ABRUPTO

26.6.12


ANACRONISMO


Há cem anos, que não é assim um tempo muito distante - estamos a falar, grosso modo, dos tempos da Primeira Guerra, cujos últimos combatentes morreram na última década - os livros da biblioteca familiar estavam numa casa grande no Porto, perdidos que foram os palácios e vendidas que estavam a ser as grandes quintas do Douro. Nada de especial. Depois, algumas décadas depois, a biblioteca estava em casas cada vez mais pequenas, o que dava a sensação de que tinha aumentado. Os livros eram mais, mas não muitos mais, enquanto o espaço era cada vez menos.

Depois houve uma fase de divisão, não tanto porque o núcleo central da biblioteca fosse alguma vez dividido, escapando por milagre a heranças e a herdeiros, mas porque uma biblioteca tem o efeito de gerar bibliófilos ou, pelo menos, tem uma probabilidade considerável de criar um respeito pelos livros que tendem a deixá-la mais ou menos intacta. Nada é perfeito, não funciona sempre, mas acontece e não é por acaso.

Nesta fase de divisão, ou mais propriamente de mitose, para usar uma imagem da biologia, uma nova biblioteca começa a formar-se paralela à primeira, num dos ramos da família, ou, como foi o caso, de pais para filhos. A geração anterior mantém a biblioteca original e a nova começa também a coleccionar livros. Depois, a morte torna de novo a unificar os livros numa casa comum, aumentando significativamente a biblioteca. Recordo-me de, após a morte súbita do meu avô, ir com o meu pai ao seu atelier - era um boémio contumaz e um desenhador de mérito -, e ver a um canto uma espécie de pirâmide que ia até ao tecto, e a sala tinha um grande pé-direito, feita de livros empilhados, todos comprados para além da biblioteca familiar. Juntaram-se aos que já havia, agravando o efeito dos livros como grandes devoradores do espaço e a tendência para ocuparem tudo o que está vazio. Se há horror ao vácuo, é nas bibliotecas. O espaço é o seu maior desejo, quase tanto como de ter mais livros, e o espaço é o seu mais caro investimento.

Um dos efeitos desse devorar contínuo do espaço é que à medida que as casas iam ficando mais pequenas, passavam para os arrumos os objectos que decoravam a biblioteca, e é isso de que vos vou falar, mais do que dos livros. Também porque se percebe até que ponto, e mais uma vez, como o "passado é um país estrangeiro".

Agora que a morte mais uma vez "unificou" a biblioteca, tive ocasião de encontrar nesses arrumos exactamente alguns dos objectos que, quando havia mais espaço, decoravam a sala ou as salas onde estavam os livros. Refiro-me a quadros, esculturas e objectos de decoração relacionados com os livros e os seus autores, e que estão a ser literalmente desenterrados do limbo a que as casas mais pequenas da cidade os condenavam. As casas e talvez o gosto, embora não esteja certo deste último factor, foram afastando estes objectos da sua relação original com os livros.

Um desses objectos é uma grande gravura de Victor Hugo, reproduzindo uma sua imagem célebre feita pelo conde Stanislaw. Vê-se um homem idoso, modestamente vestido, numa pose reclinada, que parece mais de cansaço do que de pensamento, ligeiramente despenteado e com um olhar ao mesmo tempo triste e penetrante. Esta é uma postura muito comum de Hugo, reproduzida em muitas imagens, gravuras e quadros, quase um trademark, como a imagem do velho Tolstoi com as suas barbas brancas e o seu fato de mujique.

Estava cheia de pó, tinha o vidro partido, mas a gravura está intacta. Pela sua dimensão, tinha que estar numa parede grande, com um papel de relevo, mostrando a enorme admiração que as gerações da segunda metade do século XIX tinham pelo escritor. Em Portugal era a mesma coisa, porque era numa casa portuguesa que o quadro estava exposto. Duvido que hoje alguém tivesse um quadro de um escritor contemporâneo - Hugo morreu em 1885, por isso é provável que estivesse vivo quando a sua imagem já ornamentava a biblioteca -, na sua casa. Não vejo que um Philip Roth, um Coetzee, um García Márquez, um Borges pudessem estar no mesmo lugar, e mesmo para os "grandes" deste século, Joyce, Mann, Eliot, seria bem pouco provável que ocupassem o lugar da admiração "burguesa" que explicava o Victor Hugo no espaço íntimo de uma casa oitocentista. Mas o autor de Os Miseráveis vai agora voltar a uma parede, limpo e restaurado, até um dia.


