Ele
há momentos em que se eriça à volta da maioria das pessoas uma pequena
selva de irritantes naturais. Este é um deles. Os irritantes podem ser
pessoas, palavras, tiques, imagens, gestos, mas onde eles aparecem,
falam, existem, deixam um rastro de irritação, propício a desestabilizar
o mais pacífico dos cidadãos. Nem todos os irritantes actuam nos mesmos
públicos e alguns neutralizam-se uns aos outros, completam-se e
anulam-se. Pode até admitir-se que haja irritantes úteis, que funcionam
como alertas ou que obrigam a pensar. Mas a maioria é apenas pouco mais
do que uma vaga urticária, inútil, má, e incómoda.
Convém
precisar que a relação que os irritantes geram nas pessoas comuns não é
de amor e de ódio, mas apenas uma epidérmica rejeição. Depois, cada um
vai à sua vida, e o tempo acaba por apagar a irritação, ficando apenas
uma grande indiferença. Pode demorar mais ou menos, mas no fim fica
apenas uma vermelhidão distante e vaga. Os que geram amor e ódio é outra
coisa, muitas vezes confundida na nossa iliteracia mediática com o
carisma. O carisma é outro campeonato, o carisma é muito raro e não se
confunde com a capacidade de polarização. Personagens menores podem
polarizar, personagens ainda mais menores podem irritar, mas a qualidade
carismática é essencialmente criativa. E isso não abunda por cá.
O par Miguel Relvas/José Sócrates
Como
convém a um verdadeira teoria dos irritantes naturais, usando uma
bartheana cesura, o par Miguel Relvas/José Sócrates permite distinguir o
mero irritante do polarizador, a coisa epidérmica, que não deixará mais
do que uma memória picaresca, em confronto com os sulcos mais profundos
daquele que junta por amor e repele por ódio. Não se trata de moralizar
ou hierarquizar entre um e outro, mas apenas de definir a dimensão e os
efeitos de cada um dos tipos.
Não se trata de pessoas mas de
"tipos". É por isso que vários outros pares não funcionam como
irritantes, e muito menos chegam à condição superior de polarizadores.
Por exemplo, Passos Coelho/Sócrates não tem sentido: Passos Coelho
apenas agora inicia a sua carreira de irritante, e nunca será um
irritante ideal, a não ser que vá muitas vezes fazer-nos mal e a seguir
cantar canções meli-melo. O par Passos Coelho/Seguro é muito equilibrado
e próximo, mas nenhum ainda atingiu a condição de irritante eficaz,
quanto mais a de polarizador.
Já pelo contrário o par
Relvas/Sócrates é mais útil para compreender as distinções. O primeiro é
um irritante puro, o segundo uma coisa bastante mais séria e perigosa.
Miguel Relvas é hoje o maior irritante colectivo no activo da vida
política portuguesa, substituindo o filósofo de Paris, imerso numa
crescente pacificação que o tempo e a distância ajudam. Pode até ser
injusto, Sócrates fez muito pior ao país do que alguma vez Relvas terá
oportunidade de fazer, mas isto dos irritantes vive muito do simbólico e
do momento e do pôr-se a jeito, coisa que Sócrates sempre evitou com
cuidado. Ambos partilham uma enorme desfaçatez, aquilo que em linguagem
comum se chama de "falta de vergonha", mas nem por isso estão no mesmo
plano face ao "povo".
Sócrates polariza, gera fúria e gerava
medo. Relvas gera irritação, vaias, protestos, anedotas, mas não passa
disso. Hoje colocar Relvas em público é a melhor garantia de provocar
uma manifestação espontânea em qualquer público, seja o do seu amado
futebol, seja o do clube excursionista de A-dos-Loucos ou a Associação
dos Originários de Portugal em Neuss, Alemanha, seja do Jardim Infantil
"Gugu" na Moita, seja na Volta à França, ou na Volta à Espanha. É por
isso que Relvas passou a viver exilado, entre Timor, Angola e o Brasil,
competindo pelos périplos internacionais com Paulo Portas. Porém
actualiza-se todos os dias como irritante activo porque entende que pode
falar ao país à prudente distância de muitos milhares de quilómetros,
num exercício que deixa sempre o Governo pior do que o que estava.
