ABRUPTO

23.9.12


COISAS DA SÁBADO:  É UM FILME IMBECIL E PERIGOSO, MAS CENSURÁ-LO AINDA É MAIS PERIGOSO 

O filme que provocou a ira dos radicais muçulmanos é um filme paupérrimo, ignorante, imbecil e provocatório. A única coisa em que é eficaz é na provocação, mas a liberdade tem que cobrir as provocações, as coisas que detestamos, recusamos, nos metem nojo e aversão, porque se não é assim não é liberdade. 

E convém não inverter a questão. O mal da reacção ao filme é que é o problema, não é o filme. Se a “rua” islâmica, tão louvada na Primavera, se revela intolerante e fanática no Inverno, o problema é com a “rua”. Coisas deste tipo feitas contra os cristãos, blasfemas e provocatórias, sem qualquer qualidade, são do dia-a-dia no mundo cristão. Sempre que há a tentação de proibi-las, - e há muitas vezes essa tentação -, levanta-se um clamor pela liberdade e contra a censura e isso mostra a saúde das sociedades democráticas. Só faltava agora que se começasse a interiorizar por medo, uma nova censura face ao radicalismo islâmico. Temo que esse caminho esteja já a ser seguido.

*

Fico decepcionada com a sua perspectiva sobre esta questão.

Eu estou convencida que faz parte da consciência e cidadania não gozar com as crenças religiosas de cada um, ainda que,  este escárnio tenha sido feito como uma forma de provocar o fanatismo islâmico e expor o seu lado mais negativo. Talvez o autor, um judeu ao que parece, tenha tido aliás outros objectivos para além de afirmar o seu direito à livre expressão.

Gostava de ver o que aconteceria se algum islamita tivesse feito um filme semelhante utilizando figuras que os cristão reverenciam (afinal também existe um fanatismo cristão actual que remonta a séculos de crimes sinistros). 

Responder ao fanatismo desta forma coloca-nos simplesmente ao mesmo nível de "barbárie". Digo isto não judicativamente, por achar que se trata de questão cultural, que persiste numa civilização que não passou, como o Ocidente, por um Renascimento.

De qualquer modo creio que o fanatismo, que em grande parte pressupõe uma grande tensão interior dos sujeitos, não vai desaparecer administrando mais doses de acirração (que se traduzem, é bom não esquecer, em mais mortes e destruição).


(Gisela Moniz)
Pois eu concordo inteiramente com o seu (JPP) texto.

Qualquer que seja o propósito do filme, ele é apenas isso, um filme. E por causa desse filme foi gente assassinada. Chegado aqui temos no ocidente os habituais "sim, mas":
"Claro que sou contra os atentados ao World Trade Center, mas... há que entender tendo em conta as relações americanas com Israel",
"claro que sou contra a fatwa a Salman Rushdie, mas... a culpa é dele que devia saber no que se metia ao escrever o que escreveu",
"claro que sou contra o assassinato de Theo Van Gogh, mas... tal como Rushdie, ele devia ter tido o bom-senso necessário para não fazer o filme que fez",
"claro que sou contra os ataques a embaixadas dinamarquesas por causa de uma caricatura, mas... temos que compreender que não existe uma cultura universal, pelo que seria arrogância pressupor que o mundo inteiro se rege pelos mesmos valores do ocidente",
etc, etc, etc.

Tudo isto tresanda. Vivemos na ilusão de estarmos numa sociedade em que a liberdade de expressão existe, e em que a blasfémia (crime sem vítima) é condenada. Vivemos uma farsa. A farsa de que a submissão e aceitação do inaceitável é decisão nossa, de acordo com os nossos valores. Na realidade, iludimo-nos. Quando se vive com medo de abrir a boca, quando procuramos auto-justificar o silêncio resultante do medo como sendo "bom-senso", "compreensão", "multiculturalismo", "civilidade", etc., significa que não estamos a escolher nada, a escolha foi feita por nós. Limitamo-nos, por auto-estima, a fingir que sim.

Com isto, arriscamo-nos seriamente a uma de duas saídas: (a) retrocesso no ocidente e assumpção da blasfémia como, se não crime, pelo menos vivido como tal pela generalidade da população, ou (b) reacção progressivamente mais virulenta contra a dita rua árabe, possivelmente através da extrema direita, se o centro democrático continuar a encolher os ombros. E se esperarmos que parta do mundo árabe a reacção aos seus próprios "extremismos", é melhor que o façamos sentados.

Nada de bom virá daqui.

ps: a Gisela Moniz escreveu "Gostava de ver o que aconteceria se algum islamita tivesse feito um filme semelhante utilizando figuras que os cristão reverenciam (afinal também existe um fanatismo cristão actual que remonta a séculos de crimes sinistros). "

Não foram islamitas, mas em 1979 os Monty Python fizeram "A vida de Brian". Houve na altura, principalmente nos EUA, manifestações contra o filme, exigindo a sua proibição. Imediatamente, em reacção, formaram-se manifestações a favor, em que se viam cartazes contra qualquer tipo de censura. Antes que me esqueça: tanto quanto sei, ninguém foi fisicamente atacado e muito menos assassinado. O único Python que se encontra hoje morto foi vítima de cancro. Agora pergunto-lhe a si: Consegue imaginar algo semelhante na rua árabe? Acha que um filme destes a mimar a vida de Maomé acabaria sem sangue? Acha que haveria a mais pálida oposição, vinda de dentro do mundo muçulmano, à censura e violência?
For the record: sou ateu, não tenho ilusões quanto à existência de extremistas cristãos (como Anders Breivik, para não irmos mais longe). Se hoje vivemos num estado secular, nem que seja na aparência (mas isso seria para outro dia), foi uma conquista de séculos. E muitos morreram na fogueira para cá chegarmos. Não nutro maior simpatia pela cristandade do que pelo islamismo. Mas também não tenho ilusões sobre onde é que prefiro viver.
(Hugo Carreira)

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