Uma coisa os professores devem ter percebido, como os funcionários públicos perceberão, como os estivadores, ou os trabalhadores dos transportes, já tinham percebido. É que se quiserem resistir à avalanche que lhes caiu e cai em cima, estão sozinhos. A boca cheia da solidariedade é apenas isso, mas cada grupo profissional só pode contar consigo próprio para tentar travar a acentuada desqualificação da sua profissão, o reforço do autoritarismo de proximidade, de chefes e directores, os despedimentos colectivos, o aumento por decreto do horário de trabalho, a violação de todos os contratos e direitos.
Pode contar com a hostilidade de uma parte da população, acirrada pelos inconvenientes das greves, pelo discurso de guerra civil do governo e por uma comunicação social que, mesmo quando é muito da esquerda festiva e cultural, muito simpática com o folclore dos “indignados”, é hostil às lutas, às greves e aos sindicatos. Um dia, uma análise do grupo profissional dos jornalistas, explicará muito sobre como as fraquezas da profissão originam um dos discursos mais masoquistas, muito próximo do discurso do poder.
A solidão dos que reagem e não se bastam com manifestações de protesto que a mediatização trivializa, só pode ser invertida se os seus actos forem corajosos, unidos e massivos no âmbito profissional. Ou seja, com risco. Se mostrarem força, terão força e arrastarão consigo solidariedades que nunca terão com protestos “simbólicos”. E terão a simpatia de muitos que ou são indiferentes ou egoístas, porque, nesse momento, então sim, as lutas de resistência à iniquidade destes dias de lixo comunicam entre si. Nessa altura, polícias reconhecer-se-ão nos professores, e pessoal da CP e da Carris nos polícias, os professores nos estivadores, os funcionários públicos nos trabalhadores têxteis, os despedidos de uma fábrica nos reformados, os enfermeiros nos jovens à procura do primeiro emprego e nos desempregados de longa duração. O mundo do trabalho no mundo do trabalho.
Those who profess to favor freedom, and yet deprecate agitation, are men who want crops without plowing up the ground. They want rain without thunder and lightning.
Agora, todos os que amavam a troika de amor total, sensível, arrebatado, e lúbrico, detestam a troika, dirigem-lhe os maiores impropérios e querem pô-la fora da habitação do casal. Há várias razões para isso: já não falta entrar muito dinheiro dos 78 mil milhões decididos, já está combinado em termos gerais como é que a assistência e o protectorado continuam depois da troika ir embora, e vai haver eleições para as quais ninguém “se lixa”
A troika ir-se-á embora fisicamente em Junho de 2014. Haverá festas, champanhe, foguetes e o governo usará essa saída da troika como um dos escassos trunfos eleitorais que tem para 2015. Mas, fora da propaganda, nem a troika se vai embora, nem os objectivos do memorando foram conseguidos. Aliás, a enfâse no pós-troika significa isso mesmo: a constatação do falhanço do memorando, de que nenhum objectivo nem do défice, nem da dívida, foi cumprido, contrastando com o zelo “para além da troika” na austeridade dos trabalhadores e pensionistas, e nas leis laborais, no desmantelamento do estado e parcialmente nas privatizações
Um retorno sustentado aos mercados é irrealista sem protecção europeia e o preço a pagar para essa “protecção” implica a manutenção do regime de protectorado de Bruxelas e Berlim, mesmo sem as visitas regulares da troika. Em vez de ter periodicamente o espectáculo da submissão, com o espavento da chegada ao aeroporto, das idas aos partidos, à Assembleia, ao Presidente e às instituições, uma outra troika invisível nos inspecionará na mesma de um ou vários gabinetes em Bruxelas e Frankfurt. Para isso, exige-se um governo de ocupação e partidos colaboracionistas, que aceitem o mesmo tipo de supervisão alheia sobre o parlamento português, sobre a liberdade dos partidos e das eleições. Este é que é o problema do pós-troika e é eminentemente um problema político e de soberania.
Já falei o suficiente sobre a greve dos professores, para não precisar de aqui voltar. Também me parecia imbecil, se não fosse intencional, quer por ignorância mediática, quer por má fé, estar agora a entrar naquilo que os jornalistas referem com desprezo como a “guerra dos números” (que eles fomentam mais que ninguém, para depois se enojarem com a sua existência), nem com “quem ganhou ou quem perdeu”, nas suas múltiplas variantes propagandísticas, retóricas e mediáticas.
O que me interessa é o que a greve e as reacções à greve revelam sobre o tónus de conflitualidade na sociedade portuguesa, latente e às claras. Não tenho dúvidas de que dentro das escolas, pela primeira vez com esta intensidade, os professores que fizeram greve, e que são uma grande maioria, olham para os que não a fizeram de forma bem pouco meiga. Um profundo mal-estar divide professores de diferentes ciclos, onde o ministério encontrou em alguns sectores um grupo de professores dispostos a irem para escolas, que não são as suas, fazer a vigilância de exames.
Foram muito poucos, mas para garantir os exames bastaram. Colocou, também pela primeira vez, em cheque o papel dos directores. Alguns assumiram-se como “chefes” das escolas e foi deles, encostados às pressões governamentais, que vieram muitas das ilegalidades cometidas no dia da greve. Alunos e pais, os alvos da propaganda governamental, dividiram-se profunda e agressivamente. Os incidentes nas escolas, com alunos a tentar impedir outros alunos de fazerem exames, e o modo como a questão da “equidade” se tornou uma reivindicação, que, essa sim, atinge apenas o governo, vai manter o estado de excepção em todo este processo de exames.
Revelou também a hostilidade comunicacional às greves e aos sindicatos, com noticiários e comentários hostis, por regra. O modo como os responsáveis governativos eram interrogados era muito mais dócil do que a agressividade face aos sindicalistas, quase sempre apresentados à cabeça como “culpados”. De um modo geral, o leitmotiv da propaganda do governo – os exames prejudicam gravemente os alunos – foi repetido à exaustão. Subitamente descobriu-se um país de famílias “angustiadas”, de estudantes “nervosos”, de “ansiedade” por todo o lado. Um exército de psicólogos e de psiquiatras deve mobilizar-se sempre que há exames, porque os frágeis estudantes (os mesmos frágeis estudantes a quem se pode perguntar o que é que eles fazem aos professores e entre si durante todo ano) estavam todos deprimidos. Há muitas razões para este comportamento dos jornalistas, em contraste com a simpatia com as manifestações dos “indignados”, mas ficam para outra altura.
