Uma das coisas de que se deve fugir a sete pés é a tendência dos governantes para tomarem medidas grátis ou baratas quando não há dinheiro para fazer qualquer outra coisa. É infelizmente uma prática habitual nos ministérios mais apertados pelas restrições financeiras e destinam-se a mostrar que o Ministro existe mesmo, e não é um fantasma que vagueia pelas salas. Há assim duas políticas: as reais, que são os cortes, e a fictícia que são as medidas grátis e baratas. Em áreas como a cultura, a educação e a justiça, está-se cada vez mais neste terreno perigoso do fictício.
Infelizmente os resultados desta prática são conhecidos: ou se estraga o que está a funcionar bem em nome de qualquer melhoria utópica, ou acaba por se gastar muito mais dinheiro com aquilo que aparentemente se apresentava como sendo grátis ou a “custo zero” como agora se diz. Nem que seja pela instabilidade legislativa, as coisas ficam piores. E depois ficam piores porque estas medidas tendem a ser desgarradas e não coerentes e sem mudar o edifício, enfraquecem-no. De um modo geral reforça-se o intervencionismo do estado, e diminui-se a liberdade das pessoas e da economia.
Há excepções, mas esta é a regra.
The mass of men serve the state thus, not as men mainly, but as machines,
with their bodies. They are the standing army, and the militia, jailers,
constables, posse comitatus,
etc. In most cases there is no free exercise whatever of the judgment or
of the moral sense; but they put themselves on a level with wood and earth
and stones; and wooden men can perhaps be manufactured that will serve
the purpose as well. Such command no more respect than men of straw or
a lump of dirt. They have the same sort of worth only as horses and dogs.
Yet such as these even are commonly esteemed good citizens. Others, as
most legislators, politicians, lawyers, ministers, and office-holders,
serve the state chiefly with their heads; and, as they rarely make any
moral distinctions, they are as likely to serve the devil, without intending
it, as God. A very few, as heroes, patriots, martyrs, reformers in the
great sense, and men, serve the state with their consciences also,
and so necessarily resist it for the most part; and
they are commonly treated as enemies by it.
É sempre no ano seguinte. Em 2008, este era o ano de todas as dificuldades, no ano seguinte ia melhorar. Em 2009, estávamos no pico da crise, no ano seguinte ia-se partir para outra. Em 2010, tinham que ser tomadas as medidas mais duras, a partir do ano seguinte começavam-se a ver os efeitos positivos. Em 2011, era o “pior dos anos”, depois no ano seguinte começava a “recuperação”. Em 2012, atravessamos o “momento mais difícil”, mas no ano seguinte começamos a “crescer”. Tenho poucas dúvidas sobre o que nos vai ser dito em 2013.
Não admira que as pessoas odeiem o presente. É que começam a perceber que o futuro é igual ao presente, por muito que os enganem sobre ele. Estão presas no presente, como se de um pântano se tratasse. Ninguém é feliz dentro de um pântano. E pensam, no meio da atmosfera miasmática, das sanguessugas e das cobras, e do lodo, “falem-me de tudo menos do ano seguinte”. O “ano seguinte” é sempre este.
Há cem anos, que não é assim um tempo muito distante - estamos a falar, grosso modo,
dos tempos da Primeira Guerra, cujos últimos combatentes morreram na
última década - os livros da biblioteca familiar estavam numa casa
grande no Porto, perdidos que foram os palácios e vendidas que estavam a
ser as grandes quintas do Douro. Nada de especial. Depois, algumas
décadas depois, a biblioteca estava em casas cada vez mais pequenas, o
que dava a sensação de que tinha aumentado. Os livros eram mais, mas não
muitos mais, enquanto o espaço era cada vez menos.
Depois houve
uma fase de divisão, não tanto porque o núcleo central da biblioteca
fosse alguma vez dividido, escapando por milagre a heranças e a
herdeiros, mas porque uma biblioteca tem o efeito de gerar bibliófilos
ou, pelo menos, tem uma probabilidade considerável de criar um respeito
pelos livros que tendem a deixá-la mais ou menos intacta. Nada é
perfeito, não funciona sempre, mas acontece e não é por acaso.
Nesta
fase de divisão, ou mais propriamente de mitose, para usar uma imagem
da biologia, uma nova biblioteca começa a formar-se paralela à primeira,
num dos ramos da família, ou, como foi o caso, de pais para filhos. A
geração anterior mantém a biblioteca original e a nova começa também a
coleccionar livros. Depois, a morte torna de novo a unificar os livros
numa casa comum, aumentando significativamente a biblioteca. Recordo-me
de, após a morte súbita do meu avô, ir com o meu pai ao seu atelier
- era um boémio contumaz e um desenhador de mérito -, e ver a um canto
uma espécie de pirâmide que ia até ao tecto, e a sala tinha um grande
pé-direito, feita de livros empilhados, todos comprados para além da
biblioteca familiar. Juntaram-se aos que já havia, agravando o efeito
dos livros como grandes devoradores do espaço e a tendência para
ocuparem tudo o que está vazio. Se há horror ao vácuo, é nas
bibliotecas. O espaço é o seu maior desejo, quase tanto como de ter mais
livros, e o espaço é o seu mais caro investimento.
