ABRUPTO

18.6.12


AJUSTAMENTO


Nenhuma palavra traduz melhor os tempos que atravessamos do que "ajustamento". Em vez de se dizer que se cortam salários, diz-se que se "ajustam" salários. Em vez de se dizer que se despede, diz-se que se "ajusta" a mão-de-obra. Em vez de se dizer que se aumentam os impostos e se cortam despesas, diz-se que se "ajusta" o orçamento. "As empresas estão a fazer o ajustamento", o "país precisa deste ajustamento para crescer", "a economia está a ajustar-se", "o nosso país está a ajustar-se muito depressa", são algumas das frases que ouvi nos últimos dias por parte de alguns dos actuais detentores do poder.

A palavra é usada essencialmente como um eufemismo, para dizer aquilo que não se pode dizer, mas transporta consigo mais do que este uso instrumental corrente. Os seus melhores cultores nos dias de hoje, os "ajustadores" Vítor Gaspar, António Borges, Passos Coelho, por esta ordem, nem sequer se preocupam muito em usá-la como eufemismo, embora também o façam, mas sim como um instrumento conceptual para traduzir uma ideia sobre a economia, a sociedade, as pessoas.

Vinda do jargão das escolas de economia, o seu uso, como o de todas as palavras com papel central no discurso político, tem um significado em termos ideológicos. Como antes se dizia, não é neutra. A gente desfia-a, e com ela vem todo um programa e todo um pensamento. Uma das vantagens das humanidades, que os "ajustadores" naturalmente desprezam, é perceber demais o que palavras como esta significam, para as analisar exactamente onde elas estão a ser instrumentais: no discurso político.


Os historiadores encontram-nas com vários disfarces, muitas vezes onde os seus utilizadores menos contam encontrá-las, como seja na teorização marxista da economia e da sociedade. Um sociólogo não terá dificuldades em encontrar as suas background assumptions nunca enunciadas, e então para um filósofo, mesmo amador, há toda uma transparência, incómoda porque reveladora, do que está pressuposto neste discurso político. Um dicionário, como o Houaiss, ao elencar todos os seus significados, não deixa qualquer inocência para o seu uso neutro, asséptico, científico, que é o que os "ajustadores" pensam que existe.

É por isso que a sua ideologia é a da tecnocracia, e os seus mais ilustrados mentores - os dois primeiros da lista anterior de nomes - têm a convicção de que estão a enunciar uma verdade científica do tipo das leis de Newton, ou uma espécie de axioma de Euclides como o "todo é maior que as partes". Numa intervenção recente, António Borges falava das "leis da economia" como se estivesse a falar das leis da física. Ora, o problema é que nem há propriamente "leis da economia" unívocas, nem estas poderiam ser alguma vez semelhantes às da física, nem as da física são assim tão seguras, e nem sequer o "todo é maior que as partes" se aplica em toda a matemática. As coisas são fuzzy, cintilam demasiado e o "ajustamento" não tem certamente a dignidade religiosa de uma espécie de verdade revelada pelo deus da economia.


A um filósofo amador não escapa de imediato o principal grupo de pressupostos do "ajustamento": primeiro, o de que existe um estado "natural" da economia (da sociedade, das políticas, etc.) que foi violado, transgredido, ignorado; segundo, que essa violação do estado natural é perversa e provoca disfunções; e a terceira, a de que para voltar a esse estado "natural" é preciso realizar determinadas acções, umas e não outras. É isso que se chama "ajustamento". Já vamos em três coisas, the plot thickens. As coisas ou estão a complicar-se ou a tornar-se mais interessantes.

O filósofo amador continuará a dizer que no pensamento dos "ajustadores" há vários outros pressupostos que também têm de se aceitar como implícitos. O primeiro é que se sabe qual é esse estado "natural" e qual a natureza dos desvios. Alguns marxistas tiveram uma discussão semelhante quando queriam definir os "modos de produção", discutindo qual o "feudalismo" perfeito de que todos os outros se desviavam. E a resposta parece bizarra mas foi dada: o feudalismo perfeito estaria nos reinos dos cruzados, em que a importação do sistema económico-político feudal seria transposta by the book para o Krak dos Cavaleiros. Desse ponto de vista, o feudalismo francês teria de se "ajustar" ao modelo ideal da Terra Santa.

