O provérbio é demasiado rural para os dias de hoje, mas aplica-se como uma luva a mais uma iniciativa europeia anunciada com pompa e circunstância: a criação do Serviço Europeu de Acção Externa, dito em linguagem não burocrática, o corpo diplomático da UE. Aqui os “bois” são a existência de uma política externa e de segurança europeia, que, como se sabe, hoje é zero para as grandes questões políticas mundiais, como é o caso do conflito israelo-palestiniano. O que existe com este nome é um mínimo denominador comum assente nos grandes textos sobre o direito internacional e os direitos humanos. Ou seja não é política externa viva é política externa morta, já foi. Trata-se da sua aplicação? Mas que se espera dos países da UE que são signatários desses tratados senão que os apliquem?
Agora o carro que vai à frente, o Serviço, esse voa: quase 6000 funcionários previstos, uns que já lá estão, outros a serem recrutados. Ou seja, mais uma vez, a UE mostra-se particularmente capaz de criar uma burocracia e particularmente incapaz de definir uma política.
Há um ano que José Sócrates ganhou as eleições a Manuela Ferreira Leite. Ganhou porque os portugueses preferiram o que ele lhes dizia ao que ela dizia. Ganhou porque os portugueses preferiram o status quo socialista ao temor das mudanças e da austeridade que então o PSD oferecia. Ganhou porque os portugueses preferiram a exuberância de plástico do engenheiro à severidade magoada da economista. Ganhou porque dizia que iria haver dinheiro para tudo e a sua contraparte dizia que não havia dinheiro para nada. Ganhou porque prometeu dinheiro aos bebés, medicamentos gratuitos aos velhos, subsídios para os desempregados, muitas obras públicas para as empresas e os bancos, e não aumentar os impostos. Ganhou porque os interesses estavam com a situação dentro do PS e com a oposição dentro do PSD. Ganhou porque tinha consigo a comunicação social, nalguns casos por simpatia genuína com a esquerda e o PS, em muitos casos por antipatia genuína com Manuela Ferreira Leite. Ganhou porque existiram e existem mecanismos de controlo e manipulação, operações de desinformação, intervenção escondida na comunicação social, na margem da lei ou mesmo na ilegalidade. Ganhou porque do ponto de vista da eficácia política o PS fez tudo certo e o PSD fez muito de errado. Ganhou porque Sócrates mentiu sobre Portugal e os portugueses todos os dias da campanha eleitoral e porque Manuel Ferreira Leite disse a verdade.
Depois de ganhar seguiu-se um ano desastroso para a mentira, sem ser um ano bom para a verdade. É por isso que estamos como estamos.
"He is outside of everything, and alien everywhere. He is an aesthetic solitary. His beautiful, light imagination is the wing that on the autumn evening just brushes the dusky window. "
Uma névoa de Outono o ar raro vela, Cores de meia-cor pairam no céu. O que indistintamente se revela, Árvores, casas, montes, nada é meu.
Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono. Sim, sinto-o eu pelo coração, o como. Mas entre mim e ver há um grande sono. De sentir é só a janela a que eu assomo.
Amanhã, se estiver um dia igual, Mas se for outro, porque é amanhã, Terei outra verdade, universal, E será como esta [...]
Dias de lixo? Infelizmente, não. Anos de lixo, décadas de lixo, é o que está à nossa frente. Registem o ano, 2010. Na verdade, registem já vários anos, 2008, 2009, só para ficar pelo marco da crise. Daqui a uns anos, se o Destino for benévolo e as Parcas estiverem distraídas, falamos.
Teixeira dos Santos faz o papel de Sísifo: leva a pedra pela encosta e ela, antes de chegar ao cimo do monte, cai sempre. Todos os seus últimos documentos de carácter orçamental ficam aquém do que é preciso, ou são irrealistas, e, quando criticado de forma fundamentada por isso mesmo, nega e nega e nega. Também aqui há dolo, uma prática tão enraizada neste Governo, tão dependente da "cabeça", como no ditado "o peixe apodrece pela cabeça", que depois alastra como uma gangrena pelo corpo todo. Depois há a sistemática tentativa de iludir: é o "orçamento suplementar" em vez de "rectificativo", um dos muitos exemplos da contínua manipulação das palavras para iludir os portugueses.