Um dos
efeitos desse devorar contínuo do espaço é que à medida que as casas iam
ficando mais pequenas, passavam para os arrumos os objectos que
decoravam a biblioteca, e é isso de que vos vou falar, mais do que dos
livros. Também porque se percebe até que ponto, e mais uma vez, como o
"passado é um país estrangeiro".
Agora que a morte mais uma vez
"unificou" a biblioteca, tive ocasião de encontrar nesses arrumos
exactamente alguns dos objectos que, quando havia mais espaço, decoravam
a sala ou as salas onde estavam os livros. Refiro-me a quadros,
esculturas e objectos de decoração relacionados com os livros e os seus
autores, e que estão a ser literalmente desenterrados do limbo a que as
casas mais pequenas da cidade os condenavam. As casas e talvez o gosto,
embora não esteja certo deste último factor, foram afastando estes
objectos da sua relação original com os livros.
Um desses
objectos é uma grande gravura de Victor Hugo, reproduzindo uma sua
imagem célebre feita pelo conde Stanislaw. Vê-se um homem idoso,
modestamente vestido, numa pose reclinada, que parece mais de cansaço do
que de pensamento, ligeiramente despenteado e com um olhar ao mesmo
tempo triste e penetrante. Esta é uma postura muito comum de Hugo,
reproduzida em muitas imagens, gravuras e quadros, quase um trademark, como a imagem do velho Tolstoi com as suas barbas brancas e o seu fato de mujique.
Estava
cheia de pó, tinha o vidro partido, mas a gravura está intacta. Pela
sua dimensão, tinha que estar numa parede grande, com um papel de
relevo, mostrando a enorme admiração que as gerações da segunda metade
do século XIX tinham pelo escritor. Em Portugal era a mesma coisa,
porque era numa casa portuguesa que o quadro estava exposto. Duvido que
hoje alguém tivesse um quadro de um escritor contemporâneo - Hugo morreu
em 1885, por isso é provável que estivesse vivo quando a sua imagem já
ornamentava a biblioteca -, na sua casa. Não vejo que um Philip Roth, um
Coetzee, um García Márquez, um Borges pudessem estar no mesmo lugar, e
mesmo para os "grandes" deste século, Joyce, Mann, Eliot, seria bem
pouco provável que ocupassem o lugar da admiração "burguesa" que
explicava o Victor Hugo no espaço íntimo de uma casa oitocentista. Mas o
autor de Os Miseráveis vai agora voltar a uma parede, limpo e restaurado, até um dia.
Depois
há bustos vários, portugueses na sua maioria, que ornamentavam as
estantes. Há um Herculano, anterior às comemorações do centenário em
1910, que produziram muitos bustos populares para as casas de
republicanos, expostos ao lado da República de barrete frígio. Herculano
mais que merece voltar a um novo lugar de honra, até pela imagem que
sempre me fascinou de o imaginar a organizar o comboio de carros de bois
a transportar os velhos livros dos mosteiros de Coimbra para o Porto.
Alexandre Herculano, escritor e bibliotecário, amador de livros e papéis
antigos, erudito, como poucos portugueses são ou foram, merece tutelar
alguma velha estante de livros antigos.
Bem perto estará Castilho
cego, outro busto comum nas bibliotecas oitocentistas, e outro autor a
cuja enorme popularidade na época sucedeu um ocaso quase total. Castilho
estava já presente na biblioteca por um edital publicitário
encaixilhado do seu Curso de Língua Latina de 1851, que ele publicitava
na terceira pessoa dizendo que o professor, ele mesmo, "tinha uma
impagável assiduidade e paciência" e "portentosa eficácia". Devo enviar
uma cópia ao Nuno Crato.
Castilho, não sendo um desconhecido e o
seu nome e a sua cegueira conhecidas mesmo num público menos literato,
em grande parte como pedagogo, devem-se contar pelos dedos das mãos, ou,
vá lá, acrescento os pés, as pessoas que lêem hoje Castilho fora da
academia. Eu sou um bom exemplo, porque, para além da Felicidade pela Agricultura,
cujo título me atraiu, das polémicas, lidas do lado anti-Castilho, de
algumas traduções dos autores clássicos, e de um outro poema numa
antologia, nada mais. E ele escreveu bastante mais.
Por fim,
escolhendo entre vários, há um prato de parede de bronze, na realidade
um relevo, com uma representação de Molière. Este recordo-me de o ter
visto sempre exposto, o que me surpreendia, porque apesar de a
biblioteca ter uma grande colecção de livros franceses do século XVIII, e
alguns do século XVII, não havia praticamente nada de Molière. O prato
chegou à parede não por escolha literária, mas pelo bronze em si, com a
efígie do autor com a sua enorme cabeleira, rodeado pelas musas Tália e
Terpsícore.
Hugo, Herculano, Castilho e Molière são boas
companhias para os livros. Podiam ser outros, mas o gosto antigo que os
escolheu - porque todas estas coisas tiveram algum dia que ser compradas
e é provável que algumas não fossem baratas - já acabou. Hugo e Molière
são autores escolares e por isso de leitura obrigatória em França.