Por fim, e de um modo geral é isto que fica, é que a greve revelou de forma muito clara o modo como a conflitualidade está a evoluir para formas mais agressivas. Ela representa, entendida em todas as suas manifestações nos professores, alunos e pais e governo, o erro da afirmação do Presidente da República de que não há “desestruturação” na sociedade portuguesa. No dia da greve todo o discurso de divisão e de guerra civil que o governo tem vindo a semear, está já bem enraizado, e os seus efeitos geram “lados”, acicatam confrontos e dividem os portugueses cada vez de forma mais devedora ao pathos do que ao logos. É um caminho perigoso.
O que está em causa para o
Governo na greve dos professores é mostrar ao conjunto dos funcionários
públicos, e por extensão a todos os portugueses que ainda têm trabalho,
que não vale a pena resistir às medidas de corte de salários, aumentos
de horários e despedimentos colectivos, sem direitos nem justificações, a
aplicar a esses trabalhadores. É um conflito de poder, que nada tem a
ver com a preocupação pelos alunos ou as suas famílias.
Há mesmo
em curso uma tentação de cópia do thatcherismo, à portuguesa, numa
altura em que uma parte do Governo pende para uma espécie de gotterdammerung revanchista
e vingativo, de que as medidas ilegais como a recusa do pagamento do
subsídio de férias pela lei em vigor são um exemplo. Não é porque não
tenha dinheiro, é porque quer mostrar que é o Governo que decide as
regras do jogo e não os tribunais e as leis. Qualquer consideração pelas
pessoas envolvidas, não conta.
O Governo sabe que a sua
legitimidade é contestada sem hesitações por muita gente, e pretende
ultrapassar com um exercício de autoridade essa enorme fragilidade. Por
isso, a greve dos professores é muito mais relevante do que o seu
significado como conflito profissional, e é também por isso que o
Governo, aproveitando o deslaçamento que tem acentuado na sociedade com o
seu discurso de divisão, usa pais e alunos para a combater. Não é
líquido que não possa ter resultados, até porque os sindicatos não têm
conseguido ter um discurso límpido e claro, e os professores que se
mobilizaram quase a 100% contra Maria de Lurdes Rodrigues, por causa da
avaliação, estão hoje muito mais encostados à parede e enfraquecidos.
O
medo dos despedimentos é muito perturbador no actual contexto de crise
social, em que quem perde o trabalho nunca mais o vai recuperar. Por
isso, a greve dos professores, como a greve dos funcionários públicos, é
pelo emprego, em primeiro lugar, em segundo lugar e em último lugar. É
também contra a imposição unilateral de condições de trabalho e horários
no limite do aceitável. Mas o emprego é hoje o bem mais precioso e mais
ameaçado. Aliás, o aumento do horário de trabalho é também uma medida
para facilitar o desemprego.
Os sindicatos são um instrumento
vital de resistência social em tempos como os de hoje, e é ridículo e
masoquista ver alguns professores a "esnobarem" dos sindicatos quando
mais precisam deles. No entanto, isto não pode fazer esconder que os
sindicatos estão longe de estarem à altura do momento que o mundo
laboral está a atravessar. É aliás aqui que os efeitos mais perniciosos
da dependência partidária do movimento sindical português mais se
manifesta, quer para a CGTP, quer para a UGT.
Num momento em que
existe uma ofensiva em primeiro lugar contra os funcionários públicos e,
depois, contra qualquer forma de resistência organizada dos
trabalhadores, ou seja, também contra os sindicatos e os direitos
laborais, substituir uma acção próxima dos mais atingidos por uma
tentativa de lhe dar cobertura com slogans políticos é um erro que se paga caro.
Não adianta virem usar slogans,
como seja a "defesa da escola pública", apresentando-os como a
principal razão de luta dos professores. Em casa em que não há pão,
ninguém se mobiliza por abstracções, mobiliza-se pelo pão. É verdade que
o Governo é contra a "escola pública", mas o seu objectivo fundamental
nestes dias é despedir funcionários públicos, incluindo os professores,
para garantir os cortes permanentes da despesa pública a que se
comprometeu, em grande parte porque, ao ter deprimido a economia no
limite do aceitável, não tem outro modo de controlar o défice. Se o
escolhe fazer nos mais fracos e dependentes da sua vontade, como sejam
os funcionários públicos, é relevante, mas até por isso é a balança de
poder que está em causa nas próximas greves.
A utilização de uma
linguagem estereotipada pode ser muito confortável do ponto de vista
ideológico, mas funciona como entrave quer à mobilização profissional,
quer à mais que necessária mobilização da sociedade. Não é pela "defesa
da escola pública", nem por qualquer objectivo assim definido
programaticamente, que a greve pode ter sucesso, em particular face à
ofensiva governamental que conta com muito mais apoio na comunicação
social do que se pensa. É pela condição do trabalho, pelo emprego, que,
no actual contexto, são muito menos egoístas do que podem parecer. É,
aliás, também nesse terreno que os funcionários públicos e os
professores podem e devem "falar" com todos os outros trabalhadores do
sector privado, porque aí os seus objectivos são comuns.
O que
parece que os sindicatos têm vergonha de enunciar é o seu papel de
defesa de um grupo profissional, como se os objectivos laborais não
fossem objectivos nobres de per si, ainda mais na actual tentativa de
criar uma sociedade "empreendedora", assente na força de poucos contra o
valor e a dignidade do trabalho de muitos. A incapacidade que tem a
esquerda de enunciar objectivos firmes no âmbito destes valores,
substituindo-os por uma retórica abstracta, acaba por resultar numa
falsa politização que se torna num instrumento espelhar do mesmo
discurso de divisão que o Governo faz. Ainda estou à espera que alguém
me explique por que razão não se diz preto no branco, sem bullshit,
que a greve é justificada pela simples motivo que nenhum grupo
profissional numa sociedade democrática, seja empregado de uma empresa,
ou do Estado, pode aceitar que se lhe torne o despedimento trivial, por
decisões que são de proximidade (os chefes imediatos), e que não têm que
ser justificadas a não ser por uma retórica vaga de "reestruturação",
um outro nome para cortes cegos e pela linha da fraqueza dos "cortados".
