who abound in riches as to conceive how others can be in want. 

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Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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