Alguns livros de Hugo entraram profundamente no imaginário popular e por
isso ele permanece em França um autor vivo. O mesmo acontece com
Molière, cujas peças continuam a ser populares e periodicamente
representadas. Alguns dos seus tipos também se tornaram populares e do
misantropo aos "maridos confundidos", aos "cornudos" em geral, Molière
está longe de ser apenas um autor escolar. Mas em Portugal só no Liceu
Francês.
Em Portugal, Herculano e Castilho estão lá nos seus
bustos, nos seus nomes de instituições, nos seus nomes de ruas e pouco
mais. Herculano, um pouco melhor do que Castilho, mas também quase
varrido, até nas escolas, pelos textos jornalísticos e sobre o Facebook,
com que se pretende "atrair" os jovens para a literatura sem ser por
textos com valor literário e artístico. Tempos. Por isso, nesta antiga
biblioteca que me coube por sorte e por família, sem a qual seria outro,
o anacronismo tem o seu papel. Nas paredes, nas estantes e nas
leituras.
“Our country is the best country in the world. We are swimming in prosperity and our President is the best president in the world. We have larger apples and better cotton and faster and more beautiful machines. This makes us the greatest country in the world. Unemployment is a myth. Dissatisfaction is a fable. In preparatory school America is beautiful. It is the gem of the ocean and it is too bad. It is bad because people believe it all. Because they become indifferent. Because they marry and reproduce and vote and they know nothing.”
A pergunta tem todo o sentido. Durante anos foi-nos dito que a Constituição portuguesa defendia os “direitos adquiridos”, impedia o livre despedimento dos trabalhadores, protegia o trabalho, impedia os despedimentos na função pública, o corte de salários, etc., etc. Este era aliás um dos grandes argumentos contra o “sistema” que a Constituição protegia. Alberto João Jardim fez a parte mais lúcida da sua acção politica denunciando esse “sistema”.
Mas agora afinal verifica-se que tudo isto é possível com a “Constituição que temos”, como pejorativamente se dizia. Das três uma, ou a Constituição mudou sem nós sabermos, ou não era o que as sumidades do direito constitucional diziam que era, ou então não vale nada, existir ou não é a mesma coisa.
É particularmente interessante ver como o comentário sobre a nossa participação futebolística no Euro 2012 é mimético da política. Mais do que mimético, é uma projecção da política nacional sobre a equipa, o treinador, os jogos, os jogadores. A equipa é como o governo para os seus defensores, modesta, esforçada, colectiva, capaz de surpreender quando a intelligentsia do contra, não dá nada por ele(a). Está a fazer uma “revolução tranquila”.
Os que a criticam são “treinadores de bancada”, essa figura típica do ódio nacional pela dissidência e da obsessão pelo “consenso”. Representam o pior do negativismo dos portugueses, estão ressabiados e gostariam de serem eles os treinadores. Para eles deve haver repúdio e a sombra da ignomínia e da traição à pátria. Se a equipa ganhar, cada vitória é vista como uma bofetada colectiva nos “descrentes”; quando perde, ou se salta com vigor para pisar os que estão em baixo, ou se desculpa tudo, porque os outros ainda foram piores e estes são apenas suficientes. E o suficiente é a nossa normalidade, quando não somos génios.
"Who
do we Americans think we are? This is a cultural question, and it is
worth asking: many of the great issues in American public life are
ultimately cultural issues. The relation of the well-off to the poor;
the meaning and the future of race and ethnicity; the degree to and
manner in which we share responsibility for the aged, the sick, the
needy; even our mission and place among the world's nations: all these
depend on our sense of ourselves as a people -- that is, as a cultural
reality. In other words, these social issues depend on how we remember
ourselves. "
(Robert Pinsky, "poet laureate of the United States.")
Mais uma vez ouve-se o ruído da asneira e da cegueira por toda a Europa, da Comissão, aos governos, à imprensa sempre mais europeísta do que os mais europeístas, sob a forma da frase: “a Europa respira de alívio com os resultados das eleições gregas”. Como é possível que nem sequer se pare para pensar um pouco para se perceber que as coisas na Grécia, e no euro, duas realidades distintas mas comunicantes, estão pior do que o que estavam? Como sabem os prudentes sempre que se perde mais uma oportunidade de resolver os problemas estes agravam-se. E nem sequer é líquido que as eleições gregas tenham sido uma oportunidade.
Explico-me, coisa que nem valia a pena fazer, dado que bastava algum bom senso para lá chegar. O problema grego não está resolvido, porque o problema grego actual é que o programa que foi imposto à Grécia é impossível de cumprir. E como é impossível de cumprir, não será cumprido, nem pelo Syriza, nem pelo PASOK, nem pela Nova Democracia. O mal grego pode ter a ver com os gregos, mas o problema grego têm a ver com o programa da troika patrocinado pela UE, Alemanha à frente e troika atrás. A Europa não quer saber do mal grego a não ser para o punir, e tem enormes dores de cabeça com o problema grego, o que é natural porque é parte inteira dele.
