ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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28.12.12
VIAGEM NO PASSADO POR CAUSA DO PRESENTE
Cartazes do CDS, 1976.
Hoje tudo é muito diferente em relação ao passado, mas também muita coisa é demasiadamente igual.
No final do século XIX, princípio do século XX, o
incipiente operariado português concentrava-se em poucas fábricas dignas
desse nome no Norte do país, em particular no Porto, e numa multidão de
pequenas oficinas em Lisboa e Setúbal e nas principais cidades do país.
Eram operários e operárias, tabaqueiros, têxteis, soldadores,
conserveiros, corticeiros, mineiros, padeiros, alfaiates, costureiras,
cinzeladores, cortadores de carnes verdes, carpinteiros, fragateiros,
estivadores, carregadores, carrejonas no Porto, carvoeiros, costureiras,
douradores, etc., etc. Havia uma multidão de criados e criadas, criadas
"de servir", e muito trabalho infantil em todas as profissões, em
particular nas mercearias, onde os marçanos viviam uma infância muitas
vezes brutal, dormindo na loja e carregando com cargas muito pesadas.
Falei em operariado, mas na verdade, muito poucos correspondem ao
conceito, porque se trata mais de artífices, trabalhadores
indiscriminados, e em muitos casos com profissões hierarquizadas em que
os aprendizes eram sujeitos a todos os abusos. Havia depois uma
aristocracia operária, essencialmente entre os que faziam tarefas
qualificadas e mais bem pagas, como era o caso dos tipógrafos, que
sabiam ler e por isso tinham um mundo social diferente. Antero de
Quental foi tipógrafo de passagem.
Deixo o campo de lado, em que a
maioria dos portugueses ainda vivia, onde havia igualmente um
território obscuro e pouco conhecido que despertou com a I República, os
trabalhadores rurais alentejanos. Estes viviam uma vida violenta e
esquecida no meio do deserto alentejano. Nos meios rurais vários grupos
de trabalhadores vegetavam na mais negra miséria e vendiam o seu
trabalho sazonalmente, nas vinhas do Douro, nos campos do Alentejo e
Ribatejo como maltezes e ratinhos. O que de mau se pode dizer das
cidades, pode-se dizer pior do campo ou das vilas piscatórias do litoral
e mineiras do interior.
A economia do mundo operário centrava-se
no salário muito escasso, na renda de casa, numa vila operária ou numa
"ilha" se fosse no Norte do país, onde se amontoavam em condições
higiénicas e sanitárias inimagináveis. A epidemia de cólera no Porto, e a
habitual ocorrência de tifo, demoraram muito anos a lembrar os
governantes do problema de insalubridade da "habitação operária" e deram
origem aos bairros sociais no salazarismo.
O vestuário masculino e
feminino era muito grosseiro, sarja, serapilheira, chita eram comuns e
os sapatos eram para usar aos domingos. Até à década de cinquenta do
século XX o pé descalço era um símbolo da pobreza portuguesa. Alpergatas
feitas com um bloco de madeira e uma tira de borracha de pneu eram o
calçado operário mais comum. As mulheres vestiam-se ainda como se
estivessem no campo e os homens já menos, mas mesmo assim o traje
operário, como o fato-macaco, demorou a tornar-se comum porque era caro.
A
alimentação era de péssima qualidade e a fome, e doenças associadas com
as carências alimentares, como o raquitismo, eram comuns. A tuberculose
era generalizada, e o alcoolismo um flagelo social. Eram igualmente
comuns os traços da varíola, da poliomielite, e em certas zonas do país
havia malária e kala-azar. Não havia dinheiro para ir ao médico e também
não havia muitos médicos e menos hospitais, já para não falar de
medicamentos. A dependência da caridade da igreja ou pública, sob formas
como a "sopa dos pobres", implicava regras de comportamento
disciplinares, subserviência e cabeça baixa. Havia muita mendicidade.
A
prostituição, a criminalidade e o roubo eram generalizados. Havia um
número elevado de "matriculadas" e um número ainda maior de mulheres que
se prestavam ocasionalmente à prostituição por razões económicas. A
violência sexual nas fábricas era uma forma de "direito de pernada" que
ninguém contestava e a violência nas famílias sobre as mulheres uma
hábito estabelecido. Em Lisboa a criminalidade "apache" de navalha,
vinho e fado era a regra, nos campos o assassínio bruto à paulada e a
machado associava-se ao roubo nos matos e ao incêndio de searas. A
reivindicação de polícia rural está alta na lista de todas as
associações de agricultores, como os senhorios urbanos temiam os seus
inquilinos.
