ABRUPTO

26.4.14


O QUE CHEIROU A BAFIO NO 25 DE ABRIL 


De todas as comemorações do 25 de Abril, a única que verdadeiramente cheirou a bafio foi o almoço que o primeiro-ministro ofereceu, não se sabe em que qualidade, a alguns militantes da JSD e a simpatizantes do Governo em meia dúzia de associações juvenis, escolhidas a dedo e cognominados de “líderes de vários movimentos estudantis e juvenis”.

A lista incluiu associações académicas de Coimbra, Lisboa e Algarve, muitas das quais estiveram na vanguarda da defesa da praxe, o Corpo Nacional de Escutas, a Conexão Lusófona e as associações Synergia, Zunzum, Sport Club Operário de Cem Soldos, Suão e Moju. Não se sabe qual a sua representatividade, a começar pela capacidade de representarem a “juventude”, e os sites desses “movimentos” revelam bem a dependência dos apoios das organizações de juventude estatais, como o Instituto Português do Desporto e Juventude, cujo membro da tutela esteve presente, e autarquias ligadas ao PSD. Não me recordo de ver algum dos blogues governamentais mais assanhados contra tudo o que sejam ajudas de Estado protestarem. Que se saiba no almoço não houve qualquer reivindicação ou protesto. Estes “jovens” portam-se bem.

Passos Coelho, que deve ter do bafio um conceito muito especial, usou uma metáfora hortícola para falar da "liberdade e a democracia [que] têm de ser regadas com muito cuidado todos os dias". De novo, usou a dicotomia menos inocente que há nos nossos dias, a dos jovens e dos velhos, que esteve presente nas suas palavras: “O que peço é a esses que não têm com que comparar que não deixem de acreditar na capacidade de todos os dias fortalecer o espirito da liberdade e da democracia, sem a qual a nossa sociedade fica com menos futuro".

Fazer de conta que o Governo actua essencialmente para os jovens ou em nome dos jovens, presente no perverso conceito de “justiça geracional” – sacrifiquem-se duramente os avós e os pais, em nome do benefício hipotético dos filhos e dos netos – é um dos leitmotivs da propaganda governamental e o almoço “comemorativo” do 25 de Abril serviu para isso. Os velhos estão na rua a manifestar-se, os jovens em fila ordenada para os cumprimentos ao primeiro-ministro. O passado “bafiento” comemora o 25 de Abril defendendo egoisticamente as suas “regalias” e roubando aos mais jovens o futuro. O futuro zangado foi sentar-se à mesa do primeiro-ministro com um disciplinado guardanapo.

Comparadas com este solene e composto almoço de fato e gravata, até as comemorações do 25 de Abril na Assembleia foram um verdadeiro elixir de juventude e muito mais arejadas. Houve discursos melhores do que o costume, não houve fantochadas para épater os jornalistas como um célebre discurso de Aguiar Branco citando Lenine e Rosa Luxemburgo a partir da Wikipedia e cheio de erros, e, mesmo do lado governamental, discursos como o do representante do CDS, Filipe Lobo de Ávila, foi moderado e digno. A presidente da Assembleia fez um discurso teórico, mas certeiro sobre a democracia, mais reflexivo do que costuma ouvir-se naquela casa, e o Presidente começou bem e acabou mal, enredado nos seus próprios demónios. O PS conseguir ser a nulidade mais completa, com uma retórica sem convicção nem substância.

Depois há a rua. Umas dezenas de militantes da extrema-direita manifestaram-se junto da Assembleia, mas as televisões (que eu vi) fugiram de os mostrar em directo numa clara violação do direito à informação. Eu não gosto do que eles dizem e pensam, mas não compreendo por que razão não têm direito a serem tratados como notícia. Não me venham com o argumento de que eram poucos, porque o número escasso de pessoas que já vi em protestos locais da CGTP e mesmo manifestantes singulares nas galerias da Assembleia têm muitas vezes um longo tratamento noticioso e com destaque.

