ABRUPTO

17.9.12


TEORIA DOS IRRITANTES NATURAIS

Ele há momentos em que se eriça à volta da maioria das pessoas uma pequena selva de irritantes naturais. Este é um deles. Os irritantes podem ser pessoas, palavras, tiques, imagens, gestos, mas onde eles aparecem, falam, existem, deixam um rastro de irritação, propício a desestabilizar o mais pacífico dos cidadãos. Nem todos os irritantes actuam nos mesmos públicos e alguns neutralizam-se uns aos outros, completam-se e anulam-se. Pode até admitir-se que haja irritantes úteis, que funcionam como alertas ou que obrigam a pensar. Mas a maioria é apenas pouco mais do que uma vaga urticária, inútil, má, e incómoda.

Convém precisar que a relação que os irritantes geram nas pessoas comuns não é de amor e de ódio, mas apenas uma epidérmica rejeição. Depois, cada um vai à sua vida, e o tempo acaba por apagar a irritação, ficando apenas uma grande indiferença. Pode demorar mais ou menos, mas no fim fica apenas uma vermelhidão distante e vaga. Os que geram amor e ódio é outra coisa, muitas vezes confundida na nossa iliteracia mediática com o carisma. O carisma é outro campeonato, o carisma é muito raro e não se confunde com a capacidade de polarização. Personagens menores podem polarizar, personagens ainda mais menores podem irritar, mas a qualidade carismática é essencialmente criativa. E isso não abunda por cá.

O par Miguel Relvas/José Sócrates

Como convém a um verdadeira teoria dos irritantes naturais, usando uma bartheana cesura, o par Miguel Relvas/José Sócrates permite distinguir o mero irritante do polarizador, a coisa epidérmica, que não deixará mais do que uma memória picaresca, em confronto com os sulcos mais profundos daquele que junta por amor e repele por ódio. Não se trata de moralizar ou hierarquizar entre um e outro, mas apenas de definir a dimensão e os efeitos de cada um dos tipos.

Não se trata de pessoas mas de "tipos". É por isso que vários outros pares não funcionam como irritantes, e muito menos chegam à condição superior de polarizadores. Por exemplo, Passos Coelho/Sócrates não tem sentido: Passos Coelho apenas agora inicia a sua carreira de irritante, e nunca será um irritante ideal, a não ser que vá muitas vezes fazer-nos mal e a seguir cantar canções meli-melo. O par Passos Coelho/Seguro é muito equilibrado e próximo, mas nenhum ainda atingiu a condição de irritante eficaz, quanto mais a de polarizador.

Já pelo contrário o par Relvas/Sócrates é mais útil para compreender as distinções. O primeiro é um irritante puro, o segundo uma coisa bastante mais séria e perigosa. Miguel Relvas é hoje o maior irritante colectivo no activo da vida política portuguesa, substituindo o filósofo de Paris, imerso numa crescente pacificação que o tempo e a distância ajudam. Pode até ser injusto, Sócrates fez muito pior ao país do que alguma vez Relvas terá oportunidade de fazer, mas isto dos irritantes vive muito do simbólico e do momento e do pôr-se a jeito, coisa que Sócrates sempre evitou com cuidado. Ambos partilham uma enorme desfaçatez, aquilo que em linguagem comum se chama de "falta de vergonha", mas nem por isso estão no mesmo plano face ao "povo".

Sócrates polariza, gera fúria e gerava medo. Relvas gera irritação, vaias, protestos, anedotas, mas não passa disso. Hoje colocar Relvas em público é a melhor garantia de provocar uma manifestação espontânea em qualquer público, seja o do seu amado futebol, seja o do clube excursionista de A-dos-Loucos ou a Associação dos Originários de Portugal em Neuss, Alemanha, seja do Jardim Infantil "Gugu" na Moita, seja na Volta à França, ou na Volta à Espanha. É por isso que Relvas passou a viver exilado, entre Timor, Angola e o Brasil, competindo pelos périplos internacionais com Paulo Portas. Porém actualiza-se todos os dias como irritante activo porque entende que pode falar ao país à prudente distância de muitos milhares de quilómetros, num exercício que deixa sempre o Governo pior do que o que estava.

