Nenhuma
palavra traduz melhor os tempos que atravessamos do que "ajustamento".
Em vez de se dizer que se cortam salários, diz-se que se "ajustam"
salários. Em vez de se dizer que se despede, diz-se que se "ajusta" a
mão-de-obra. Em vez de se dizer que se aumentam os impostos e se cortam
despesas, diz-se que se "ajusta" o orçamento. "As empresas estão a fazer
o ajustamento", o "país precisa deste ajustamento para crescer", "a
economia está a ajustar-se", "o nosso país está a ajustar-se muito
depressa", são algumas das frases que ouvi nos últimos dias por parte de
alguns dos actuais detentores do poder.
A palavra é usada
essencialmente como um eufemismo, para dizer aquilo que não se pode
dizer, mas transporta consigo mais do que este uso instrumental
corrente. Os seus melhores cultores nos dias de hoje, os "ajustadores"
Vítor Gaspar, António Borges, Passos Coelho, por esta ordem, nem sequer
se preocupam muito em usá-la como eufemismo, embora também o façam, mas
sim como um instrumento conceptual para traduzir uma ideia sobre a
economia, a sociedade, as pessoas.
Vinda do jargão das escolas
de economia, o seu uso, como o de todas as palavras com papel central no
discurso político, tem um significado em termos ideológicos. Como antes
se dizia, não é neutra. A gente desfia-a, e com ela vem todo um
programa e todo um pensamento. Uma das vantagens das humanidades, que os
"ajustadores" naturalmente desprezam, é perceber demais o que palavras
como esta significam, para as analisar exactamente onde elas estão a ser
instrumentais: no discurso político.
Os historiadores
encontram-nas com vários disfarces, muitas vezes onde os seus
utilizadores menos contam encontrá-las, como seja na teorização marxista
da economia e da sociedade. Um sociólogo não terá dificuldades em
encontrar as suas background assumptions nunca enunciadas, e
então para um filósofo, mesmo amador, há toda uma transparência,
incómoda porque reveladora, do que está pressuposto neste discurso
político. Um dicionário, como o Houaiss, ao elencar todos os seus
significados, não deixa qualquer inocência para o seu uso neutro,
asséptico, científico, que é o que os "ajustadores" pensam que existe.
É
por isso que a sua ideologia é a da tecnocracia, e os seus mais
ilustrados mentores - os dois primeiros da lista anterior de nomes - têm
a convicção de que estão a enunciar uma verdade científica do tipo das
leis de Newton, ou uma espécie de axioma de Euclides como o "todo é
maior que as partes". Numa intervenção recente, António Borges falava
das "leis da economia" como se estivesse a falar das leis da física.
Ora, o problema é que nem há propriamente "leis da economia" unívocas,
nem estas poderiam ser alguma vez semelhantes às da física, nem as da
física são assim tão seguras, e nem sequer o "todo é maior que as
partes" se aplica em toda a matemática. As coisas são fuzzy,
cintilam demasiado e o "ajustamento" não tem certamente a dignidade
religiosa de uma espécie de verdade revelada pelo deus da economia.
A
um filósofo amador não escapa de imediato o principal grupo de
pressupostos do "ajustamento": primeiro, o de que existe um estado
"natural" da economia (da sociedade, das políticas, etc.) que foi
violado, transgredido, ignorado; segundo, que essa violação do estado
natural é perversa e provoca disfunções; e a terceira, a de que para
voltar a esse estado "natural" é preciso realizar determinadas acções,
umas e não outras. É isso que se chama "ajustamento". Já vamos em três
coisas, the plot thickens. As coisas ou estão a complicar-se ou a tornar-se mais interessantes.
O
filósofo amador continuará a dizer que no pensamento dos "ajustadores"
há vários outros pressupostos que também têm de se aceitar como
implícitos. O primeiro é que se sabe qual é esse estado "natural" e qual
a natureza dos desvios. Alguns marxistas tiveram uma discussão
semelhante quando queriam definir os "modos de produção", discutindo
qual o "feudalismo" perfeito de que todos os outros se desviavam. E a
resposta parece bizarra mas foi dada: o feudalismo perfeito estaria nos
reinos dos cruzados, em que a importação do sistema económico-político
feudal seria transposta by the book para o Krak dos Cavaleiros. Desse ponto de vista, o feudalismo francês teria de se "ajustar" ao modelo ideal da Terra Santa.