As eleições gregas não deram a maioria ao Syriza, o pavor dos círculos financeiros e governamentais europeus, por boas e más razões. As boas é que o programa real do Syriza é o retorno à autarcia e ao proteccionismo, na verdade o único programa genuíno que a esquerda tem na Europa. Escave-se fundo nas propostas da esquerda europeia, dispam-se das roupagens politicamente correctas e o que fica é um erigir de fronteiras face ao dumping social chinês, para manter o que resta do “modelo social europeu”. Se não for possível fazê-lo a nível da Europa, cada país tenderá a fazê-lo por si, com as excepções daqueles que vivem exactamente da globalização e da internacionalização. A Europa proteger-se-á da competição com os produtos chineses mais baratos, feitos com mão-de-obra quase escrava, as deslocalizações serão impedidas porque os seus produtos ficarão demasiado caros ao passarem pela pauta alfandegária, os consumidores pagarão mais caro, mas os salários permanecerão altos e a regalias sociais serão mantidas pelo menos para a presente geração. É uma solução errada, que não funcionará, mas é a única que existe à esquerda para garantir o “crescimento” assente num mercado único europeu protegido.
O Syriza não ganhou, mas quase. A continuarem as coisas como estão, ganhará para a próxima, após um período de caos social e de destruição do que sobra da economia, que é o que o governo fraco da Nova Democracia mais os seus aliados vão fazer para tentar cumprir com o programa da troika. E não vão conseguir, porque não é conseguível. É verdade que pode haver algum “alívio” nas exigências europeias como um prémio à Nova Democracia, mas mesmo esse bónus é uma vitória do Syriza e só reforça as suas teses. Aliás, tudo nos resultados eleitorais é bom para o Syriza, que pode, como “principal partido de oposição”, assistir à verificação das suas teses sem assumir responsabilidades de ser governo.
Vai haver em Atenas um enorme cartaz a dizer a todos os gregos, “eu disse-vos que ia ser assim, da próxima vez não se deixem chantagear pelos alemães…” E é um cartaz eficaz, porque a realidade tem muita força.
Nenhuma
palavra traduz melhor os tempos que atravessamos do que "ajustamento".
Em vez de se dizer que se cortam salários, diz-se que se "ajustam"
salários. Em vez de se dizer que se despede, diz-se que se "ajusta" a
mão-de-obra. Em vez de se dizer que se aumentam os impostos e se cortam
despesas, diz-se que se "ajusta" o orçamento. "As empresas estão a fazer
o ajustamento", o "país precisa deste ajustamento para crescer", "a
economia está a ajustar-se", "o nosso país está a ajustar-se muito
depressa", são algumas das frases que ouvi nos últimos dias por parte de
alguns dos actuais detentores do poder.
A palavra é usada
essencialmente como um eufemismo, para dizer aquilo que não se pode
dizer, mas transporta consigo mais do que este uso instrumental
corrente. Os seus melhores cultores nos dias de hoje, os "ajustadores"
Vítor Gaspar, António Borges, Passos Coelho, por esta ordem, nem sequer
se preocupam muito em usá-la como eufemismo, embora também o façam, mas
sim como um instrumento conceptual para traduzir uma ideia sobre a
economia, a sociedade, as pessoas.
Vinda do jargão das escolas
de economia, o seu uso, como o de todas as palavras com papel central no
discurso político, tem um significado em termos ideológicos. Como antes
se dizia, não é neutra. A gente desfia-a, e com ela vem todo um
programa e todo um pensamento. Uma das vantagens das humanidades, que os
"ajustadores" naturalmente desprezam, é perceber demais o que palavras
como esta significam, para as analisar exactamente onde elas estão a ser
instrumentais: no discurso político.
Os historiadores
encontram-nas com vários disfarces, muitas vezes onde os seus
utilizadores menos contam encontrá-las, como seja na teorização marxista
da economia e da sociedade. Um sociólogo não terá dificuldades em
encontrar as suas background assumptions nunca enunciadas, e
então para um filósofo, mesmo amador, há toda uma transparência,
incómoda porque reveladora, do que está pressuposto neste discurso
político. Um dicionário, como o Houaiss, ao elencar todos os seus
significados, não deixa qualquer inocência para o seu uso neutro,
asséptico, científico, que é o que os "ajustadores" pensam que existe.
É
por isso que a sua ideologia é a da tecnocracia, e os seus mais
ilustrados mentores - os dois primeiros da lista anterior de nomes - têm
a convicção de que estão a enunciar uma verdade científica do tipo das
leis de Newton, ou uma espécie de axioma de Euclides como o "todo é
maior que as partes". Numa intervenção recente, António Borges falava
das "leis da economia" como se estivesse a falar das leis da física.
Ora, o problema é que nem há propriamente "leis da economia" unívocas,
nem estas poderiam ser alguma vez semelhantes às da física, nem as da
física são assim tão seguras, e nem sequer o "todo é maior que as
partes" se aplica em toda a matemática. As coisas são fuzzy,
cintilam demasiado e o "ajustamento" não tem certamente a dignidade
religiosa de uma espécie de verdade revelada pelo deus da economia.
A
um filósofo amador não escapa de imediato o principal grupo de
pressupostos do "ajustamento": primeiro, o de que existe um estado
"natural" da economia (da sociedade, das políticas, etc.) que foi
violado, transgredido, ignorado; segundo, que essa violação do estado
natural é perversa e provoca disfunções; e a terceira, a de que para
voltar a esse estado "natural" é preciso realizar determinadas acções,
umas e não outras. É isso que se chama "ajustamento". Já vamos em três
coisas, the plot thickens. As coisas ou estão a complicar-se ou a tornar-se mais interessantes.