De
Relvas ficarão imitadores, de Sócrates ficarão seguidores, fãs,
nostalgia nuns, vontade de vingança noutros. Apesar de Sócrates estar
acima da vulgar condição de irritante, nem por isso deixa de gerar
alguns irritantes activos, em particular os seus órfãos, muito vocais na
comunicação social, no Twitter, e nos blogues. Como a nossa sociedade é
machista, a parte desses órfãos conhecida como as "viúvas de Sócrates"
geram ainda mais irritação.
O "Pedro" do Facebook
Um
cidadão e um pai chamado "Pedro" resolveu escrever uma carta no
Facebook. A carta apresentava-se como "pessoal", mas destinava-se a ser
lida por um público potencial de 845 milhões de pessoas. Para pessoal, é
um pouco gente a mais. Mas o "Pedro" que escreveu a carta, usando a
rede social preferida pelos adolescentes, quer mergulhar-nos numa
espécie de nevoeiro afectivo que desculpe os actos do seu alter ego
político. Usar o Facebook para vender políticas hostis ao comum dos
cidadãos com o mel forçado e hipócrita da intimidade "pessoal", é um
eficaz irritante. Nem toda a gente é Obama, nem tem o seu team.
Os "silêncios patrióticos"
Os
"silêncios patrióticos" de Paulo Portas, que sugerem palavras que não
são pronunciadas para não prejudicar a "Pátria", são irritantes naturais
porque toda a gente percebe que são apenas conveniências partidárias
envolvidas num teatro do mesmo teor. Tomar as pessoas por parvas é um
irritante natural perfeito.
O "não há alternativa"
Enquanto
a frase "não há alternativa" se aplicava apenas à austeridade em geral,
a frase era sensata e suscitava uma aquiescência triste, mas cordata.
Não era um irritante, mas uma inevitabilidade, que pessoas racionais
sabiam não poder ser contornada. "Não havia alternativa."
Depois
a frase começou a azedar. Primeiro, havia quem dissesse que "não havia
alternativa" com ar feliz, como quem diz, portaram-se mal, "viveram
acima das vossas posses" e por isso precisam de um tratamento drástico
de "austeridade". Não o Estado, não o Governo, não os políticos, não os
bancos, não as pessoas imprevidentes e gastadoras, mas "todos". Ora
quando chegou ao "todos", a frase tornava-se injusta, e quando se tornou
habitual como um instrumento discursivo na política, começou e bem a
irritar todos aqueles que sabiam não fazer parte desses "todos".
O
moralismo, aliado ao paternalismo, começou a fazer estragos na
"inevitabilidade". Porque uma coisa era ter de passar mal uns tempos
para consertar um país, que fora muito estragado pelas governações mais
recentes, outra é ter de ouvir uma reprimenda moral associada a medidas
que são apresentadas como se fossem punições, palmadas no aluno
malcomportado que não fez "o trabalho de casa". Diga-se de passagem que a
história adolescente do "trabalho de casa" é também um pequeno
irritante.
Hoje o "não há alternativa" é usado para blindar das
críticas as políticas do Governo, fazendo esquecer que elas são opções
entre várias "alternativas". Se não houvesse "alternativas", não
precisávamos de um governo para coisa nenhuma, bastava um comité de
técnicos para aplicar uma "ciência" incontestável. Não é assim e por
isso a questão da qualidade da governação vem ao de cima cada vez mais,
com resultados pouco brilhantes.
Por isso, estar sempre a ouvir
que "não há alternativas" à medida A ou B, faz-nos lembrar o cemitério
de medidas para as quais não havia "alternativa" e que ficaram pelo
caminho. Por exemplo: a meia hora suplementar diária. Já chega de
"inevitabilidades" que irritam.
O "pacto de agressão" do PCP
Em
2012, não é propriamente muito sensato para um partido com tradição de
usar sempre a mesma cassete, e por todos os seus militantes a usar
expressões estereotipadas, com marca da casa. O efeito é levar as
pessoas a distanciarem-se do discurso do partido e a fechar de imediato
os ouvidos. Um caso típico é o uso e abuso da expressão "pacto de
agressão", um pequeno irritante que torna a linguagem do PCP em pura
linguagem de pau. Que o PCP entenda que o pacto com a troika é um
pacto de agressão, está no seu direito. Mas "assinar" as suas
declarações, intervenções, falas, com estereótipos identitários, só lhes
tira eficácia, afasta-as de comunicarem com os outros, funcionando como
se fosse uma senha interior, sem sentido para o comum dos mortais, que
pode achar que há mesmo um "pacto de agressão", mas que não gosta que
lhe falem em slogans. E irrita.