De Relvas ficarão imitadores, de Sócrates ficarão seguidores, fãs, nostalgia nuns, vontade de vingança noutros. Apesar de Sócrates estar acima da vulgar condição de irritante, nem por isso deixa de gerar alguns irritantes activos, em particular os seus órfãos, muito vocais na comunicação social, no Twitter, e nos blogues. Como a nossa sociedade é machista, a parte desses órfãos conhecida como as "viúvas de Sócrates" geram ainda mais irritação. 


O "Pedro" do Facebook

Um cidadão e um pai chamado "Pedro" resolveu escrever uma carta no Facebook. A carta apresentava-se como "pessoal", mas destinava-se a ser lida por um público potencial de 845 milhões de pessoas. Para pessoal, é um pouco gente a mais. Mas o "Pedro" que escreveu a carta, usando a rede social preferida pelos adolescentes, quer mergulhar-nos numa espécie de nevoeiro afectivo que desculpe os actos do seu alter ego político. Usar o Facebook para vender políticas hostis ao comum dos cidadãos com o mel forçado e hipócrita da intimidade "pessoal", é um eficaz irritante. Nem toda a gente é Obama, nem tem o seu team.

Os "silêncios patrióticos"

Os "silêncios patrióticos" de Paulo Portas, que sugerem palavras que não são pronunciadas para não prejudicar a "Pátria", são irritantes naturais porque toda a gente percebe que são apenas conveniências partidárias envolvidas num teatro do mesmo teor. Tomar as pessoas por parvas é um irritante natural perfeito.


O "não há alternativa"

Enquanto a frase "não há alternativa" se aplicava apenas à austeridade em geral, a frase era sensata e suscitava uma aquiescência triste, mas cordata. Não era um irritante, mas uma inevitabilidade, que pessoas racionais sabiam não poder ser contornada. "Não havia alternativa."

Depois a frase começou a azedar. Primeiro, havia quem dissesse que "não havia alternativa" com ar feliz, como quem diz, portaram-se mal, "viveram acima das vossas posses" e por isso precisam de um tratamento drástico de "austeridade". Não o Estado, não o Governo, não os políticos, não os bancos, não as pessoas imprevidentes e gastadoras, mas "todos". Ora quando chegou ao "todos", a frase tornava-se injusta, e quando se tornou habitual como um instrumento discursivo na política, começou e bem a irritar todos aqueles que sabiam não fazer parte desses "todos".

O moralismo, aliado ao paternalismo, começou a fazer estragos na "inevitabilidade". Porque uma coisa era ter de passar mal uns tempos para consertar um país, que fora muito estragado pelas governações mais recentes, outra é ter de ouvir uma reprimenda moral associada a medidas que são apresentadas como se fossem punições, palmadas no aluno malcomportado que não fez "o trabalho de casa". Diga-se de passagem que a história adolescente do "trabalho de casa" é também um pequeno irritante.

Hoje o "não há alternativa" é usado para blindar das críticas as políticas do Governo, fazendo esquecer que elas são opções entre várias "alternativas". Se não houvesse "alternativas", não precisávamos de um governo para coisa nenhuma, bastava um comité de técnicos para aplicar uma "ciência" incontestável. Não é assim e por isso a questão da qualidade da governação vem ao de cima cada vez mais, com resultados pouco brilhantes.

Por isso, estar sempre a ouvir que "não há alternativas" à medida A ou B, faz-nos lembrar o cemitério de medidas para as quais não havia "alternativa" e que ficaram pelo caminho. Por exemplo: a meia hora suplementar diária. Já chega de "inevitabilidades" que irritam.


O "pacto de agressão" do PCP

Em 2012, não é propriamente muito sensato para um partido com tradição de usar sempre a mesma cassete, e por todos os seus militantes a usar expressões estereotipadas, com marca da casa. O efeito é levar as pessoas a distanciarem-se do discurso do partido e a fechar de imediato os ouvidos. Um caso típico é o uso e abuso da expressão "pacto de agressão", um pequeno irritante que torna a linguagem do PCP em pura linguagem de pau. Que o PCP entenda que o pacto com a troika é um pacto de agressão, está no seu direito. Mas "assinar" as suas declarações, intervenções, falas, com estereótipos identitários, só lhes tira eficácia, afasta-as de comunicarem com os outros, funcionando como se fosse uma senha interior, sem sentido para o comum dos mortais, que pode achar que há mesmo um "pacto de agressão", mas que não gosta que lhe falem em slogans. E irrita. 
(Versão do Público de 15 de Setembro de 2012.)

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© José Pacheco Pereira
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