O
filósofo amador continuará a dizer que no pensamento dos "ajustadores"
há vários outros pressupostos que também têm de se aceitar como
implícitos. O primeiro é que se sabe qual é esse estado "natural" e qual
a natureza dos desvios. Alguns marxistas tiveram uma discussão
semelhante quando queriam definir os "modos de produção", discutindo
qual o "feudalismo" perfeito de que todos os outros se desviavam. E a
resposta parece bizarra mas foi dada: o feudalismo perfeito estaria nos
reinos dos cruzados, em que a importação do sistema económico-político
feudal seria transposta by the book para o Krak dos Cavaleiros. Desse ponto de vista, o feudalismo francês teria de se "ajustar" ao modelo ideal da Terra Santa.
O
enredo fica ainda mais complicado, ou, se se quiser, fica no fim mais
simples. Muito bem, a economia portuguesa (a sociedade, o Estado,
Portugal, convém sempre acrescentar porque o conceito de "ajustamento"
está longe de ser meramente económico-financeiro) precisa de
"ajustamento" porque "décadas" ou "anos", conforme as versões, a tiraram
dos eixos do seu estado "natural". Mas se fizermos as perguntas certas
em breve percebemos que a resposta está longe de ter que ver com as
"leis da economia", mas com as menos conceituadas leis da política.
Há
quanto tempo é que nos "desviamos" do estado natural das coisas? Desde o
segundo engenheiro Sócrates, o que existiu nos últimos dois anos do
"socratismo"? Esta é a resposta politicamente correcta para a maioria do
Governo e para o PS anti-Sócrates. Desde Santana Lopes? Isso alguns
dizem, apoiados nesse exercício político que foi o relatório Constâncio.
Desde Guterres? A multidão dos sins já avança a sério, e, se eu fosse
da escola do "ajustamento", também começaria aqui. Desde Cavaco? Aqui
unem-se os anticavaquistas do PSD, como a actual liderança, com os
socialistas que querem meter Sócrates e Cavaco no mesmo saco, para lhe
dar uma quota parte menor de responsabilidade. Soares escapa por causa
da vinda do FMI e por ter apoiado Ernâni Lopes, mas bem vistas as coisas
não deveria escapar. Desde o 25 de Abril? Esta é a tese dos saudosistas
do dia 24, que acham que o país mais as colónias estavam em estado de
desenvolvimento pujante, que a democracia "abrilista" estourou junto com
o ouro do Banco de Portugal tão cuidadosamente guardado pelo Dr.
Salazar. Não é verdade, mas eles não querem saber.
A dificuldade
em dar esta resposta, mesmo quando há curvas estatísticas que parecem
explícitas, vem de que não é em primeiro lugar uma questão económica,
mas política, e os tecnocratas têm dificuldade em lidar com essa coisa
impura. E depois, só se pode andar para trás e para a frente nos anos e
nas décadas, abandonando o contexto que faz a história e que nos mostra
como decisões inteiramente racionais em 1980, ou em 1990, podem ser
tidas como absurdas em 2000 ou 2010. Ora nada existe num terreno
a-histórico, a não ser as ideologias que se consideram científicas.
Eu
sei a resposta dos "ajustadores" que se pode expor com alguma
rudimentar simplicidade e correspondente brutalidade. Depois pode
sofisticar-se, mas mais vale começar pelo curto, simples e bruto. Essa
resposta é que não se deve gastar mais do que o que se ganha, receitas e
despesas devem corresponder e é isso que está grosso modo no pacto financeiro da sra. Merkel para voltar com o azorrague alemão ao "estado natural" de que nos desviamos, o défice zero.
Eu
não diminuo o valor moral de não se gastar mais do que o que se ganha,
mas não o transformo numa descrição do "estado natural" da economia. É
bom princípio, mas não chega. Há dez anos era racional pagar um
empréstimo da casa, em vez de um aluguer. Hoje não é, mas isso não torna
irracional e irresponsável a decisão do passado. Os "ajustadores" hoje
dirão que é "natural" que percam a casa, o emprego, o salário, porque
isso é que é a "verdade" da economia, o preço da restituição pelo
"ajustamento" à "verdade" de que a economia se desviou pela perversidade
da política. Mas algum economista "ajustador" lhes disse há dez anos
para não comprarem casa própria, para não se endividarem, porque iam
perder o emprego na década de 2010? Nenhum, nem Medina Carreira.
Na
verdade, a única economia que conta é a "economia política", que é
aliás a de Adam Smith, Marx, Schumpeter, Keynes, Friedman, e tantos
outros. E se há coisas que eles sabiam é que se existisse esse "estado
natural" perfeito não haveria economia, e que há "ruído" nas sociedades
humanas, e os economistas que não o ouvem são maus políticos. Não há
"leis da economia", como não há "leis da sociedade", há pessoas,
interesses, grupos, ideias, diferentes escolas e diferentes soluções,
diferentes tempos e diferentes modos. Eu não sou relativista porque não
penso que valha tudo o mesmo, e porque nós podemos escolher. Em
democracia esta escolha faz-se pelo voto, e não se vota em teorias sobre
as "leis da economia", nem em experiências de laboratório. Felizmente, o
voto ainda não está "ajustado", apesar de alguns esforços europeus.