E também não se diz, sem bullshit,
que não é fácil manter a calma e a civilidade quando se tem que
defrontar do lado das negociações pessoas que mentem quanto for preciso,
e que estão apenas a ver se meia dúzia de mentiras ou ambiguidades
servem para passar a tempestade e voltar à acalmia que precisam para
fazerem tudo aquilo que hoje dizem que não vão fazer. Os mesmos que, nos
últimos dois anos, tudo prometeram e nada cumpriram e que ainda há
poucos meses juravam em público que nada disto iria acontecer. Ou seja,
gente não fiável, de quem se pode esperar tudo e cujo discurso nas suas
ambiguidades deliberadas está a ser feito para que tudo seja possível.
Em Agosto ou em Setembro, passada a vaga de conflitualidade social, vão
ver como milhares de pessoas vão para a "requalificação", como o aumento
dos horários de trabalho vai servir para tornar excedentária muita
gente e como, sejam professores ou contínuos, todos vão estar no mesmo
barco do olho da rua.
Eu continuo a achar que a decência mobiliza
muito mais do que a "escola pública" e que tem a enorme vantagem de
toda a gente perceber quase de imediato o que é. E tem ainda a vantagem
de ser fácil explicar, e de ser fácil de compreender por toda a gente,
que é indecente o que se está a fazer aos funcionários públicos e aos
professores. E assim socializar o mesmo tipo de revolta que muitos dos
actuais alvos do Governo sentem, porque ela não é diferente da que tem
muitos milhões de portugueses. Digo bem, milhões. Não é coisa de
somenos.
NOTA: à data em que escrevo (14 de Junho)), não sei ainda quais vão ser
os resultados dos encontros entre o ministério e os professores, mas,
sejam quais forem, o contexto é este. No actual momento da sociedade
portuguesa, ou se ganha ou se perde. Não há meio termo.
QUE EFEITOS TEM O DISCURSO DE GUERRA CIVIL DO GOVERNO?
VEJAM O QUE SE ESTÁ A PASSAR NO DIA DE HOJE NAS ESCOLAS
O reino dos céus é semelhante ao homem que semeou boa semente no seu campo; mas, enquanto os homens dormiam, veio o inimigo dele, semeou joio no meio do trigo, e retirou-se. Quando, porém, a erva cresceu e começou a espigar, então apareceu também o joio.
"ELES" (OS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS) SÃO UMA PARTE DE "NÓS"
A thing moderately good is not so good as it ought to be. Moderation in temper is always a virtue; but moderation in principle is always a vice.
(Thomas Paine)
O que se passa na actual
ofensiva do Governo contra a função pública está muito para além da
condição de se ser "funcionário público". O discurso do Governo - mais
uma vez um discurso de divisão entre os portugueses, a que chamei e
chamo "guerra civil" - pretende legitimar as suas acções como tendo a
ver com aquilo que apresenta como "privilégios" dessa condição
profissional. Os corolários são sempre os mesmos; está-se a atacar
privilegiados, cujos privilégios são pagos pelos dinheiros dos
contribuintes, em nome da "equidade". Se temos impostos altos é porque
esta gente "do Estado" tem o emprego garantido, ganha mais do que os
trabalhadores do sector privado, tem maiores reformas. Tudo em parte
verdade, tudo em absoluto mentira.
Este discurso colhe, porque as
sementes da cizânia pegam sempre em momentos de empobrecimento, em que a
mais fácil das cegueiras é olhar para o lado e ver que o vizinho tem
mais uns tostões do que eu e ficar fixado nessa socialização da inveja
entre os de baixo, muito próximos em condição e dificuldades, em vez de
olhar para outro lado, para o lado de onde vem a minha miséria e a do
meu vizinho. Para o lado de cima.
O que se passa com a função
pública é relevante para todos nós, como método, como sinal, e,
infelizmente, como imoralidade social, rompendo um contrato social que é
suposto ser o tecido da nossa sociedade em democracia, em que existem
diferenças e diferenciações aceitáveis e outras inaceitáveis. É porque o
Governo quer esconder as inaceitáveis que assume agora uma espécie de
igualitarismo para os imbecis, proclamando-se de uma rasoira igualitária
que serve para violar contratos e garantias, direitos e condições, em
nome de um "dinheiro" que não há nestes casos e que parece haver sempre
nos outros. Alguém disse esta semana, e bem, que nunca ouviu o Governo
responder que "não havia dinheiro" para as PPP, nem para os contratos swap, nem para a banca, só para os trabalhadores e para os reformados.
É
por isso que o que o Governo está a fazer aos funcionários públicos tem
um significado social muito mais vasto do que as peculiaridades do seu
estatuto social e profissional. E o invólucro de uma pseudo-"reforma do
Estado" é apenas a expressão orwelliana para mais um corte cego nos
serviços públicos, sem nexo, sem consistência, nem sustentação, sem
sequer corresponder a qualquer poupança estrutural, porque os custos das
coisas mal feitas são muito maiores do que a poupança orçamental obtida
a curto prazo.
Um dos aspectos mais inaceitáveis deste processo é
o grau de dolo e fraude em que ele é feito. Repito-me, mas este é um
dos aspectos mais repulsivos da actual governação. Todos os governantes
juraram várias vezes, há dois anos, e há dois meses, que nunca haveria
despedimentos na função pública, nunca haveria "mobilidade especial"
para os professores, e que apenas quem quiser sair teria abertas as
portas a "rescisões amigáveis". O que ofende mais a consciência comum é
que as mesmas pessoas que usaram o "nunca", várias vezes e em contextos
que não permitiam a ambiguidade, estão hoje na vanguarda de piruetas
verbais mais obscenas para se desdizerem, parecendo aliás muito pouco
preocupados com o valor da sua palavra.
Quando se justificaram, no
passado próximo, muitas medidas de cortes salariais na função pública
com o argumento de que podiam ser mais gravosas para os funcionários
públicos, visto que eles tinham "a garantia do emprego", o que se estava
a fazer era mentir a todos, como método de actuação. O mesmo dolo foi a
"mobilidade especial" e agora a "requalificação" que não são mais do
que classificações enganosas em burocratês para os despedimentos. O
despedimento de funcionários públicos estava inscrito no código genético
desta governação desde o primeiro dia. Escrevi-o na altura com absoluta
certeza de que iria ser assim. E foi.
Tudo isto nos diz
respeito, funcionários ou trabalhadores do sector privado, porque
ninguém tenha dúvidas de que se o Governo pudesse fazer a todos os
trabalhadores portugueses o mesmo que está a fazer aos funcionários
públicos, fá-lo-ia sem hesitar. Se, por despacho ou lei ordinária, em
muitos casos sem sequer ir à Assembleia da República, fosse possível
aumentar o horário de trabalho, permitir despedimentos discricionários
por decisão unilateral do patrão ou do capataz, individuais e
colectivos, sem qualquer enquadramento legal que proteja a parte mais
fraca, nem simulacros de leis laborais seriam precisas.