Teixeira dos Santos é o único governante português que parece ter consciência da situação em que o país está mergulhado, mas o excessivo compromisso com as promessas eleitorais do PS em 2009 minou-lhe a credibilidade e a capacidade. É a essas promessas, já apresentadas em plena crise mundial e nacional, a que devemos voltar sempre que queiramos perceber até que ponto José Sócrates e o PS são capazes de tudo. O ministro das Finanças co-assinou todo o programa eleitoral de 2009, um retrato quase obsceno da irresponsabilidade e do dolo político, e por isso inquinou a sua credibilidade como profissional e como político, o que o leva hoje a exercícios de agressividade política que têm nele o pior dos executantes. Foi o que aconteceu na sua intervenção na Assembleia da República, metade feita de raiva política, metade feita de desespero. Quer a raiva, quer o desespero são retratos de impotência.
José Sócrates e o bad english - A mediocridade de Sócrates quando tem que defrontar o exterior sem guião, é visível com todo o seu esplendor na conferência universitária em Columbia. É verdade que Mário Soares também falava com desenvoltura várias versões de espanhol e francês, sem ter qualquer vergonha da sua pronúncia e criatividade com as palavras. Mas era quem era, era senhor de um à-vontade que lhe vinha da autoridade da sua biografia (verdade seja que muitas vezes também de uma certa irresponsabilidade consentida), e a sua enorme capacidade de comunicação e empatia apagava o mau castelhano. Mas, nesses exercícios de comunicação, Soares nunca actuava por esperteza, por exibição, e tinha alguma coisa para dizer. Sócrates, com o seu bad english, prova material dos seus estudos de "inglês técnico", pouco mais tem que dizer do que algumas banalidades sobre as energias renováveis, que, para um público de jovens universitários americanos, não acrescentam nada. É pela vacuidade do exercício que o bad english depois brilha em toda a sua mediocridade.
José Sócrates e a fuga das responsabilidades - Eu não sei se Sócrates faz de conta que não conhece a crise em que o país está envolvido, ou acha que é bom marketing não falar dela, mas, seja por uma razão ou por outra, é absurdo que um primeiro-ministro permaneça esfíngico a fazer todos os dias uma campanha eleitoral feita de inaugurações cada vez mais pífias ou de coisas que outros fizeram e a que ele vai como o cuco ao ninho alheio. Mas, se lhe fizermos a agenda quotidiana, e este não é um problema de agora, fica a pergunta: quando é que ele está a governar, quando é que ele tem tempo para ler documentos, para estudar matérias, para discutir a sério? Suspeito que a resposta seja "quase nunca". O que Sócrates faz é propaganda eleitoral, discutir o que vem nos jornais e na televisão e conduzir um gabinete de fiéis que controlam o Governo como uma estrutura paralela e que, entre outras coisa fazem operações de desinformação, no limite da legalidade, senão para lá da legalidade.
Manuela Ferreira Leite - Até dói ver como tinha razão. Não antes do tempo, como se diz agora para justificar a cegueira dos que não a quiseram ouvir, mas no tempo certo. No tempo em que o que ela dizia podia ter poupado os portugueses não à crise, que já estava inscrita nas asneiras e no despesismo, mas ao agudizar da crise pelas sucessivas medidas erradas que o Governo Sócrates tomou e por aquelas que, ao adiar, se tornam cada vez mais gravosas.
Passos Coelho e as contínuas explicações - Um dos sinais de como a política da actual direcção do PSD é muitas vezes pouco pensada, mal elaborada e errática, é a necessidade que Passos Coelho tem de estar permanentemente a explicá-la, quando não a corrigi-la. O excesso de exposição mediática e a sucessão de entrevistas e conferências de imprensa, várias por semana, desgastam a autoridade da palavra e criam desinteresse nos portugueses. É verdade que uma parte das sondagens e barómetros é mais "apareçómetros" do que outra coisa, e por isso a sobreexposição dá resultados positivos numa fase inicial. Mas também isso se gasta.