Felizmente, a opinião ainda não está "ajustada", apesar de alguns
esforços portugueses.
Como a Líbia, mais uma história muito mal contada pelos media. O modelo é o mesmo. Kadafi versus democratas de Bengasi, apoiados pela OTAN, tem agora um espelho em Bashar al-Assad assassino, apoiado pela Rússia, versus os manifestantes que querem uma Primavera síria. É uma história eficaz para encontrar bons e maus, logo é boa para a propaganda e a arregimentação moral. Mas é péssima para se perceber o que se passa.
Como os jornalistas não revisitam os lugares das suas “histórias” quando estas perdem a novidade, como se passa no Egipto ou na Líbia, não têm que se defrontar com explicações um pouco mais exigentes sobre o que escreveram, e em particular, o que omitiram. Assim é fácil.
A UE não precisa de ir mais longe para encontrar autocracias em acto e em processo, com violação sistemática dos direitos humanos e das regras da democracia, bem perto de si. Basta ir às suas fronteiras de Leste, a Belarus, à Ucrânia e à Federação Russa, para encontrar perseguição de opositores, limitações à liberdade individual e de partidos políticos, repressão, corrupção generalizada e uso do estado para o enriquecimento das elites do poder e para monopolizar os meios de controlo de toda a sociedade, seja com a polícia, as forças armadas, passando pela economia e pelos media. O caso da Federação Russa é o mais grave de todos, porque se passa numa grande potência mundial com uma organização imperial e uma política externa que tende pouco a pouco a ser um remake da dos comunistas, e, como a destes, reproduz a organização do czarismo. A eleição de Putin, que se eterniza no poder, passando de Presidente a Primeiro-ministro e vice-versa, que age com mão de ferro quer para controlar o processo eleitoral, quer para perseguir todos os que se lhe opõe, vai agravar significativamente a situação, até porque está a surgir uma nova oposição nas ruas, numerosa, decidida e corajosa.
Não é preciso ser especialmente bom observador para ir mais além do “a coligação funciona bem” do discurso oficial. Sim, é verdade que a coligação funciona bem porque os dois partidos têm o pescoço metido numa guilhotina comum e não podia deixar de ser de outra maneira. Caindo a lâmina, corta os dois pescoços, embora corpos sem cabeça abundem por aí a mexer-se como se a tivessem. Mas convenhamos que é uma parte importante do corpo, e ninguém gosta de ter que a transportar debaixo do braço. As necessidades de auto-preservação do PSD e do CDS, o mais poderoso sentimento colectivo dos partidos, exigem esse bom entendimento. Por aí não há novidades.
No entanto, o modus operandi e o modus vivendi da coligação actual não é o mesmo da anterior coligação realizada por Durão Barroso em 2002. Nessa altura, a coligação fez-se após resultados eleitorais inesperados – Barroso estava convencido de que teria maioria absoluta – e resultou de uma imposição forçada desde o primeiro minuto da noite eleitoral por um CDS que quis criar um facto consumado. E um PSD que pretendia explorar outros caminhos mais minimalistas como por exemplo, um acordo parlamentar, cedeu por pressão de dirigentes mais à direita que de imediato aceitaram a política de facto consumado do CDS. Talvez por ter forçado a mão, o CDS precisava de se comportar exemplarmente e foi o que fez até aos últimos dias, já com Santana Lopes. Aí deu sinais bastantes de desconforto, para ajudar Jorge Sampaio na sua decisão.
Mas esta coligação à volta de Durão Barroso colocou o CDS militantemente ao lado do PSD, usando todos os pretextos para mostrar que não hesitava um segundo em “ser parte” inteira e sem hesitações de um governo cujas responsabilidades assumiu por inteiro. Exactamente porque todos esperavam “problemas”, o CDS não tinha margem para provocar nenhum. A viragem à direita do PSD, que então se acentuou, favoreceu o entendimento, tornando mais fácil ao CDS a “lealdade” à coligação. O CDS por seu lado “virou” na questão europeia, mudando de 180º a sua posição. Até Santana Lopes, a coligação não podia ser mais perfeita.
Hoje não é assim. Há coligação, “funciona bem”, mas é mais nítido que o governo se divide em duas áreas de actuação, o CDS numa, o PSD noutra, e cada um tenta mostrar o que vale em cada uma. Disse cada um, mas é mais o CDS que não abdica de aparecer como CDS na coligação, mostrando uma distância real com o destino comum. Em 2002, o destino comum era mesmo comum, hoje o destino comum é deixado para o PSD, que assumirá culpas em tudo o que não resultar, em particular na economia. Tal é facilitado pelas pastas governativas do CDS.
Enquanto em 2002, a viragem à direita do PSD facilitou o entendimento, em 2011, o CDS está bastante mais à esquerda do PSD, e deixa-o claramente sozinho no seu profetismo salvífico assente num rudimentar liberalismo económico e muito desconhecimento do país. Existe coligação como em 2002, mas o CDS permanece o CDS, marca o seu terreno. Talvez acabe por não valer nada, porque as paradas são muito altas, mas que o CDS tenta passar pelos pingos da chuva, tenta.