E tudo
isto nos diz respeito, porque é o medo o lubrificante do discurso de
guerra civil do Governo. Sim, o medo das pessoas normais, que sabem que
ninguém as defende, que não confiam na força dos sindicatos, que sabem
que o silêncio cúmplice de Seguro não destoa dos actos de Passos Coelho,
que sabem que se escorregarem ainda mais no plano inclinado da pobreza,
cujo grande salto é o despedimento, terão uma vida infernal, difícil e
envergonhada. E por isso hesitam, temem, retraem-se, têm a ilusão de que
podem passar despercebidos ao olhar do chefe que vai escolher quem vai
para a "mobilidade especial", ou para a "requalificação", ou seja, quem
vai ser despedido.
A razão pela qual o povo português parece ser
mais "paciente" resulta muito simplesmente de que muitos têm medo de
perder ainda mais do que o que já estão a perder. E como o discurso da
divisão deixa cada um sozinho na sua fábrica, na sua escola, na sua
repartição, o medo ainda é eficaz. Mas o medo é destrutivo da sociedade e
da democracia, e dá saída apenas para o desespero, o momento em que as
pessoas percebem que já não há mais a perder. E nessa altura o seu
desespero não se verá em manifestações da CGTP ou dos "indignados".
Uma
das razões por que prefiro mesmo o desconhecido e o arriscado à
situação presente, como sejam eleições antecipadas sem grandes
expectativas, é que prefiro um tumulto que abra o espaço político a uma
situação nova, à continuidade de uma governação que é uma forma muito
pior de tumulto, é a destruição de um país em que a condição de se ser
português não significa nada, porque já não existem laços comunitários
em que nos reconheçamos.
Soares apelou às esquerdas, mas com
idêntico impulso crítico podia-se apelar às direitas, no mesmo sentido
de acção contra este Governo. Quem tiver um mínimo senso patriótico e
nacional, mesmo aceitando-se o lugar-comum de que é à direita que esse
sentimento de patriotismo é mais agudo, não pode deixar de se preocupar e
muito com a obra de destruição de Portugal e do tecido que uniu até
hoje os portugueses.
O enorme falhanço da esquerda e da direita
está em querer traduzir numa linguagem estereotipada e sectária uma
realidade de devastação que em muito ultrapassa o discurso político
tradicional. Os partidos políticos que assentam em termos programáticos
numa ideia de cidadania (como o PS) ou de "pessoa humana" (como o PSD e o
CDS) estariam à partida vocacionados para, pelo menos, compreender o
que se está a passar e travar esta forma miserável de luta de uns contra
os outros que não ousa dizer o nome, mas que é muito parecida com a
"luta de classes". Mas cada um ao seu modo, nas suas lideranças, traiu
os seus programas e, por isso, está a estragar Portugal e a democracia.
Não
é irrelevante o que se está a passar, para quem seja "justo", para quem
não seja indiferente ao tónus moral e cívico de uma sociedade, com
todos os piores instintos a ser despertados e alimentados, para garantir
um terreno favorável a um projecto de engenharia política que hoje está
em decadência, mas que envenena a terra em que está a apodrecer. Se há
um princípio cívico de moralidade - e é um cínico e um relutante
defensor de argumentos morais em política que escreve isto - o que está a
acontecer aos funcionários públicos deveria fazer soar todos os sinais
de alarme.
Face a esta situação, precisávamos de gente como Thomas
Paine que nos ensinasse que a "moderação no Bem" não é uma coisa boa. E
que se a "moderação no temperamento é sempre uma virtude, a moderação
nos princípios é sempre um vício". Há momentos em que é precisa esta
intransigência.
O MATERIAL TEM SEMPRE RAZÃO (22): O REACCIONARISMO
This is the way the world ends Not with a bang but a whimper.
(T.S. Eliot)
Uma das características dos dias de hoje é o surto, irremediável e provavelmente duradouro, de reaccionarismo social, cultural e político. Não é ideologia, não é política, foi vontade de ficar no lado dos mais fortes, dos que pareciam estar a vencer, dos que estiveram na moda. A crise acicatou estas divisões. Era o lado confortável há dois anos, hoje é o lado do desespero, logo da agressividade.
Hoje, que os dias dourados da engenharia utópica do “ajustamento” já estão longe, o que sobra é uma acção por surtos, caótica, dolosa, confusa, que não ousa mostrar a cara, que se enreda em mentiras e explicações. Desamparado dos seus mentores governativos, todos na defensiva, o discurso reacionário outrora impante, torna-se reactivo, feroz, grupal, “de classe”. Eles percebem que os seus melhores dias já estão no passado e que tudo vai soçobrar. Com laivos autoritários, contra a lei, acima da lei, contribuem para o acelerar da dissolução dos laços sociais, para o discurso de guerra civil, para um finis patria que tanto pode ser um “bing” como um “bang”. É uma espécie de PREC ao contrário. Quem já viu um, percebe demasiado bem o outro.
Hoje, um discurso da moderação tornou-se inaceitável porque a intolerância reaccionária domina. A intolerância classifica por necessidade e por arrogância. O que era ponderado ontem, hoje parece excessivo, radical. Mas não é. É o mesmo, num outro deserto.
*
Um dos exemplos de reacionarismo que continuam a ter certos
comentadores foi o de Camilo Lourenço contra o facto de haver pouco
transito em Lisboa nos dias uteis da passada semana metendo à mistura
coisa como "não temos produtividade para fazer isto". As pessoas (ainda)
têm direito a 22 dias uteis de férias e os períodos gozados dependem
sempre de aprovação da entidade patronal. Portanto, nada de anormal
nisto. E além disso convém relembrar q férias de uns são trabalho p/
outros. O Algarve que o diga. E com a quebra da atividade económica
muitas empresas gostariam de ter motivos p/ negar férias aos seus
trabalhadores, mas provavelmente não vale a pena. Um economista que não
perceba isto não traz grande valor acrescentado ao debate público,
apenas uma + posição reacionária contra "os suspeitos do costume", "os
que pagam sempre todas as crises", ou seja a Classe Média.
