ABRUPTO

29.12.12


ALGUÉM ME EXPLICA 

Ele há notícias particularmente bizarras e que passam como sendo as mais normais do mundo. Por exemplo, citando o i e o Público

O presidente executivo do Banco Espírito Santo (BES), Ricardo Salgado, prestou voluntariamente declarações no âmbito do caso Monte Branco (…) O banqueiro deslocou-se esta terça-feira, a título voluntário, às instalações do DCIAP para testemunhar sobre o que "fosse considerado necessário pelas autoridades com vista ao cabal esclarecimento dos factos", afirmou uma fonte oficial do BES. Segundo adiantou a mesma fonte, Ricardo Salgado foi ouvido na qualidade de testemunha, “enquanto cidadão, e não na qualidade de presidente da Comissão Executiva do BES”, não tendo “conhecimento da necessidade de outras diligências".

 O que é “prestar declarações voluntariamente” numa investigação de um crime? Ou seja, alguém chega ao DCIAP e diz, “façam o favor de me ouvirem”, eu não fui chamado, não fui convocado, nada sei sobre o crime em causa senão tê-lo-ia denunciado em tempo, mas mesmo assim “façam o favor de me ouvir”, como vulgar “cidadão” e como “testemunha” (de quê?). O que é que como “cidadão” Ricardo Salgado “testemunhou” sobre a rede de fuga e branqueamento de capitais investigada pelo Ministério Público? Pensei que esta figura de “declarações voluntárias” sobre “os factos” nestes termos não existia, mas parece que sim. Pelo menos é assim que vem descrita, sabendo-se que dela não resultou “a necessidade de outras diligências”. Mas por que razão é que teria que haver “outras diligências”, dado que o “cidadão”, fora da sua qualidade profissional de presidente da Comissão Executiva do BES, nada sabe do assunto? 

Isto está cada vez mais confuso. Ou não.

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EARLY  MORNING BLOGS   
 

2287 - Winter: My secret

I tell my secret? No indeed, not I:
Perhaps some day, who knows?
But not today; it froze, and blows and snows,
And you’re too curious: fie!
You want to hear it? well:
Only, my secret’s mine, and I won’t tell.

Or, after all, perhaps there’s none:
Suppose there is no secret after all,
But only just my fun.
Today’s a nipping day, a biting day;
In which one wants a shawl,
A veil, a cloak, and other wraps:
I cannot ope to everyone who taps,
And let the draughts come whistling thro’ my hall;
Come bounding and surrounding me,
Come buffeting, astounding me,
Nipping and clipping thro’ my wraps and all.
I wear my mask for warmth: who ever shows
His nose to Russian snows
To be pecked at by every wind that blows?
You would not peck? I thank you for good will,
Believe, but leave the truth untested still.

Spring’s an expansive time: yet I don’t trust
March with its peck of dust,
Nor April with its rainbow-crowned brief showers,
Nor even May, whose flowers
One frost may wither thro’ the sunless hours.

Perhaps some languid summer day,
When drowsy birds sing less and less,
And golden fruit is ripening to excess,
If there’s not too much sun nor too much cloud,
And the warm wind is neither still nor loud,
Perhaps my secret I may say,
Or you may guess.


(Christina Rossetti)

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28.12.12


VIAGEM NO PASSADO POR CAUSA DO PRESENTE

Cartazes do CDS, 1976.


Hoje tudo é muito diferente em relação ao passado, mas também muita coisa é demasiadamente igual.

No final do século XIX, princípio do século XX, o incipiente operariado português concentrava-se em poucas fábricas dignas desse nome no Norte do país, em particular no Porto, e numa multidão de pequenas oficinas em Lisboa e Setúbal e nas principais cidades do país. Eram operários e operárias, tabaqueiros, têxteis, soldadores, conserveiros, corticeiros, mineiros, padeiros, alfaiates, costureiras, cinzeladores, cortadores de carnes verdes, carpinteiros, fragateiros, estivadores, carregadores, carrejonas no Porto, carvoeiros, costureiras, douradores, etc., etc. Havia uma multidão de criados e criadas, criadas "de servir", e muito trabalho infantil em todas as profissões, em particular nas mercearias, onde os marçanos viviam uma infância muitas vezes brutal, dormindo na loja e carregando com cargas muito pesadas. Falei em operariado, mas na verdade, muito poucos correspondem ao conceito, porque se trata mais de artífices, trabalhadores indiscriminados, e em muitos casos com profissões hierarquizadas em que os aprendizes eram sujeitos a todos os abusos. Havia depois uma aristocracia operária, essencialmente entre os que faziam tarefas qualificadas e mais bem pagas, como era o caso dos tipógrafos, que sabiam ler e por isso tinham um mundo social diferente. Antero de Quental foi tipógrafo de passagem.