O resto da rua foi uma enorme manifestação que mobilizou centenas de milhares de pessoas em dois dias de protestos, em Lisboa, no Porto, um pouco por todo o país. Fizeram-no num dia que permitia um fim-de-semana mais prolongado e, na zona Sul do país, com um sol esplêndido para ir para a praia. No Norte do país, no Porto em particular, debaixo de chuva. As manifestações não foram vencidas pelo conforto e isso mostra militância.

Há um único fio condutor de todas estas manifestações e é inequívoco: são protestos contra o Governo e o Presidente da República, são protestos contra a situação. E embora houvesse alguma organização, são resultado de uma disposição genuína e espontânea, em que os partidos e sindicatos têm papel diferente do habitual. Não estão lá por serem do PCP, do BE, da CGTP, do PS, do PSD e da UGT que são contra o Governo, não estão lá por serem do “Que se lixe a troika”, ou da complicada e múltipla fauna de grupos e grupúsculos de protesto, de género, de single issue, da cultura, etc., etc. Estão lá por causa do 25 de Abril revisto e ampliado dos dias de hoje, estão lá porque a data já longínqua os ajuda a mobilizarem-se no presente. Dá-lhes músicas como a Grândola, poemas como os da Sophia e do Ary dos Santos, imagens como as dos “rapazes dos tanques” nas fotos de Alfredo Cunha, de Gageiro ou de Miranda Castela, histórias de proveito e exemplo, de resistência e coragem, figuras e ícones, ou seja, dá-lhes uma identidade que vem do passado para o presente.

E essa identidade ainda tem alguma capacidade de transmissão geracional. Eu disse alguma, não disse muita. Mas essa alguma é ela própria nos dias que correm tão excepcional que merece atenção. O 25 de Abril que se viveu no dia de ontem não foi o de 1974, mas o de 2014 feito em nome do de 1974. E muita gente apareceu, em manifestações menos soturnas do que as habituais, porque ainda há um resto de alegria dos primeiros dias após Abril de 1974 que ainda permanece. Recordar o 25 de Abril de 1974 é instrumental para as lutas do presente e daí o incómodo do “bafio”.

É relevante o número elevadíssimo de manifestantes? Claro que é, até pelo contraste com o almofadado almoço de S. Bento, que significa que o PSD e o CDS nascidos com o 25 de Abril estão hoje acossados em todos os lados menos nos salões. Perderam a rua, não porque o desejassem – tenho a certeza de que se pudessem fazer uma grande manifestação, ou mesmo uma pequena manifestação de apoio ao Governo, certamente que a fariam. Mas não podem. Hoje, os partidos do poder não conseguiam mobilizar para uma rua qualquer nem quinhentas pessoas, puxando por todos os cordelinhos e os fundos largos à sua disposição. Conseguem duas mil nuns almoços de campanha, arregimentados pela camisola e pelos pequenos poderes locais, em certas zonas do país. Mas se o apelo for por causas tão genéricas como o apoio ao Governo, como muitos franceses fizeram a De Gaulle contra o Maio de 1968, então ninguém lá vai. Este abandono da rua não é por a rua ser de “esquerda”, mas porque a actual “direita” no poder estar de mal com o seu país, muito de mal.

Se o “1640”, a ocorrer oportunamente uma semana antes das eleições europeias, fosse mais do que uma boutade ou um soundbite de Paulo Portas, e fosse para tomar a sério, a rua no 25 de Abril seria o equivalente a uma gigantesca e colectiva defenestração dos Miguel de Vasconcelos da actualidade. E isso é bem pouco “bafiento”, muito juvenil e fresco quanto sábio e experimentado. 

A Constituição dá os meios, a rua a vontade.

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20.4.14


PONTO / CONTRAPONTO: NOVO HORÁRIO DA NOVA SÉRIE
  aos domingos às 20 horas na SICN.
  Se o caos do futebol não lhe alterar mais uma vez o horário

HOJE:

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BARROSO E “O ENSINO DE EXCELÊNCIA” ANTES DO 25 DE ABRIL 


A última pessoa que podia ter dito o que disse sobre uma hipotética “excelência” do ensino antes do 25 de Abril era Durão Barroso. Primeiro, porque é falso, depois, porque é um daqueles casos em que as palavras ditas actuam como ferrete para quem as diz. Que havia ensino de excelência antes do 25 de Abril, é verdade, como sempre o houve depois do 25 de Abril. O problema é que, em muitos casos era, e é, caro e só acessível a poucos, e quando não é assim, principalmente no caso do ensino universitário público, foi fruto de uma dura e prolongada resistência contra o próprio “24 de Abril”. Ou seja, o antes do 25 de Abril era um enorme obstáculo para que houvesse “excelência” em coisa alguma, a começar pelo ensino. 

