O que se passa na actual
ofensiva do Governo contra a função pública está muito para além da
condição de se ser "funcionário público". O discurso do Governo - mais
uma vez um discurso de divisão entre os portugueses, a que chamei e
chamo "guerra civil" - pretende legitimar as suas acções como tendo a
ver com aquilo que apresenta como "privilégios" dessa condição
profissional. Os corolários são sempre os mesmos; está-se a atacar
privilegiados, cujos privilégios são pagos pelos dinheiros dos
contribuintes, em nome da "equidade". Se temos impostos altos é porque
esta gente "do Estado" tem o emprego garantido, ganha mais do que os
trabalhadores do sector privado, tem maiores reformas. Tudo em parte
verdade, tudo em absoluto mentira.
O que se passa com a função pública é relevante para todos nós, como método, como sinal, e, infelizmente, como imoralidade social, rompendo um contrato social que é suposto ser o tecido da nossa sociedade em democracia, em que existem diferenças e diferenciações aceitáveis e outras inaceitáveis. É porque o Governo quer esconder as inaceitáveis que assume agora uma espécie de igualitarismo para os imbecis, proclamando-se de uma rasoira igualitária que serve para violar contratos e garantias, direitos e condições, em nome de um "dinheiro" que não há nestes casos e que parece haver sempre nos outros. Alguém disse esta semana, e bem, que nunca ouviu o Governo responder que "não havia dinheiro" para as PPP, nem para os contratos swap, nem para a banca, só para os trabalhadores e para os reformados.
É por isso que o que o Governo está a fazer aos funcionários públicos tem um significado social muito mais vasto do que as peculiaridades do seu estatuto social e profissional. E o invólucro de uma pseudo-"reforma do Estado" é apenas a expressão orwelliana para mais um corte cego nos serviços públicos, sem nexo, sem consistência, nem sustentação, sem sequer corresponder a qualquer poupança estrutural, porque os custos das coisas mal feitas são muito maiores do que a poupança orçamental obtida a curto prazo.
Um dos aspectos mais inaceitáveis deste processo é o grau de dolo e fraude em que ele é feito. Repito-me, mas este é um dos aspectos mais repulsivos da actual governação. Todos os governantes juraram várias vezes, há dois anos, e há dois meses, que nunca haveria despedimentos na função pública, nunca haveria "mobilidade especial" para os professores, e que apenas quem quiser sair teria abertas as portas a "rescisões amigáveis". O que ofende mais a consciência comum é que as mesmas pessoas que usaram o "nunca", várias vezes e em contextos que não permitiam a ambiguidade, estão hoje na vanguarda de piruetas verbais mais obscenas para se desdizerem, parecendo aliás muito pouco preocupados com o valor da sua palavra.
Quando se justificaram, no passado próximo, muitas medidas de cortes salariais na função pública com o argumento de que podiam ser mais gravosas para os funcionários públicos, visto que eles tinham "a garantia do emprego", o que se estava a fazer era mentir a todos, como método de actuação. O mesmo dolo foi a "mobilidade especial" e agora a "requalificação" que não são mais do que classificações enganosas em burocratês para os despedimentos. O despedimento de funcionários públicos estava inscrito no código genético desta governação desde o primeiro dia. Escrevi-o na altura com absoluta certeza de que iria ser assim. E foi.
Tudo isto nos diz respeito, funcionários ou trabalhadores do sector privado, porque ninguém tenha dúvidas de que se o Governo pudesse fazer a todos os trabalhadores portugueses o mesmo que está a fazer aos funcionários públicos, fá-lo-ia sem hesitar. Se, por despacho ou lei ordinária, em muitos casos sem sequer ir à Assembleia da República, fosse possível aumentar o horário de trabalho, permitir despedimentos discricionários por decisão unilateral do patrão ou do capataz, individuais e colectivos, sem qualquer enquadramento legal que proteja a parte mais fraca, nem simulacros de leis laborais seriam precisas.
E tudo isto nos diz respeito, porque é o medo o lubrificante do discurso de guerra civil do Governo. Sim, o medo das pessoas normais, que sabem que ninguém as defende, que não confiam na força dos sindicatos, que sabem que o silêncio cúmplice de Seguro não destoa dos actos de Passos Coelho, que sabem que se escorregarem ainda mais no plano inclinado da pobreza, cujo grande salto é o despedimento, terão uma vida infernal, difícil e envergonhada. E por isso hesitam, temem, retraem-se, têm a ilusão de que podem passar despercebidos ao olhar do chefe que vai escolher quem vai para a "mobilidade especial", ou para a "requalificação", ou seja, quem vai ser despedido.
A razão pela qual o povo português parece ser mais "paciente" resulta muito simplesmente de que muitos têm medo de perder ainda mais do que o que já estão a perder. E como o discurso da divisão deixa cada um sozinho na sua fábrica, na sua escola, na sua repartição, o medo ainda é eficaz. Mas o medo é destrutivo da sociedade e da democracia, e dá saída apenas para o desespero, o momento em que as pessoas percebem que já não há mais a perder. E nessa altura o seu desespero não se verá em manifestações da CGTP ou dos "indignados".
Uma das razões por que prefiro mesmo o desconhecido e o arriscado à situação presente, como sejam eleições antecipadas sem grandes expectativas, é que prefiro um tumulto que abra o espaço político a uma situação nova, à continuidade de uma governação que é uma forma muito pior de tumulto, é a destruição de um país em que a condição de se ser português não significa nada, porque já não existem laços comunitários em que nos reconheçamos.
Soares apelou às esquerdas, mas com idêntico impulso crítico podia-se apelar às direitas, no mesmo sentido de acção contra este Governo. Quem tiver um mínimo senso patriótico e nacional, mesmo aceitando-se o lugar-comum de que é à direita que esse sentimento de patriotismo é mais agudo, não pode deixar de se preocupar e muito com a obra de destruição de Portugal e do tecido que uniu até hoje os portugueses.
O enorme falhanço da esquerda e da direita está em querer traduzir numa linguagem estereotipada e sectária uma realidade de devastação que em muito ultrapassa o discurso político tradicional. Os partidos políticos que assentam em termos programáticos numa ideia de cidadania (como o PS) ou de "pessoa humana" (como o PSD e o CDS) estariam à partida vocacionados para, pelo menos, compreender o que se está a passar e travar esta forma miserável de luta de uns contra os outros que não ousa dizer o nome, mas que é muito parecida com a "luta de classes". Mas cada um ao seu modo, nas suas lideranças, traiu os seus programas e, por isso, está a estragar Portugal e a democracia.
Não é irrelevante o que se está a passar, para quem seja "justo", para quem não seja indiferente ao tónus moral e cívico de uma sociedade, com todos os piores instintos a ser despertados e alimentados, para garantir um terreno favorável a um projecto de engenharia política que hoje está em decadência, mas que envenena a terra em que está a apodrecer. Se há um princípio cívico de moralidade - e é um cínico e um relutante defensor de argumentos morais em política que escreve isto - o que está a acontecer aos funcionários públicos deveria fazer soar todos os sinais de alarme.
Face a esta situação, precisávamos de gente como Thomas Paine que nos ensinasse que a "moderação no Bem" não é uma coisa boa. E que se a "moderação no temperamento é sempre uma virtude, a moderação nos princípios é sempre um vício". Há momentos em que é precisa esta intransigência.