ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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26.4.14
O QUE CHEIROU A BAFIO NO 25 DE ABRIL
De todas as comemorações do 25 de Abril, a única
que verdadeiramente cheirou a bafio foi o almoço que o primeiro-ministro
ofereceu, não se sabe em que qualidade, a alguns militantes da JSD e a
simpatizantes do Governo em meia dúzia de associações juvenis,
escolhidas a dedo e cognominados de “líderes de vários movimentos
estudantis e juvenis”.
A lista incluiu associações académicas de Coimbra,
Lisboa e Algarve, muitas das quais estiveram na vanguarda da defesa da
praxe, o Corpo Nacional de Escutas, a Conexão Lusófona e as associações
Synergia, Zunzum, Sport Club Operário de Cem Soldos, Suão e Moju. Não se
sabe qual a sua representatividade, a começar pela capacidade de
representarem a “juventude”, e os sites desses “movimentos”
revelam bem a dependência dos apoios das organizações de juventude
estatais, como o Instituto Português do Desporto e Juventude, cujo
membro da tutela esteve presente, e autarquias ligadas ao PSD. Não me
recordo de ver algum dos blogues governamentais mais assanhados contra
tudo o que sejam ajudas de Estado protestarem. Que se saiba no almoço
não houve qualquer reivindicação ou protesto. Estes “jovens” portam-se
bem.
Passos Coelho, que deve ter do bafio um conceito muito
especial, usou uma metáfora hortícola para falar da "liberdade e a
democracia [que] têm de ser regadas com muito cuidado todos os dias". De
novo, usou a dicotomia menos inocente que há nos nossos dias, a dos
jovens e dos velhos, que esteve presente nas suas palavras: “O que peço é
a esses que não têm com que comparar que não deixem de acreditar na
capacidade de todos os dias fortalecer o espirito da liberdade e da
democracia, sem a qual a nossa sociedade fica com menos futuro".
Fazer
de conta que o Governo actua essencialmente para os jovens ou em nome
dos jovens, presente no perverso conceito de “justiça geracional” –
sacrifiquem-se duramente os avós e os pais, em nome do benefício
hipotético dos filhos e dos netos – é um dos leitmotivs da
propaganda governamental e o almoço “comemorativo” do 25 de Abril serviu
para isso. Os velhos estão na rua a manifestar-se, os jovens em fila
ordenada para os cumprimentos ao primeiro-ministro. O passado “bafiento”
comemora o 25 de Abril defendendo egoisticamente as suas “regalias” e
roubando aos mais jovens o futuro. O futuro zangado foi sentar-se à mesa
do primeiro-ministro com um disciplinado guardanapo.
Comparadas
com este solene e composto almoço de fato e gravata, até as comemorações
do 25 de Abril na Assembleia foram um verdadeiro elixir de juventude e
muito mais arejadas. Houve discursos melhores do que o costume, não
houve fantochadas para épater os jornalistas como um célebre
discurso de Aguiar Branco citando Lenine e Rosa Luxemburgo a partir da
Wikipedia e cheio de erros, e, mesmo do lado governamental, discursos
como o do representante do CDS, Filipe Lobo de Ávila, foi moderado e
digno. A presidente da Assembleia fez um discurso teórico, mas certeiro
sobre a democracia, mais reflexivo do que costuma ouvir-se naquela casa,
e o Presidente começou bem e acabou mal, enredado nos seus próprios
demónios. O PS conseguir ser a nulidade mais completa, com uma retórica
sem convicção nem substância.
Depois há a rua. Umas dezenas de
militantes da extrema-direita manifestaram-se junto da Assembleia, mas
as televisões (que eu vi) fugiram de os mostrar em directo numa clara
violação do direito à informação. Eu não gosto do que eles dizem e
pensam, mas não compreendo por que razão não têm direito a serem
tratados como notícia. Não me venham com o argumento de que eram poucos,
porque o número escasso de pessoas que já vi em protestos locais da
CGTP e mesmo manifestantes singulares nas galerias da Assembleia têm
muitas vezes um longo tratamento noticioso e com destaque.