Como podia haver ensino de excelência antes do 25 de Abril, quando uma parte significativa da população portuguesa era analfabeta? Quer-se comparar a meia dúzia de liceus de elite de antes do 25 de Abril com a multidão de escolas complicadas dos dias de hoje, sem dizer que a esmagadora maioria dos portugueses com idade escolar estavam de fora do sistema de ensino e iam trabalhar nas obras e nas fábricas? Nos anos sessenta apenas 4% dos alunos universitários eram de origem operária e camponesa, era porque não eram “excelentes”? Como podia haver ensino de excelência sem liberdade académica?  Eu tive um “excelente” professor, profundamente conhecedor de Husserl, mas o ensino da filosofia parava em termos gerais em Hegel e evitava-se cuidadosamente a filosofia contemporânea, acontecendo o mesmo na história que ficava à porta da Revolução Francesa. E onde é que se estudava, nesse ensino de “excelência”, a sociologia, ou as outras ciências sociais e humanas? 

Eu compreendo muito bem que haja conservadores, conservadores na velha acepção do termo, gente com apego a tradições, com receio de que a mudança traga perdas importantes no que está adquirido, atitudes que não são desprovidas de algum mérito político e muitas vezes travam um excessivo experimentalismo cujos custos podem ser onerosos. Mas, o que não compreendo de todo são os reaccionários e o tempo parece estar a fazê-los medrar como cogumelos. Barroso juntou-se a esses cogumelos.

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40 ANOS DE 25 DE ABRIL (1)


 Em vésperas das comemorações dos 40 anos do 25 de Abril é natural que todos os demónios se soltem. Há várias razões para que as actuais comemorações do 25 de Abril sejam as mais importantes de sempre no plano político. Não sei se vão ter eficácia para os objectivos dos seus proponentes, quer os que as querem evitar cuidadosamente fazendo umas vénias de circunstância, quer os que esperam grandes mobilizações. O 25 de Abril como evento histórico assume hoje um largo consenso, embora o seu simbolismo no discurso político actue como factor de divisão. Parece uma contradição, mas não é. São duas coisas diferentes. 

O inquérito do ICS, divulgado pelo Expresso, revela que o 25 de Abril, enquanto acontecimento já envolvido pela história, não divide os portugueses. Porém, é só esperar pelos próximos dias, à volta da sessão na Assembleia da República e com as manifestações “populares” habituais, cuja dimensão é fácil de prever que vai ser grande, para retirar a conclusão de que a data e a sua interpretação vão polarizar uma parte da elite política e social portuguesa. E essa polarização é tudo menos amável. 

OS 40 ANOS DO 25 DE ABRIL (2) 

 
A esquerda criou para si própria um handicap no modo como nomeia o 25 de Abril. Fez sempre como na história do Pedro e o lobo, tanto berrou que vinha aí o lobo que agora que ele aparece de facto, ninguém acorre ao seu chamamento. E o lobo que vem está muito para além do conflito esquerda-direita, tendo sido aliás mais claramente identificado à direita do que à esquerda. Por isso, a natureza da polarização que tem sentido à volta do 25 de Abril está muito para lá dos temas habituais do “Portugal de Abril”, interpretado pelo PCP, pelo BE e timidamente pelo PS. Envolve a questão da independência e soberania nacional, do modo como se entende o contrato social, mais do que o “estado social”, da saúde da democracia portuguesa. Advém mais do “democratizar”, do que do “desenvolver”, na lista dos 3 Ds. E isso implica uma nova formulação política mais abrangente do que as divisões entre o 25 de Abril pomposo e oficial e o das “comemorações populares”.

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© José Pacheco Pereira
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