"Tudo é simples na guerra, mas mesmo as mais simples das coisas são difíceis. Estas dificuldades acumulam-se criando uma fricção que nenhum homem que não conheceu a guerra pode imaginar."
Just like as in a nest of boxes round,
Degrees of sizes in each box are found:
So, in this world, may many others be
Thinner and less, and less still by degree:
Although they are not subject to our sense,
A world may be no bigger than two-pence.
Nature is curious, and such works may shape,
Which our dull senses easily escape:
For creatures, small as atoms, may there be,
If every one a creature’s figure bear.
If atoms four, a world can make, then see
What several worlds might in an ear-ring be:
For, millions of those atoms may be in
The head of one small, little, single pin.
And if thus small, then ladies may well wear
A world of worlds, as pendents in each ear.
A questão do situacionismo não é de conspiração, é de respiração.
E, nalguns casos, de respiração assistida.
O Prós e Contras da RTP tornou-se há muito tempo o paradigma do nome desta série: situacionismo. Foi, nos últimos tempos do "socratismo", a voz do regime; é a mesma voz do regime no ano de "passismo". É isso que é a RTP, a voz do dono.
Começa sempre, no elemento mais importante num programa como este, na escolha das pessoas a quem se dá o podium. Sempre que se trata de um tema no âmago do poder, o poder está representado pelos seus melhores defensores, a crítica ao poder por moderadíssimos e débeis representantes, com críticas secundárias e circunstanciais, e isto é nos melhores dias. Em muitos casos, o programa é Prós e Prós.
O programa de hoje é um exemplo perfeito, onde, sem contraditório, se ouviu uma série de porta-vozes da política actual, de António Borges a António Vitorino. Sim, de António Borges, a quem não foi perguntado nada de incómodo, a António Vitorino que representa uma das vozes "responsáveis" do PS que em todos os momentos cobre sempre o governo em funções. Há cinco, quatro, três, dois anos, ou seja, em termos históricos, HOJE, exactamente com a mesma voz grave e responsável, António Borges defendia a política suicidária do sistema financeiro que conduziu ao desastre cujos custos todos pagamos, e Vitorino não dizia nada de incómodo para Sócrates, a quem deu a caução completa e total. Hoje, estão a fazer o mesmo como ideólogos e parte activa do actual governo, e se as coisas não correrem como dizem que vão correr, haverá sempre um álibi europeu para os justificar.
Eles estão lá sempre, e no entanto, nunca lá estão. Não é por acaso que este tipo de vozes é a preferida do Prós e Contras.
Eu
já vejo com muitas reservas esta obsessão dos dias de hoje de atribuir
estados de alma a toda a gente para explicar tudo e mais alguma coisa, e
por isso sou avesso, por maioria de razão, a embarcar na ideia que o
mesmo se possa fazer aos povos. Isso a propósito da "paciência" do povo
português celebrada pelo primeiro-ministro como virtude ímpar numa
Europa turbulenta.
Claro que se podem dizer muitas coisas sobre o
"povo português": que está "zangado" com a crise, que está "furioso"
com os políticos, que está "deprimido" com o empobrecimento forçado, que
está "descrente" da democracia, que está "prostrado" pela inacção, que
tem uma infinita "paciência". Há, no entanto, várias coisas que ninguém
tem coragem de dizer e o problema dos excessos de psicologia
impressionista começam aqui. Ninguém tem a coragem de dizer que o povo
português está "contente" com o "ajustamento", que fica "feliz" porque
passou a ter, como lhe dizem os governantes, que viver com os seus
parcos recursos, e não pode viver mais do crédito (um parêntesis para
dizer que um dos absurdos da actual situação que parece escapar a muitos
é que todo este "ajustamento" se está a fazer "para o país voltar aos
mercados", ou seja, para pedir mais dinheiro emprestado...), que está
"consciente" de que o futuro do seu país é risonho após o termo desta
"revolução dos costumes", que "compreende" que tem que sofrer para
depois renascer como a Fénix.
Em vez da psicologia e dos estados
de alma, prefiro a política. É por isso que a frase da "paciência" tem
um duplo significado político: é um desejo, de que os portugueses se
portem bem; e é uma ideia sobre o "estado" em que estão e também sobre o
que são. É uma ideia sobre os portugueses. A primeira coisa é um
desejo, que todos podem ter; a segunda, é uma ilusória ideia de que
existe uma qualquer virtude essencial nos portugueses que consiste em
"comerem e calarem". Ora isto é uma asneira monumental sob todos os
pontos de vista, seja o do puro bom senso, seja histórico, seja
sociológico, seja até, admirem-se, psicológico e psiquiátrico.
Masoquistas, só às vezes e é pelo prazer, não é pelo chicote.