O enredo fica ainda mais complicado, ou, se se quiser, fica no fim mais simples. Muito bem, a economia portuguesa (a sociedade, o Estado, Portugal, convém sempre acrescentar porque o conceito de "ajustamento" está longe de ser meramente económico-financeiro) precisa de "ajustamento" porque "décadas" ou "anos", conforme as versões, a tiraram dos eixos do seu estado "natural". Mas se fizermos as perguntas certas em breve percebemos que a resposta está longe de ter que ver com as "leis da economia", mas com as menos conceituadas leis da política. 


Há quanto tempo é que nos "desviamos" do estado natural das coisas? Desde o segundo engenheiro Sócrates, o que existiu nos últimos dois anos do "socratismo"? Esta é a resposta politicamente correcta para a maioria do Governo e para o PS anti-Sócrates. Desde Santana Lopes? Isso alguns dizem, apoiados nesse exercício político que foi o relatório Constâncio. Desde Guterres? A multidão dos sins já avança a sério, e, se eu fosse da escola do "ajustamento", também começaria aqui. Desde Cavaco? Aqui unem-se os anticavaquistas do PSD, como a actual liderança, com os socialistas que querem meter Sócrates e Cavaco no mesmo saco, para lhe dar uma quota parte menor de responsabilidade. Soares escapa por causa da vinda do FMI e por ter apoiado Ernâni Lopes, mas bem vistas as coisas não deveria escapar. Desde o 25 de Abril? Esta é a tese dos saudosistas do dia 24, que acham que o país mais as colónias estavam em estado de desenvolvimento pujante, que a democracia "abrilista" estourou junto com o ouro do Banco de Portugal tão cuidadosamente guardado pelo Dr. Salazar. Não é verdade, mas eles não querem saber.

A dificuldade em dar esta resposta, mesmo quando há curvas estatísticas que parecem explícitas, vem de que não é em primeiro lugar uma questão económica, mas política, e os tecnocratas têm dificuldade em lidar com essa coisa impura. E depois, só se pode andar para trás e para a frente nos anos e nas décadas, abandonando o contexto que faz a história e que nos mostra como decisões inteiramente racionais em 1980, ou em 1990, podem ser tidas como absurdas em 2000 ou 2010. Ora nada existe num terreno a-histórico, a não ser as ideologias que se consideram científicas.

Eu sei a resposta dos "ajustadores" que se pode expor com alguma rudimentar simplicidade e correspondente brutalidade. Depois pode sofisticar-se, mas mais vale começar pelo curto, simples e bruto. Essa resposta é que não se deve gastar mais do que o que se ganha, receitas e despesas devem corresponder e é isso que está grosso modo no pacto financeiro da sra. Merkel para voltar com o azorrague alemão ao "estado natural" de que nos desviamos, o défice zero. 


Eu não diminuo o valor moral de não se gastar mais do que o que se ganha, mas não o transformo numa descrição do "estado natural" da economia. É bom princípio, mas não chega. Há dez anos era racional pagar um empréstimo da casa, em vez de um aluguer. Hoje não é, mas isso não torna irracional e irresponsável a decisão do passado. Os "ajustadores" hoje dirão que é "natural" que percam a casa, o emprego, o salário, porque isso é que é a "verdade" da economia, o preço da restituição pelo "ajustamento" à "verdade" de que a economia se desviou pela perversidade da política. Mas algum economista "ajustador" lhes disse há dez anos para não comprarem casa própria, para não se endividarem, porque iam perder o emprego na década de 2010? Nenhum, nem Medina Carreira.

Na verdade, a única economia que conta é a "economia política", que é aliás a de Adam Smith, Marx, Schumpeter, Keynes, Friedman, e tantos outros. E se há coisas que eles sabiam é que se existisse esse "estado natural" perfeito não haveria economia, e que há "ruído" nas sociedades humanas, e os economistas que não o ouvem são maus políticos. Não há "leis da economia", como não há "leis da sociedade", há pessoas, interesses, grupos, ideias, diferentes escolas e diferentes soluções, diferentes tempos e diferentes modos. Eu não sou relativista porque não penso que valha tudo o mesmo, e porque nós podemos escolher. Em democracia esta escolha faz-se pelo voto, e não se vota em teorias sobre as "leis da economia", nem em experiências de laboratório. Felizmente, o voto ainda não está "ajustado", apesar de alguns esforços europeus. Felizmente, a opinião ainda não está "ajustada", apesar de alguns esforços portugueses.

(Versão do Público de 16 de Junho de 2012.)

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© José Pacheco Pereira
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