Depois há bustos vários, portugueses na sua maioria, que ornamentavam as estantes. Há um Herculano, anterior às comemorações do centenário em 1910, que produziram muitos bustos populares para as casas de republicanos, expostos ao lado da República de barrete frígio. Herculano mais que merece voltar a um novo lugar de honra, até pela imagem que sempre me fascinou de o imaginar a organizar o comboio de carros de bois a transportar os velhos livros dos mosteiros de Coimbra para o Porto. Alexandre Herculano, escritor e bibliotecário, amador de livros e papéis antigos, erudito, como poucos portugueses são ou foram, merece tutelar alguma velha estante de livros antigos.

Bem perto estará Castilho cego, outro busto comum nas bibliotecas oitocentistas, e outro autor a cuja enorme popularidade na época sucedeu um ocaso quase total. Castilho estava já presente na biblioteca por um edital publicitário encaixilhado do seu Curso de Língua Latina de 1851, que ele publicitava na terceira pessoa dizendo que o professor, ele mesmo, "tinha uma impagável assiduidade e paciência" e "portentosa eficácia". Devo enviar uma cópia ao Nuno Crato.



Castilho, não sendo um desconhecido e o seu nome e a sua cegueira conhecidas mesmo num público menos literato, em grande parte como pedagogo, devem-se contar pelos dedos das mãos, ou, vá lá, acrescento os pés, as pessoas que lêem hoje Castilho fora da academia. Eu sou um bom exemplo, porque, para além da Felicidade pela Agricultura, cujo título me atraiu, das polémicas, lidas do lado anti-Castilho, de algumas traduções dos autores clássicos, e de um outro poema numa antologia, nada mais. E ele escreveu bastante mais.

Por fim, escolhendo entre vários, há um prato de parede de bronze, na realidade um relevo, com uma representação de Molière. Este recordo-me de o ter visto sempre exposto, o que me surpreendia, porque apesar de a biblioteca ter uma grande colecção de livros franceses do século XVIII, e alguns do século XVII, não havia praticamente nada de Molière. O prato chegou à parede não por escolha literária, mas pelo bronze em si, com a efígie do autor com a sua enorme cabeleira, rodeado pelas musas Tália e Terpsícore.

Hugo, Herculano, Castilho e Molière são boas companhias para os livros. Podiam ser outros, mas o gosto antigo que os escolheu - porque todas estas coisas tiveram algum dia que ser compradas e é provável que algumas não fossem baratas - já acabou. Hugo e Molière são autores escolares e por isso de leitura obrigatória em França. Alguns livros de Hugo entraram profundamente no imaginário popular e por isso ele permanece em França um autor vivo. O mesmo acontece com Molière, cujas peças continuam a ser populares e periodicamente representadas. Alguns dos seus tipos também se tornaram populares e do misantropo aos "maridos confundidos", aos "cornudos" em geral, Molière está longe de ser apenas um autor escolar. Mas em Portugal só no Liceu Francês.

Em Portugal, Herculano e Castilho estão lá nos seus bustos, nos seus nomes de instituições, nos seus nomes de ruas e pouco mais. Herculano, um pouco melhor do que Castilho, mas também quase varrido, até nas escolas, pelos textos jornalísticos e sobre o Facebook, com que se pretende "atrair" os jovens para a literatura sem ser por textos com valor literário e artístico. Tempos. Por isso, nesta antiga biblioteca que me coube por sorte e por família, sem a qual seria outro, o anacronismo tem o seu papel. Nas paredes, nas estantes e nas leituras.

(Versão do Público de 23 de Junho de 2012.)

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© José Pacheco Pereira
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