A
comparação que fez D. Januário Torgal entre Passos e Salazar levou ao
paroxismo a interpretação da frase da "paciência". Ora, se entendida
como sendo uma comparação entre Passos Coelho e Salazar, como pessoas e
políticos, não tem nenhuma razão de ser. Passos é um político
democrático, a quem de certeza são completamente alheias as ideias
conservadoras e antidemocráticas de Salazar e a quem não move qualquer
impulso autoritário. Pode ser indiferente, como muitas pessoas da sua
geração, perante os valores da liberdade que receberam já adquiridos, e
que sempre conheceram como naturais, mas isso não o faz um ditador em
potência.
O problema é outro, é que muitas ideias do nosso salazarismo de background
impregnam muito mais do que se pensa o discurso público vulgar, aquele
que não é muito elaborado e se desenvolve por aquilo que pensam ser
evidências, sobre as quais nunca pensaram. Passos Coelho não é um caso
especial, mas como é primeiro-ministro fica mais exposto. É o problema,
também geracional, de uma formação política muito superficial, assente
pouco mais do que leituras de jornais e em discursos estandardizados
sobre Portugal e os portugueses. Esses discursos repetem, sem
autoconsciência, como lugares-comuns, aquilo que no salazarismo era um
pensamento contra, um ataque ao liberalismo político em nome de uma
organicidade substancial do "povo português", que correspondia à visão
rural e paroquial das virtudes dos portugueses.
Por isso, a frase
polémica de D. Januário, se entendida como uma comparação entre a ideia
de povo que tinha Salazar e que tem Passos Coelho, tem alguma razão de
ser. Não tem toda, mas tem alguma. A principal razão que diferencia
Salazar e Passos Coelho nessa apreciação comum da "bondade" do povo
português é que Salazar a fazia com óbvio cinismo. Salazar pensava, como
um típico produto da nossa ruralidade ancestral, com "manha", a forma
do cinismo dos camponeses. Por isso, Salazar entendia que esse eventual
estado natural de bondade do "povo português" não era assim tão forte
que não precisasse de ser "protegido" pela polícia política e pela
censura da contaminação vil da "política". Os portugueses eram bons,
trabalhadores, aceitavam a pobreza virtuosa, assim como os bois no poema
de Afonso Lopes Vieira, em que se pode tirar os "bois" e pôr os
portugueses que dá o mesmo:
Os bois! Fortes e mansos, os boizinhos,
- leões com corações de passarinhos!
Os bois! Os grandes bois, esses gigantes,
tão amigos, tão úteis, tão possantes!
(...)
Mas vede os bois, também, nessa alegria
de trabalhar na terra à luz do dia!
Vede os bois a puxar ao arado, agora
que o lavrador conduz pelo campo fora!
Eis um canto de amor no ar se espalha:
- é a terra a cantar por quem trabalha!
(...)
Sem a sua força, sem a sua dor,
não estava rindo a terra toda em flor!...
Ora
estes bois, fortes e poderosos, "leões com corações de passarinhos",
são uma imagem do mesmo tipo de "paciência" que é suposto ter o bom povo
português.
Há outras coisas a dizer sobre esta "paciência".
Presumo que se afirma que o nosso povo está "paciente" porque não anda
aí na rua a partir tudo, como se diz que os gregos fazem. De facto não
anda, nem o povo português, nem o povo grego. Contrariamente às
aparências que são dadas pela selecção de imagens que passam na
televisão das ruas e praça fronteiras ao Parlamento grego, também seria
injusto, e certamente errado, dizer que é o "povo grego" que anda ali a
atirar cocktails Molotov à polícia. Claro que os gregos estão tudo menos "pacientes" com a troika
e os alemães, mas a violência que transpira da Grécia é devida a uma
mais forte implantação de grupos extremistas na vida política grega, à
direita e à esquerda, que estava já lá antes da crise e veio ao de cima
com a radicalização da situação. E se é por aqui que se diz dos
portugueses que são "pacientes", então é só esperar algum tempo para
deixar amadurecer os nossos grupos copycat que já estão aí em formação, a treinar-se e a ganhar coragem.
Por
detrás deles, ou melhor, ao lado, os portugueses e os gregos não são
muito diferentes. A maioria sofre calada e resignada, em particular
quando parece não haver alternativas, mas isso não é "paciência", é
realismo e bom senso. E é também muita fúria. Mas pensar que são como os
bois de Afonso Lopes Vieira, "tão amigos, tão úteis, tão possantes", é
uma ilusão de que se sai depressa.
Respeitar os portugueses não
consiste em falar-lhes com uma mistura de complacência e paternalismo,
mas estar ao lado deles com simpatia activa nas suas tribulações. Há
poucas coisas mais comunicáveis do que a empatia, seja simpatia seja
antipatia. Para ser entendida por todos não precisa de assessores, nem
de agências de comunicação. Precisa apenas de existir. E o problema
maior de "comunicação" deste governo é que preso nas suas ideias gerais e
vagas sobre o país, preso nas suas ilusões sobre meia dúzia de receitas
económicas, preso num profetismo adolescente, entre a fraca convicção e
os lugares-comuns, que soçobrará a qualquer momento na parede dos
factos, não consegue mostrar um grama de empatia sobre o sofrimento que
assim se torna "dos outros".
É por isso que chamar "paciente" ao
povo português parece mais um insulto do que um elogio. Duvido aliás
que haja um único boi que não pense o mesmo do poema de Afonso Lopes
Vieira.