A estratégia de Passos Coelho é-me pouco compreensível, para usar um eufemismo. Devo ser eu que não entendo, mas ainda estou para perceber em que é que aproveita uma crise política em Outubro de 2010, a oito meses da possibilidade de haver novas eleições e a, pelo menos, treze meses da possibilidade de haver um novo Orçamento, com os enormes factores de usura política que esse período longo de impasse traria para a política portuguesa. Já não falo sequer dos argumentos patrióticos, porque imagino que, para muita gente à volta de Passos Coelho, - e faço-lhe justiça de pensar que não para ele - , só contam os seus interesses e os da parte do aparelho do partido que representam. É por isso que querem colocar na agenda de um país em crise a regionalização, ou a pressa de poderem escolher uma nova leva de deputados "amigos", ir a secretários de Estado e nomear gente para os lugares que tradicionalmente pertencem aos partidos e o PS ocupa hoje.
Dias de lixo, para não usar uma expressão mais forte, porque é o que eles são. Dias em que todos sabemos o que é preciso fazer, dias em que o que é preciso fazer ganha uma urgência enorme, dias em que todos os que podiam fazer alguma coisa se obstinam em fazer exactamente o contrário do que deviam, perante a indignação, a impotência, o desespero dos cidadãos. Dias em que já nem sequer se pode falar de irresponsabilidade, mas de perversidade, de perversidade de meia dúzia de pessoas que obedece aos piores instintos da sua vaidade, aos piores interesses do seu grupo.
COISAS DA SÁBADO: O PORTUGAL DO SÉCULO XX NÃO VAI SÓ DE 1910 A 1926
Não me lembro de ver tanta concentração de esforços comemorativos numa única data, a do centenário da República. Eu sei que é uma data redonda e já venerável, mas vista à distância não é o 5 de Outubro que fecha um ciclo político, mas sim o 28 de Maio. Não estou a dizer que se comemore o 28 de Maio, mas tanto ênfase no 5 de Outubro dá a entender que houve mais “revolução” no 5 de Outubro do que a que efectivamente houve. Afastar os Braganças não foi uma revolução, embora a deslocação do poder social para a pequena burguesia republicana tenha sido uma importante transformação política. Mas sob muitos aspectos a república acentuou a decadência do liberalismo político, não reforçou. Havia mais liberdade no tempo das caricaturas de Bordalo no que no tempo das caricaturas de Stuart, Valença ou Botelho, mais liberdade nos Pontos nos Iis do que nos suplementos do Século, do Mundo ou da Batalha. Como já escrevi, o que estamos a comemorar é a visão da República que a oposição republicana e maçónica do Estado Novo tinha. Por isso convém não exagerar.
Amy Knight, How the Cold War Began: The Igor Gouzenko Affair and the Hunt for Soviet Spies, Nova Iorque, Carroll & Graf Publishers, 2006
Quando Igor Gouzenko, um funcionário secundário do NKVD da Embaixada da URSS no Canadá, que trabalhava num sector crucial, a cifra, se apresentou em 1945 à Royal Canadian Mounted Police (RCMP), abriu uma caixa de Pandora que nunca mais se fechou até hoje. Gouzenko contou a uma surpreendida RCMP que havia uma rede de espionagem que se estendia do Canadá aos EUA e ao Reino Unido, e que envolvia segredos atómicos. Os canadianos estavam particularmente pouco preparados e pouco dispostos a entrarem em conflito com o seu aliado soviético, pelo que protelaram, hesitaram e só actuaram quando já não podiam de todo ignorar o que se passava. As informações de Gouzenko chegaram ao FBI e estiveram na origem da "caça às bruxas" americana na primeira metade da década de cinquenta.
A história é interessante, mas o livro de Amy Knight não é. Knight preocupa-se mais em minimizar a relevância das revelações de Gouzenko, a questionar os seus motivos e a criticar os excessos do macarthismo, numa linha da historiografia americana centrada no polémica sobre a culpabilidade de Alger Hiss (negando-a). Essa intenção transparece demasiado no relato muito preconceituoso sobre Gouzenko. Gouzenko, como aconteceu com muitos espiões soviéticos, acabou por se tornar num desertor profissional, vivendo das suas entrevistas e da contínua promessa de novas revelações. Mas o núcleo de informações iniciais, assim como as notas e os documentos que trouxe, foram particularmente relevantes numa altura em que a dimensão e a penetração das redes soviéticas eram desconhecidas