Há uma escola de defensores do poder, á esquerda e à direita, que gostaria imenso de eliminar qualquer discussão, defendendo ou uma censura explicita (do comentário), ou usando o argumento populista de que ele “não interessa para nada”. Enganam-se – o debate público em Portugal melhorou com a crise, envolveu muito mais gente, ultrapassou as elites, e forneceu argumentários diversos à esquerda e à direita. Podemos não gostar dos seus resultados, podemos achar que há um enorme lastro de pseudo-teorias, pseudo-explicações, argumentos envenenados, pensamento débil, – eu também acho -, mas seria cegueira não ver que no seu conjunto hoje há muito mais discussão do que nos últimos trinta anos. E discussão sobre o que conta.
Nem todos os autores ou comentadores tiveram na crise a sua oportunidade, outros passam-lhe ao lado sem nenhum papel relevante no espaço público como “intelectuais orgânicos” da crise, mesmo que o sejam no âmbito mais vasto daquilo que hoje se chama pejorativamente o “regime”, ou o “sistema”. Independentemente dos méritos que possam ter os seus comentários, Marcelo, Miguel Sousa Tavares, Marques Mendes, nada acrescentaram ao argumentário da crise. Talvez Marcelo, com a utilização sistemática da dicotomia “discurso político” / governação, ou seja, “a governação até nem é tão má como isso”, mas o “discurso político” é inexistente, possa ter fornecido uma interpretação, muito favorável ao stato quo, mas coerente com o seu modo de ver a política, que tão influente é no jornalismo.
Nos comentários, economistas políticos como Bagão Félix e Manuela Ferreira Leite, assumiram o papel de uma oposição democrata-cristã e social-democrata ao poder “neo-liberal”, que tinha ficado vazio com o silêncio doentio que os partidos PSD e CDS trouxeram ao espaço público, muito semelhante à desertificação que Sócrates trouxe ao PS na sua longa governação e Cavaco ao PSD antes. Há excepções a esta regra, mas nem por isso deixa de ser regra.
Nos socialistas, Sócrates está mais no centro do debate público “orgânico”, por inesperado que possa parecer. Não porque os seus comentários sejam surpreendentes, não porque os seus dados sejam fiáveis, mas porque combatendo a sua damnatio memoriae, trouxe para a crise a “narrativa” alternativa da sua origem, e, em conjunto com Santos Silva, Pedro Silva Pereira, Galamba, Fernando Medina e alguns jovens deputados do PS, tem conseguido uma consistência a milhas da orientação (?) de Seguro e os seus homens.
Do outro lado, da esquerda, o PCP tem-se mostrado um deserto ideológico e político, preso numa linguagem de pau, em que o “Pacto de Agressão” é uma versão de como a escolástica se sobrepõe ao debate. Apenas alguns economistas ligados à CGTP tem feito contributos interessantes. Louça e as equipas dos jovens sociólogos ligados ao Bloco de Esquerda que escreveram Não Acredite em Tudo o Que Pensa, e a outros grupos radicais, como Raquel Varela, pegaram na crise do ponto de vista da sociedade, também da economia e contribuíram para um argumentário alternativo ao “ajustamento”. A enfâse na sociedade e na política em detrimento da aproximação económica, caracteriza esta argumentação, que se encontra também em textos de Elísio Estanque e André Freire. No Facebook (que acompanho mal visto que não faço parte) também surgiram vozes que se tornaram virais nesse meio, como a de António Pinho Vargas.
(Continua.)
*
Você escreve no artigo da Sábado, colocado também no seu blog:
"Do outro lado, da esquerda, o PCP tem-se mostrado um deserto ideológico
e político, preso numa linguagem de pau, em que o “Pacto de Agressão” é
uma versão de como a escolástica se sobrepõe ao debate."
- Ora, discordo disto.
Em primeiro lugar há que levar em conta que o PCP, ou se quiser a CDU, é
o único partido com assento parlamentar que não tem sequer um
comentador residente em qualquer dos principais canais de televisão - ao
contrário, por exemplo, do BE que tem dois, Fernando Rosas (Prova dos
Nove) e Louça.
Então, ao PCP, para além dos segundos ou poucos minutos que consegue em
peças de telejornais, resta as participações eventuais em debates ou
entrevistas que se são mais ou menos regulares são também sempre
dependentes de convites e portanto sem que facilite a planificação de um
discurso com maior continuidade onde junto aos temas do momento se pode
ir incluindo as posições de fundo.
Assim, como o PCP é o que está mais limitado aos poucos segundos dos
telejornais e aí só cabem slogans, julgo que você foca apenas estes
pequenos espaços de tempo dos telejornais e somando-os uns aos outros
faz o discurso do PCP aparecer como um colar de slogans, ou de língua de
pau, como diz. Mas se reparar nos programas em que comunistas
participam por mais do que 15 minutos a coisa muda de figura. Por
exemplo, o discurso de Bernardino Soares quando vai ao telejoral do
Mário Crespo é muito diferente da sua caracterização. Tal como é o de
António Filipe quando também é convidado aqui e ali. Tal como foi o
deputado do PCP que aqui há uns meses substituiu António Costa na
Quadratura. Ainda, no programa da TVI "Política Mesmo" são convidados
de vez em quando para um debate deputados de todos os partidos e o
discurso do PCP aí tão pouco não cabe na caracterização que você faz.
Inclusive no último destes programas o deputado do PCP já dizia Pacto da
Troika em vez de Pacto de Agressão (embora seja um pacto de agressão). E
ainda, neste mesmo programa da TVI, agora do dia 5 de Junho, Carlos
Carvalhas foi um dos convidados para debater os 2 anos do actual governo
e, a meu ver, foi o mais interessante de todos. E mesmo que esta minha
opinião esteja toldada pela minha simpatia política pelo PCP o toldo em
todo o caso não chega para que a participação de Carvalhas não conteste a
sua opinição sobre o discurso do PCP.