O resto
da rua foi uma enorme manifestação que mobilizou centenas de milhares
de pessoas em dois dias de protestos, em Lisboa, no Porto, um pouco por
todo o país. Fizeram-no num dia que permitia um fim-de-semana mais
prolongado e, na zona Sul do país, com um sol esplêndido para ir para a
praia. No Norte do país, no Porto em particular, debaixo de chuva. As
manifestações não foram vencidas pelo conforto e isso mostra militância.
Há
um único fio condutor de todas estas manifestações e é inequívoco: são
protestos contra o Governo e o Presidente da República, são protestos
contra a situação. E embora houvesse alguma organização, são resultado
de uma disposição genuína e espontânea, em que os partidos e sindicatos
têm papel diferente do habitual. Não estão lá por serem do PCP, do BE,
da CGTP, do PS, do PSD e da UGT que são contra o Governo, não estão lá
por serem do “Que se lixe a troika”, ou da complicada e múltipla fauna
de grupos e grupúsculos de protesto, de género, de single issue,
da cultura, etc., etc. Estão lá por causa do 25 de Abril revisto e
ampliado dos dias de hoje, estão lá porque a data já longínqua os ajuda a
mobilizarem-se no presente. Dá-lhes músicas como a Grândola,
poemas como os da Sophia e do Ary dos Santos, imagens como as dos
“rapazes dos tanques” nas fotos de Alfredo Cunha, de Gageiro ou de
Miranda Castela, histórias de proveito e exemplo, de resistência e
coragem, figuras e ícones, ou seja, dá-lhes uma identidade que vem do
passado para o presente.
E essa identidade ainda tem alguma
capacidade de transmissão geracional. Eu disse alguma, não disse muita.
Mas essa alguma é ela própria nos dias que correm tão excepcional que
merece atenção. O 25 de Abril que se viveu no dia de ontem não foi o de
1974, mas o de 2014 feito em nome do de 1974. E muita gente apareceu, em
manifestações menos soturnas do que as habituais, porque ainda há um
resto de alegria dos primeiros dias após Abril de 1974 que ainda
permanece. Recordar o 25 de Abril de 1974 é instrumental para as lutas
do presente e daí o incómodo do “bafio”.
É relevante o número
elevadíssimo de manifestantes? Claro que é, até pelo contraste com o
almofadado almoço de S. Bento, que significa que o PSD e o CDS nascidos
com o 25 de Abril estão hoje acossados em todos os lados menos nos
salões. Perderam a rua, não porque o desejassem – tenho a certeza de que
se pudessem fazer uma grande manifestação, ou mesmo uma pequena
manifestação de apoio ao Governo, certamente que a fariam. Mas não
podem. Hoje, os partidos do poder não conseguiam mobilizar para uma rua
qualquer nem quinhentas pessoas, puxando por todos os cordelinhos e os
fundos largos à sua disposição. Conseguem duas mil nuns almoços de
campanha, arregimentados pela camisola e pelos pequenos poderes locais,
em certas zonas do país. Mas se o apelo for por causas tão genéricas
como o apoio ao Governo, como muitos franceses fizeram a De Gaulle
contra o Maio de 1968, então ninguém lá vai. Este abandono da rua não é
por a rua ser de “esquerda”, mas porque a actual “direita” no poder
estar de mal com o seu país, muito de mal.
Se o “1640”, a ocorrer oportunamente uma semana antes das eleições europeias, fosse mais do que uma boutade ou um soundbite
de Paulo Portas, e fosse para tomar a sério, a rua no 25 de Abril seria
o equivalente a uma gigantesca e colectiva defenestração dos Miguel de
Vasconcelos da actualidade. E isso é bem pouco “bafiento”, muito juvenil
e fresco quanto sábio e experimentado.
A Constituição dá os meios, a
rua a vontade.
(url)
© José Pacheco Pereira
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