Deixo o campo de lado, em que a maioria dos portugueses ainda vivia, onde havia igualmente um território obscuro e pouco conhecido que despertou com a I República, os trabalhadores rurais alentejanos. Estes viviam uma vida violenta e esquecida no meio do deserto alentejano. Nos meios rurais vários grupos de trabalhadores vegetavam na mais negra miséria e vendiam o seu trabalho sazonalmente, nas vinhas do Douro, nos campos do Alentejo e Ribatejo como maltezes e ratinhos. O que de mau se pode dizer das cidades, pode-se dizer pior do campo ou das vilas piscatórias do litoral e mineiras do interior. 

A economia do mundo operário centrava-se no salário muito escasso, na renda de casa, numa vila operária ou numa "ilha" se fosse no Norte do país, onde se amontoavam em condições higiénicas e sanitárias inimagináveis. A epidemia de cólera no Porto, e a habitual ocorrência de tifo, demoraram muito anos a lembrar os governantes do problema de insalubridade da "habitação operária" e deram origem aos bairros sociais no salazarismo.

O vestuário masculino e feminino era muito grosseiro, sarja, serapilheira, chita eram comuns e os sapatos eram para usar aos domingos. Até à década de cinquenta do século XX o pé descalço era um símbolo da pobreza portuguesa. Alpergatas feitas com um bloco de madeira e uma tira de borracha de pneu eram o calçado operário mais comum. As mulheres vestiam-se ainda como se estivessem no campo e os homens já menos, mas mesmo assim o traje operário, como o fato-macaco, demorou a tornar-se comum porque era caro.

A alimentação era de péssima qualidade e a fome, e doenças associadas com as carências alimentares, como o raquitismo, eram comuns. A tuberculose era generalizada, e o alcoolismo um flagelo social. Eram igualmente comuns os traços da varíola, da poliomielite, e em certas zonas do país havia malária e kala-azar. Não havia dinheiro para ir ao médico e também não havia muitos médicos e menos hospitais, já para não falar de medicamentos. A dependência da caridade da igreja ou pública, sob formas como a "sopa dos pobres", implicava regras de comportamento disciplinares, subserviência e cabeça baixa. Havia muita mendicidade.

A prostituição, a criminalidade e o roubo eram generalizados. Havia um número elevado de "matriculadas" e um número ainda maior de mulheres que se prestavam ocasionalmente à prostituição por razões económicas. A violência sexual nas fábricas era uma forma de "direito de pernada" que ninguém contestava e a violência nas famílias sobre as mulheres uma hábito estabelecido. Em Lisboa a criminalidade "apache" de navalha, vinho e fado era a regra, nos campos o assassínio bruto à paulada e a machado associava-se ao roubo nos matos e ao incêndio de searas. A reivindicação de polícia rural está alta na lista de todas as associações de agricultores, como os senhorios urbanos temiam os seus inquilinos.

A esmagadora maioria da população era analfabeta, e os poucos que tinham algumas letras não passavam da instrução primária, muitas vezes incompleta. No entanto, havia uma reverência à escola e à instrução, como sinal de ascensão social. Para muitos pobres, o seminário era a única escola possível.

Os trabalhadores não tinham quaisquer direitos enquanto trabalhadores. Os patrões, fossem os "industriais" com dinheiro brasileiro e títulos de barão e visconde, ou os donos das pequenas oficinas de marcenaria ou de panificação, podiam decidir tudo sobre os seus trabalhadores. Os horários podiam ser de sol a sol, as condições de trabalho eram terríveis, os acidentes de trabalho e as doenças profissionais comuns, as ordens de patrões e capatazes eram indiscutíveis, os dias de doença não eram pagos, as faltas, por muito justificadas que fossem, idem, e o despedimento não tinha qualquer formalidade - chamava-se o trabalhador e "punha-se na rua". Ponto.

Durante a segunda metade do século XIX, os operários começaram a organizar-se e a reivindicar alguns muito escassos direitos. À medida que as antigas corporações desapareciam, e com estas algumas confrarias que ofereciam um escasso apoio social a grupos profissionais, apareciam associações mutualistas que pretendiam em primeiro lugar garantir um funeral decente em vez da carreta dos pobres e a vala comum, assim como algum apoio às viúvas e aos filhos, que a morte deixava de imediato na pobreza absoluta. Os peditórios eram comuns. Esse mundo da economia popular pode ser visto por um observador atento que visite alguns bairros antigos de Lisboa, onde encontra ainda restos da paisagem operária marcada pelas lojas de penhor, pelas funerárias e pelas tabernas.

Os sindicatos, no sentido moderno do termo, surgiram a partir das associações de classe e de um espírito de resistência e auto-organização, que, não sendo nunca muito forte, estabeleceu-se com tenacidade. Havia greves, algumas violentas e tumultuárias, mas também era comum que um gesto qualquer caritativo do patrão fizesse voltar os operários ao trabalho, muito agradecidos com a benesse. A relação paternal entre o patrão e os "seus" operários estava incrustada no tipo de relações sociais dominadas pela clientela e pelo patrocinato. O caciquismo era a face política dessas mesmas relações, a partidocracia actual a sua herdeira.