Mas há ainda outro pormenor. Numa oposição dialéctica, no caso entre as
grandes linhas de definição política, o oposto que assumir para si os
termos do outro já perdeu a disputa - portanto ou o PCP é sempre um
pouco intratável na presente situação ou é um Partido submergido na
situação. O PCP, a meu ver, joga numa espécie de equilíbrio dinâmico ou
em movimento entre ser oposição à situação e não cair no discurso de
aventureiro
Em todo o caso tinha também a intenção de deixar-lhe o link para o
Política Mesmo que mencionei com Carlos Carvalhas - julgo que ao menos
coloca em causa a certeza com que você fala do discurso do PCP. http://www.tvi.iol.pt/videos/13886633
(João Vasco Ramos. )
A primeira aquisição da crise no debate público foi uma popularização forçada da economia, incluindo processos macroeconómicos, condicionantes, contradições, mecanismos, desde a “economia caseira”, até à economia pública. Como de costume, há muita tralha de “economês”, ou seja economia politica e ideologia disfarçada de linguagem cientifica, quer em versões eruditas, quer populistas, mas mesmo assim, muita gente aprendeu mais de economia nestes últimos anos do que em toda a vida. É pena que não haja "crises culturais” (o mais perto disso é o debate sobre o Acordo Ortográfico) para se popularizar literatura, arte e cultura.
É nas obras de alguns economistas, e não é por acaso que o são, que se encontram os textos interpretativos e programáticos que melhor penetraram no debate público e na sua versão de discussão comum entre pessoas comuns. Medina Carreira foi aí o percursor que popularizou muitos dos temas e explicações que se viriam a tornar virais na crise. Viu passar a sua voz solitária e apresentada como o apogeu do tremendismo, numa voz do mainstream, com uma forte componente de populismo. Hoje, não são os programas televisivos de Medina Carreira que contam, mas como acontece com os autores que são a face intelectual da crise, encontram-se as suas ideias e frases sob versão anónima ou quase no Facebook, nos blogues, nas cartas aos jornais, nas intervenções nos fora radiofónicos e televisivos.
Outros autores representaram a mesma sintonia com a crise e as suas necessidades argumentativas. João César das Neves é o melhor representante de um grupo de economistas que deram ao “ajustamento” um argumentário de inevitabilidade, tirando daí consequências políticas para a governação. Começando em César das Neves e acabando em Camilo Lourenço, passando por dezenas de articulistas na imprensa económica e de autores de blogues que absorveram a mesma cultura que tem tido a classificação de “neo-liberal” (de que o Primeiro-ministro é também parte), tem sido a vanguarda da polémica do lado da direita, ou se se quiser do lado da troika. Hoje já não vivem o momento alto que tiveram há dois anos, e muitos se revelaram muito mais reacionários (sim, é uma categoria política) do que liberais, mas deixaram um rastro de argumentos que ainda mexe no debate público.
Um caso sui generis de solidão no pensamento, a que se segue um enorme sucesso, e desse ponto de vista um dos autores que esta crise revelou como seu “intelectual orgânico” no sentido gramsciano, é o de João Ferreira do Amaral. A sua crítica à entrada de Portugal no euro, completamente isolada há uns anos, foi-se tornando um dos elementos explicativos da crise actual, que parece apostada a “dar-lhe razão”, como se diz.
A crise que atravessamos não tem sido negativa para o espaço público, embora sejam incomparáveis os custos e as vantagens. As anomalias, as perturbações, resultam sempre em qualquer forma de “dinamite cerebral”, na tentativa de as explicar, interpretar, explorar ou contrariar e uma parte do debate público passa por aí, em livros, artigos, ensaios, comentários. Mesmo que ele possa parecer circunstancial, e seja muitas vezes ligeiro e superficial, no seu conjunto tem sido um momento positivo para o pensamento político e para o debate público.
O MATERIAL TEM SEMPRE RAZÃO (21): O QUE ESTÁ EM CAUSA NA GREVE DOS PROFESSORES
O que está em causa para o governo na greve dos professores é mostrar ao conjunto dos funcionários públicos, e por extensão a todos os portugueses que ainda têm trabalho, que não vale a pena resistir às medidas de corte de salários, aumentos de horários e despedimentos colectivos sem direitos nem justificações, a aplicar ao sector. É um conflito de poder, que nada tem a ver com a preocupação pelos alunos ou as suas famílias.
Há mesmo em curso uma tentação de cópia do thatcherismo, à portuguesa.
O MATERIAL TEM SEMPRE RAZÃO (20): O QUE CONVÉM LEMBRAR SOBRE AS GREVES
O direito à greve faz parte do conjunto de direitos que definem uma democracia. Sem direito à greve não há democracia, como sem direito à propriedade também não há democracia. Resultou, como muitos direitos, de uma longa, dura, e em muitos países inacabada, luta social, pejada de mortos, feridos, exílios, despedimentos, expulsões de casas, prisões. Exsite na lei portuguesa desde o 25 de Abril de 1974, está regulamentado e constitucionalmente protegido. Mas parece que, apesar de ser um direito, exerce-lo para além do "simbolismo", é um crime.
Entendamo-nos: greves "simbólicas" são manifestações muito especiais, mais agressivas, levando a rua para dentro dos locais de trabalho, mas não são verdadeiramente greves. A greve é uma paralisação do trabalho cujo objectivo é pressionar alguém, patrão, empresa, sindicato (sim, os sindicatos podem estar do "outro" lado), estado, governo para obter uma qualquer reivindicação de natureza laboral ou política. Convém lembrar que há greves por objectivos políticos, como foram as do Solidarnosc na Polónia, e nenhuma lei em países democráticos as pode proibir.
Pressionar significa usar uma força, neste caso o prejuízo que decorre da interrupção do trabalho, para obrigar o "outro" lado a ceder ou a ponderar entre vantagens e prejuízos. É por isso que as greves que são greves e não greves "simbólicas" tentam maximizar os prejuízos como instrumento de pressão. Por exemplo, os trabalhadores rurais alentejanos faziam greve quando das ceifas e não quando das mondas, no Verão e não no Inverno. Durante um pequeno período de tempo a sua força negocial por salários mais altos era considerável. Os cereais podiam apodrecer se não fossem colhidos a tempo, havia o risco de mau tempo estragar uma colheita, e dos incêndios (alguns intencionais) destruirem uma seara. Passado este período, a força negocial dos trabalhadores rurais desaparecia, e ficavam sazonalmente desempregados, ou, quando muito, faziam as mondas e muitas vezes, como forma escondida de subsídio de desemprego pago pelo estado, iam apanhar pedras nos campos e empilhá-las. A monda química e a introdução de maquinaria, tiveram efeitos devastadores no preço e na quantidade de mão-de-obra necessária e levou à emigração muitos milhares de trabalhadores rurais alentejanos.
