COISAS DA SÁBADO: É UM FILME IMBECIL E PERIGOSO, MAS CENSURÁ-LO AINDA É MAIS PERIGOSO
O filme que provocou a ira dos radicais muçulmanos é um filme paupérrimo, ignorante, imbecil e provocatório. A única coisa em que é eficaz é na provocação, mas a liberdade tem que cobrir as provocações, as coisas que detestamos, recusamos, nos metem nojo e aversão, porque se não é assim não é liberdade.
E convém não inverter a questão. O mal da reacção ao filme é que é o problema, não é o filme. Se a “rua” islâmica, tão louvada na Primavera, se revela intolerante e fanática no Inverno, o problema é com a “rua”. Coisas deste tipo feitas contra os cristãos, blasfemas e provocatórias, sem qualquer qualidade, são do dia-a-dia no mundo cristão. Sempre que há a tentação de proibi-las, - e há muitas vezes essa tentação -, levanta-se um clamor pela liberdade e contra a censura e isso mostra a saúde das sociedades democráticas. Só faltava agora que se começasse a interiorizar por medo, uma nova censura face ao radicalismo islâmico. Temo que esse caminho esteja já a ser seguido.
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Fico decepcionada com a sua perspectiva sobre esta
questão.
Eu estou convencida que faz parte da consciência
e
cidadania não gozar com as crenças religiosas de cada um, ainda que,
este escárnio tenha sido feito como uma forma de provocar o fanatismo
islâmico e expor o seu lado mais negativo. Talvez o autor, um judeu ao que parece, tenha tido aliás outros objectivos para além de
afirmar o seu direito à livre expressão.
Gostava de ver o que aconteceria se algum islamita
tivesse feito um filme semelhante utilizando figuras que os cristão reverenciam
(afinal também existe um fanatismo cristão actual que remonta a séculos de
crimes sinistros).
Responder ao fanatismo desta forma coloca-nos simplesmente ao mesmo
nível de "barbárie". Digo isto não judicativamente, por achar que se
trata de questão cultural, que persiste numa civilização que não passou,
como o Ocidente, por um Renascimento.
De qualquer modo creio que o fanatismo, que em grande parte
pressupõe uma grande tensão interior dos sujeitos, não vai desaparecer
administrando mais doses de acirração (que se traduzem, é bom não esquecer, em
mais mortes e destruição).
(Gisela Moniz)
Pois eu concordo inteiramente com o seu (JPP) texto.
Qualquer que seja o propósito do filme, ele é apenas isso, um filme. E
por causa desse filme foi gente assassinada. Chegado aqui temos no
ocidente os habituais "sim, mas":
"Claro que sou contra os atentados ao World Trade Center, mas... há que
entender tendo em conta as relações americanas com Israel",
"claro que sou contra a fatwa a Salman Rushdie, mas... a culpa é dele
que devia saber no que se metia ao escrever o que escreveu",
"claro que sou contra o assassinato de Theo Van Gogh, mas... tal como
Rushdie, ele devia ter tido o bom-senso necessário para não fazer o
filme que fez",
"claro que sou contra os ataques a embaixadas dinamarquesas por causa de
uma caricatura, mas... temos que compreender que não existe uma cultura
universal, pelo que seria arrogância pressupor que o mundo inteiro se
rege pelos mesmos valores do ocidente",
etc, etc, etc.
Tudo isto tresanda. Vivemos na ilusão de estarmos numa sociedade em que a
liberdade de expressão existe, e em que a blasfémia (crime sem vítima) é
condenada. Vivemos uma farsa. A farsa de que a submissão e aceitação do
inaceitável é decisão nossa, de acordo com os nossos valores. Na
realidade, iludimo-nos. Quando se vive com medo de abrir a boca, quando
procuramos auto-justificar o silêncio resultante do medo como sendo
"bom-senso", "compreensão", "multiculturalismo", "civilidade", etc.,
significa que não estamos a escolher nada, a escolha foi feita por nós.
Limitamo-nos, por auto-estima, a fingir que sim.
Com isto, arriscamo-nos seriamente a uma de duas saídas: (a) retrocesso
no ocidente e assumpção da blasfémia como, se não crime, pelo menos
vivido como tal pela generalidade da população, ou (b) reacção
progressivamente mais virulenta contra a dita rua árabe, possivelmente
através da extrema direita, se o centro democrático continuar a encolher
os ombros. E se esperarmos que parta do mundo árabe a reacção aos seus
próprios "extremismos", é melhor que o façamos sentados.
Nada de bom virá daqui.
ps: a Gisela Moniz escreveu "Gostava de ver o que aconteceria se algum
islamita tivesse feito um filme semelhante utilizando figuras que os
cristão reverenciam (afinal também existe um fanatismo cristão actual
que remonta a séculos de crimes sinistros). "
Não foram islamitas, mas em 1979 os Monty Python fizeram "A vida de
Brian". Houve na altura, principalmente nos EUA, manifestações contra o
filme, exigindo a sua proibição. Imediatamente, em reacção, formaram-se
manifestações a favor, em que se viam cartazes contra qualquer tipo de
censura. Antes que me esqueça: tanto quanto sei, ninguém foi fisicamente
atacado e muito menos assassinado. O único Python que se encontra hoje
morto foi vítima de cancro. Agora pergunto-lhe a si: Consegue imaginar
algo semelhante na rua árabe? Acha que um filme destes a mimar a vida de
Maomé acabaria sem sangue? Acha que haveria a mais pálida oposição,
vinda de dentro do mundo muçulmano, à censura e violência?
For the record: sou ateu, não tenho ilusões quanto à existência de
extremistas cristãos (como Anders Breivik, para não irmos mais longe).
Se hoje vivemos num estado secular, nem que seja na aparência (mas isso
seria para outro dia), foi uma conquista de séculos. E muitos morreram
na fogueira para cá chegarmos. Não nutro maior simpatia pela cristandade
do que pelo islamismo. Mas também não tenho ilusões sobre onde é que
prefiro viver.