O
enredo fica ainda mais complicado, ou, se se quiser, fica no fim mais
simples. Muito bem, a economia portuguesa (a sociedade, o Estado,
Portugal, convém sempre acrescentar porque o conceito de "ajustamento"
está longe de ser meramente económico-financeiro) precisa de
"ajustamento" porque "décadas" ou "anos", conforme as versões, a tiraram
dos eixos do seu estado "natural". Mas se fizermos as perguntas certas
em breve percebemos que a resposta está longe de ter que ver com as
"leis da economia", mas com as menos conceituadas leis da política.
Há
quanto tempo é que nos "desviamos" do estado natural das coisas? Desde o
segundo engenheiro Sócrates, o que existiu nos últimos dois anos do
"socratismo"? Esta é a resposta politicamente correcta para a maioria do
Governo e para o PS anti-Sócrates. Desde Santana Lopes? Isso alguns
dizem, apoiados nesse exercício político que foi o relatório Constâncio.
Desde Guterres? A multidão dos sins já avança a sério, e, se eu fosse
da escola do "ajustamento", também começaria aqui. Desde Cavaco? Aqui
unem-se os anticavaquistas do PSD, como a actual liderança, com os
socialistas que querem meter Sócrates e Cavaco no mesmo saco, para lhe
dar uma quota parte menor de responsabilidade. Soares escapa por causa
da vinda do FMI e por ter apoiado Ernâni Lopes, mas bem vistas as coisas
não deveria escapar. Desde o 25 de Abril? Esta é a tese dos saudosistas
do dia 24, que acham que o país mais as colónias estavam em estado de
desenvolvimento pujante, que a democracia "abrilista" estourou junto com
o ouro do Banco de Portugal tão cuidadosamente guardado pelo Dr.
Salazar. Não é verdade, mas eles não querem saber.
A dificuldade
em dar esta resposta, mesmo quando há curvas estatísticas que parecem
explícitas, vem de que não é em primeiro lugar uma questão económica,
mas política, e os tecnocratas têm dificuldade em lidar com essa coisa
impura. E depois, só se pode andar para trás e para a frente nos anos e
nas décadas, abandonando o contexto que faz a história e que nos mostra
como decisões inteiramente racionais em 1980, ou em 1990, podem ser
tidas como absurdas em 2000 ou 2010. Ora nada existe num terreno
a-histórico, a não ser as ideologias que se consideram científicas.
Eu
sei a resposta dos "ajustadores" que se pode expor com alguma
rudimentar simplicidade e correspondente brutalidade. Depois pode
sofisticar-se, mas mais vale começar pelo curto, simples e bruto. Essa
resposta é que não se deve gastar mais do que o que se ganha, receitas e
despesas devem corresponder e é isso que está grosso modo no pacto financeiro da sra. Merkel para voltar com o azorrague alemão ao "estado natural" de que nos desviamos, o défice zero.
Eu
não diminuo o valor moral de não se gastar mais do que o que se ganha,
mas não o transformo numa descrição do "estado natural" da economia. É
bom princípio, mas não chega. Há dez anos era racional pagar um
empréstimo da casa, em vez de um aluguer. Hoje não é, mas isso não torna
irracional e irresponsável a decisão do passado. Os "ajustadores" hoje
dirão que é "natural" que percam a casa, o emprego, o salário, porque
isso é que é a "verdade" da economia, o preço da restituição pelo
"ajustamento" à "verdade" de que a economia se desviou pela perversidade
da política. Mas algum economista "ajustador" lhes disse há dez anos
para não comprarem casa própria, para não se endividarem, porque iam
perder o emprego na década de 2010? Nenhum, nem Medina Carreira.
Na
verdade, a única economia que conta é a "economia política", que é
aliás a de Adam Smith, Marx, Schumpeter, Keynes, Friedman, e tantos
outros. E se há coisas que eles sabiam é que se existisse esse "estado
natural" perfeito não haveria economia, e que há "ruído" nas sociedades
humanas, e os economistas que não o ouvem são maus políticos. Não há
"leis da economia", como não há "leis da sociedade", há pessoas,
interesses, grupos, ideias, diferentes escolas e diferentes soluções,
diferentes tempos e diferentes modos. Eu não sou relativista porque não
penso que valha tudo o mesmo, e porque nós podemos escolher. Em
democracia esta escolha faz-se pelo voto, e não se vota em teorias sobre
as "leis da economia", nem em experiências de laboratório. Felizmente, o
voto ainda não está "ajustado", apesar de alguns esforços europeus.
Felizmente, a opinião ainda não está "ajustada", apesar de alguns
esforços portugueses.