Por isso, quem faz greve a sério, escolhe os momentos que mais prejuízo provocam, como fazem os pilotos da TAP, os maquinistas da CP, os trabalhadores dos transportes, os professores, e, numa sociedade civilizada, definem-se os serviços mínimos para impedir a disrupção social para além dos limites do aceitável. Mas os serviços tem que de facto ser mesmo "mínimos", e os prejuízos fazem parte da conflitualidade consentida pela pluralidade de interesses na sociedade.
O que disse atrás não é comunismo, nem socialismo, nem radicalismo, nem fascismo, nem coisa nenhuma acabada em ismo. É o modo como nas sociedades democráticas se defrontam os conflitos sociais e políticos, com custos sociais, mas, se não for assim, é pior. É pior a começar para a democracia, coisa a que cada vez se liga menos.
O ESTADO PERIGOSO: A INTRUSÃO NA PRIVACIDADE DOS “DE BAIXO”
Como é quase habitual, o governo legisla e despacha sem grande preocupação de legalidade, ou sequer, de competência jurídica. Muitas das suas leis são monstros jurídicos, que acarretam enormes dificuldades, muita burocracia, enormes confusões, e, como muita coisa é virada para os mais fracos e os menos capazes de se defenderem da selva legislativa (o caso da lei das rendas é um exemplo perfeito, mas há mais), muito sofrimento escusado.
A intenção de publicitar a “identidade dos beneficiários de habitação social”, é mais um exemplo dessa sanha contra os “de baixo”. Trata-se de uma intenção legislativa ilegal, inconstitucional e, como de costume, dirigida contra os mais fracos e necessitados. Temos que saber se a senhora Maria fez uns truques para ter na casa o filho drogado, ou a filha mãe solteira, ou a filha desempregada e divorciada e o filho que mantem o emprego por um fio e não pode pagar renda, ou que a senhora trabalha nas limpezas desde as 6 da manhã, em “economia paralela”, ou não paga a renda social (que aumentou de 30 para 300 euros nalguns casos), ou subaluga um quarto a um romeno.
É verdade que há fraude e abusos na habitação social? É, como há muita corrupção nas entidades que atribuem as casas. Na parte de baixo da sociedade há toda uma série de truques, artimanhas, manhas, pequena corrupção, e mesmo injustiças e violências, que devem ser combatidas, mas que fazem parte de uma guerra social que não ousa ter esse nome: a resistência dos “de baixo” para obter o máximo que possam obter para si e para os seus, com egoísmos, passando por cima de todos, cometendo fraudes e entorses à lei. Mas como é que podia deixar de ser de outro modo, tão escassos são os bens no limite da sobrevivência? Só deseja viver num bairro social degradado, na melhor companhia do mundo, num mundo de grades, esgotos, humidade, bolor, chuva em casa, vidros partidos, lixo por todo o lado, quem gosta, não é?
Imaginem que eu acho bem que deveria ser divulgado o nome o património dos administradores dos bancos em que o estado coloca dinheiro, nomes, moradas, bens, pelo menos os que estão declarados, contas bancárias, etc.? Seria sem dúvida um perigoso revolucionário. Mas enganam-se, sou mais perigoso revolucionário por recusar sem ambiguidades que os pobres tenham a sua privacidade violada pelo estado, para instigarem a denúncia de uns contra os outros, para expor a esfera de privacidade que cada um, pobre e rico, tem direito numa sociedade civilizada. Se há fraudes, devem ser combatidas por inspeções e maior rigor na atribuição de casas e subsídios, não violando um valor maior que é o direito de protecção dos seus dados pessoais.
Tem por isso razão a Comissão Nacional de Protecção de Dados, que considera que se “abre o caminho a tratamento de dados de alto poder discriminatório (…) ultrapassando, em larga medida, o objectivo de transparência e de acesso público à informação”. Ou a Associação Nacional de Municípios que chama a atenção de que a concessão de habitações sociais não é propriamente o dado que mais se gosta de publicitar, visto que é “dirigido a agregados familiares carenciados ou em situação de fragilidade”.
Este é o retrato crítico de um governo que torna o estado perigoso.
O MATERIAL TEM SEMPRE RAZÃO (19): É SÓ DEIXA-LOS POUSAR
Alguns dos que mais rasgaram as vestes quando, em protesto contra os desvios políticos e programáticos no PSD, coloquei o símbolo do partido de pernas para o ar (na realidade eram eles que o viravam do avesso...), hoje fazem campanhas eleitorais fugindo como o Diabo da cruz de serem identificados pelo símbolo do PSD e pelas suas cores. Não posso deixar de notar a ironia do destino, assim como a sólida verdade... de que o material tem sempre razão.
O MATERIAL TEM SEMPRE RAZÃO (18): MOLEZA, MEIAS TINTAS, PROCURA DE RESPEITABILIDADE, POLÍTICA DE PHOTO OPPORTUNITY, VAZIO E POMPA
Há mil razões pelas quais Soares é melhor do que Seguro, sendo que a comparação quase que é afrontosa. É que Soares, mal ou bem, muitas vezes mal, tem vontade que "isto" mude, e Seguro não. Seguro quer herdar "isto" de bandeja, com o cortejo de sempre de salamaleques à elite que marca o círculo do poder, à procura de uma gravitas que ninguém lhe atribui, não dizendo nada que verdadeiramente conte para coisa nenhuma.
O mais grave de tudo é que, pelo caminho, contribui poderosamente para agravar a crise de representatividade que é a marca negra da democracia portuguesa dos nossos dias.
1. Escolher designações habilidosas para realidades negativas.
Passarei
pela rama esta muito significativa manipulação, porque já falei dela
várias vezes. A regra propagandística é que quem manda nas palavras,
manda nas cabeças. Por isso, o confronto fez-se pelo doubletalk. O
exemplo típico é passar a falar de "poupanças" em vez de "cortes", e o
mais ofensivo da decência é chamar "Plano de Requalificação da
Administração Pública" a um plano de despedimentos, puro e simples, sem
disfarces. O comunicado do Conselho de Estado reproduz também este tipo
de linguagem orwelliana.
2. Ocultar o que corre mal no presente com anúncios futuros do que vai correr bem.
Um
exemplo típico é a última declaração do ministro das Finanças, numa
altura em que se conhecem mais uma vez maus resultados da execução
orçamental. Bastou ele acenar com medidas de incentivo fiscal ao
investimento, em abstracto positivas, no concreto, pouco eficazes, para
servirem de mecanismo de ocultação das dificuldades de execução
orçamental. E como o "gatilho" (o nosso ministro pensa em inglês) dessas
medidas é apresentada com a coreografia verbal da novidade e a
encenação do ministro "inimigo" ao lado, estão garantidos alguns
editoriais e comentários positivos. Tivemos já, há umas semanas, algo de
semelhante, com o plano de "fomento industrial", aliás um remake de
vários outros anúncios entretanto esquecidos.