Do seu lado, do lado das "classes laboriosas", havia muito pouca gente, alguns raros filantropos com ideias progressistas, muitos filantropos com ideias reacionárias, e, durante a sua breve vida, um Rei D. Pedro V. E, pouco a pouco, legislação sobre o trabalho, as condições de trabalho, a "previdência", e um embrião de um direito laboral foi fixando horários, salários, regras, descontos, faltas, doenças, obrigações, e, palavra maldita, do direito nasceram direitos adquiridos.

Estamos a falar de cem, cento e cinquenta anos, mas saímos deste mundo há pouco mais de cinco décadas, com muito sofrimento, esforço e trabalho, consolidando melhorias e direitos. Na década de sessenta, a vida começou a melhorar muito lentamente. A emigração representou a válvula de escape para muita desta miséria, e na França, na Alemanha, como antes no Brasil e Venezuela. Uma lenta mas construtiva industrialização, iniciada nos anos cinquenta, e uma política de "fomento" permitiram, junto com a economia colonial acicatada pela guerra, algum progresso material. E Marcelo Caetano deu a reforma aos rurais e o 25 de Abril o resto. 

Foi um processo lento e nalguns aspectos pouco amável, que incluiu uma revolução e alguma violência, cá e principalmente em África. Conseguimos uma muito razoável integração dos "retornados", mais eficaz pela plasticidade da sociedade portuguesa do que o que aconteceu em França com os pieds noirs. Acabámos com os frutos malditos da pilha de ouro entesourada no Banco de Portugal, a mortalidade infantil, o analfabetismo, a pobreza, a absoluta desprotecção face aos infortúnios do trabalho e da vida.

Melhorámos alguma coisa, mas não muito. Mas foi tudo muito lento e muito tarde, o que significa que os portugueses mais velhos ainda têm uma memória viva, muito provavelmente biográfica, desta pobreza ancestral. Mesmo os que já não a viveram sabiam pelos seus pais e avós que era assim, e isso significa, ao mesmo tempo, um certo conformismo e alguma revolta.

O último tempo onde mais negra foi a miséria portuguesa que ainda pode ser lembrado pelos vivos foi por volta de 1943, o ano em que houve um excedente da balança comercial que a imbecil ignorância actual se permite louvar, sem saber do que está a falar. Ter havido excedentes na balança foi bom, a razão por que isso aconteceu foi péssima. É essa fractura entre a abstração e a realidade que torna obrigatório viajar pelo passado por causa do presente. Tudo é muito diferente, mas também muita coisa é demasiadamente igual. Esperemos que em 2013 não se torne ainda mais parecida. 

(Versão do Público de 22 de dezembro de 2012.)

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24.12.12


EARLY  MORNING BLOGS   

 

2286 - The Oxen

 
Christmas Eve, and twelve of the clock.
    "Now they are all on their knees,"
An elder said as we sat in a flock
    By the embers in hearthside ease.

We pictured the meek mild creatures where
    They dwelt in their strawy pen,
Nor did it occur to one of us there
    To doubt they were kneeling then.

So fair a fancy few would weave
    In these years! Yet, I feel,
If someone said on Christmas Eve,
    "Come; see the oxen kneel,

"In the lonely barton by yonder coomb
    Our childhood used to know,"
I should go with him in the gloom,
    Hoping it might be so.

(Thomas Hardy)

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23.12.12


O PRÉMIO NOBEL DA PAZ 

 De todos os prémios Nobel o mais desprestigiado é o da Paz. Tantas vezes entregue ao sabor das modas políticas, o Prémio Nobel da Paz tornou-se um arremedo gratificante apenas para quem vive dessa indústria do politicamente correcto. Desse ponto de vista, foi bem entregue à União Europeia, uma sombra de uma sombra de uma sombra tornada visível nos dias de hoje como directório alemão. Ou seja, o prémio não só não premeia nada de substantivo, como ajuda a manter uma ficção que cada vez vai dar mais para o torto. Aquilo que é hoje a União Europeia, - uma extensão da política alemã, aceite por necessidade e não por liberdade, - não é líquido que seja sustentável na próxima década. A colecção de ressentimentos, que muitos hoje engolem por pura necessidade, virá ao de cima de forma tumultuosa. 

 A velha e já póstuma Comunidade Europeia foi feita pelos fundadores exactamente para não ser aquilo que é hoje, foi feita para garantir a paz através da partilha de recursos, da coesão e da igualdade das nações. Mas a essa Europa, que o merecia, ninguém deu prémio nenhum.

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© José Pacheco Pereira
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