O problema é que o
Governo já percebeu que tem que utilizar uma linguagem de "viragem para o
crescimento", mas as medidas mais significativas em curso e com efeitos
imediatos são cortes no rendimento das pessoas e famílias. Não deveria o
real ser tido em conta, face ao virtual? Deveria se não fosse a cenoura
da novidade.
3. Escolher metas do futuro manipulando o seu significado para obter resultados propagandísticos no presente.
O melhor exemplo é a história do "pós-troika"
para que colaboraram recentemente Portas e o Presidente da República.
Portas fez um tardio e pouco convincente arroubo nacionalista contra
"eles", os homens da troika, justificando a sua aceitação de
medidas de austeridade gravosas com a necessidade de os ver pelas costas
em 2014. O Presidente fez pior: usou o "pós-troika" para
minimizar o caos governativo do presente em nome de uma inevitabilidade
da mesma política para o futuro. Pretendeu alargar a base de sustentação
do seu discurso no 25 de Abril, consciente, mesmo que não o diga, de
que ele lhe tolheu a margem de manobra. Mas o Conselho de Estado teve os
efeitos contrários ao que pretendia. O que ambos, Portas, o Presidente,
somados a Gaspar-Passos o actual tandem governativo, pretendem é obter
dois resultados inerentemente contraditórios: festejar a saída da troika como uma grande vitória governativa e depois garantir que tudo continua na mesma sem a troika.
4. Concentrar a atenção nas medidas que vão cair e fazer passar, por distracção, outras bem mais gravosas.
Um
exemplo típico foi a intervenção de Paulo Portas sobre o "cisma
grisalho". Portas concentrou-se naquilo a que chamou "TSU dos
reformados" - designação que ele próprio criou com a habilidade de autor
de soundbytes para, com a embasbaquice normal da comunicação
social, facilitar a concentração de atenção num nome -, deixando
deliberadamente na obscuridade todo um outro conjunto de medidas contra
os reformados e pensionistas, muito mais gravosos do que aquele que
recusava. O resto é o habitual: toda a gente passou a falar apenas das
peripécias da "TSU dos reformados", e esqueceu as outras.
5.
Deixar fluídos todos os anúncios de medidas, para criar habituação e
poder recuar numas que geraram mais controvérsia e avançar noutras que
ficaram distraídas.
Já fiz uma vez esta pergunta e repito-a:
alguém sabe, do pacote dos 4 mil milhões, o que é que está decidido, o
que é que está "aberto", o que é uma "hipótese de trabalho", o que é
para discutir na concertação social, o que foi anunciado e deixado cair,
que medidas são efectivamente para valer? Não se sabe, nem o Governo
sabe. Sabe as que deseja, mas hesita em função das pressões da opinião
pública, do medo do Tribunal Constitucional, do receio dos efeitos na
UGT, nas suas clientelas.
Por isso temos navegação tão à vista
que o navio parece estar encalhado. Não está, porque, nos interstícios,
as medidas que são mais fáceis do ponto de vista administrativo,
dependem de despachos, e não precisam ir à Assembleia ou ao Presidente,
vão sendo tomadas. São todas do mesmo tipo: retiram direitos, salários,
horários, condições de trabalho.
6. Fazer fugas de informação de medidas draconianas e violentas de austeridade, para depois vir-se gabar de que as evitou.
Um
exemplo típico são as conferências de imprensa em que se valoriza
determinadas medidas dizendo que elas permitem evitar outras muito
piores, de que se fizeram fugas deliberadas. Joga-se com o medo, e com
as expectativas negativas, para manipular as pessoas de que afinal,
perdendo muito, sempre estão a ganhar alguma coisa. A comunicação social
participa no jogo.
7. Manipular o efeito de novidade nos media para dar a entender que o Governo mudou.
O
melhor exemplo é a utilização do novo ministro das relações públicas e
marketing do Governo - no passado chamar-se-ia ministro da Propaganda -,
Poiares Maduro, cujas intervenções se caracterizam até agora pela
repetição vezes sem conta da palavra "consenso" e depois, nas questões
cruciais, a repetir o mais estafado discurso governamental. Veja-se o
que disse, contrariando todo o mais elementar bom senso e as evidências
públicas, sobre não haverem divergências no Governo entre Portas e
Passos, ou entre a ala do "crescimento" e a ala do "rigor orçamental".
Ou, numa manipulação da ignorância mediática, de que eventos como as
duas declarações sucessivas de Passos e Portas são "normais" em governos
de coligação. O único caso, vagamente comparável, é o do par
Cameron-Clegg, mas este tipo de eventos não são normais em nenhuma
circunstância. O que seria normal é que a seguir a uma declaração com a
que Portas fez, ou este pedisse a demissão ou fosse demitido. Esqueci-me
de dizer que eles no intervalo da propaganda, são todos
"institucionalistas".
8. Acentuar as expectativas negativas nas
próximas eleições autárquicas, para obter ganhos de causa se os
resultados não forem tão maus como isso.
As eleições
autárquicas reflectem a situação política nacional, mas são das eleições
mais afectadas pelo contexto local, ou pelas personalidades escolhidas.
O PSD terá sem dúvida maus resultados eleitorais pela reacção contra o
Governo, contra Passos e Gaspar e o ex-ministro Relvas. Terá também
péssimos resultados por apresentar maus candidatos às eleições em muitos
concelhos, em particular os mais importantes. Nesses duplicará os
factores negativos da reacção contra o Governo, com candidatos
envolvidos em polémicas desnecessárias ou escolhidos apenas pelas
conveniências do aparelho. Mas também é verdade que em muitos sítios, em
que o voto é mais exigente, o PS apresenta também candidatos muito
maus, vindos como os do PSD dos equilíbrios aparelhísticos e do
pagamento de favores internos ao grupo de Seguro.
Por isso, não é
líquido que não haja um efeito de minimização dos estragos que permita
transformar resultados medíocres em resultados razoáveis, logo, no
actual contexto, numa "vitória", jogando com expectativas muito
negativas. A comunicação social, com a habitual servidão aos
lugares-comuns, ajuda ao baixar tanto as expectativas que qualquer
resultado que não seja uma catástrofe nuclear possa ser visto como bom.