A esmagadora maioria da população era analfabeta, e os
poucos que tinham algumas letras não passavam da instrução primária,
muitas vezes incompleta. No entanto, havia uma reverência à escola e à
instrução, como sinal de ascensão social. Para muitos pobres, o
seminário era a única escola possível.
Os trabalhadores não tinham
quaisquer direitos enquanto trabalhadores. Os patrões, fossem os
"industriais" com dinheiro brasileiro e títulos de barão e visconde, ou
os donos das pequenas oficinas de marcenaria ou de panificação, podiam
decidir tudo sobre os seus trabalhadores. Os horários podiam ser de sol a
sol, as condições de trabalho eram terríveis, os acidentes de trabalho e
as doenças profissionais comuns, as ordens de patrões e capatazes eram
indiscutíveis, os dias de doença não eram pagos, as faltas, por muito
justificadas que fossem, idem, e o despedimento não tinha qualquer
formalidade - chamava-se o trabalhador e "punha-se na rua". Ponto.
Durante
a segunda metade do século XIX, os operários começaram a organizar-se e
a reivindicar alguns muito escassos direitos. À medida que as antigas
corporações desapareciam, e com estas algumas confrarias que ofereciam
um escasso apoio social a grupos profissionais, apareciam associações
mutualistas que pretendiam em primeiro lugar garantir um funeral decente
em vez da carreta dos pobres e a vala comum, assim como algum apoio às
viúvas e aos filhos, que a morte deixava de imediato na pobreza
absoluta. Os peditórios eram comuns. Esse mundo da economia popular pode
ser visto por um observador atento que visite alguns bairros antigos de
Lisboa, onde encontra ainda restos da paisagem operária marcada pelas
lojas de penhor, pelas funerárias e pelas tabernas.
Os sindicatos,
no sentido moderno do termo, surgiram a partir das associações de
classe e de um espírito de resistência e auto-organização, que, não
sendo nunca muito forte, estabeleceu-se com tenacidade. Havia greves,
algumas violentas e tumultuárias, mas também era comum que um gesto
qualquer caritativo do patrão fizesse voltar os operários ao trabalho,
muito agradecidos com a benesse. A relação paternal entre o patrão e os
"seus" operários estava incrustada no tipo de relações sociais dominadas
pela clientela e pelo patrocinato. O caciquismo era a face política
dessas mesmas relações, a partidocracia actual a sua herdeira.
Do
seu lado, do lado das "classes laboriosas", havia muito pouca gente,
alguns raros filantropos com ideias progressistas, muitos filantropos
com ideias reacionárias, e, durante a sua breve vida, um Rei D. Pedro V.
E, pouco a pouco, legislação sobre o trabalho, as condições de
trabalho, a "previdência", e um embrião de um direito laboral foi
fixando horários, salários, regras, descontos, faltas, doenças,
obrigações, e, palavra maldita, do direito nasceram direitos adquiridos.
Estamos
a falar de cem, cento e cinquenta anos, mas saímos deste mundo há pouco
mais de cinco décadas, com muito sofrimento, esforço e trabalho,
consolidando melhorias e direitos. Na década de sessenta, a vida começou
a melhorar muito lentamente. A emigração representou a válvula de
escape para muita desta miséria, e na França, na Alemanha, como antes no
Brasil e Venezuela. Uma lenta mas construtiva industrialização,
iniciada nos anos cinquenta, e uma política de "fomento" permitiram,
junto com a economia colonial acicatada pela guerra, algum progresso
material. E Marcelo Caetano deu a reforma aos rurais e o 25 de Abril o
resto.
Foi um processo lento e nalguns aspectos pouco amável, que
incluiu uma revolução e alguma violência, cá e principalmente em
África. Conseguimos uma muito razoável integração dos "retornados", mais
eficaz pela plasticidade da sociedade portuguesa do que o que aconteceu
em França com os pieds noirs. Acabámos com os frutos malditos da
pilha de ouro entesourada no Banco de Portugal, a mortalidade infantil,
o analfabetismo, a pobreza, a absoluta desprotecção face aos
infortúnios do trabalho e da vida.
Melhorámos alguma coisa, mas
não muito. Mas foi tudo muito lento e muito tarde, o que significa que
os portugueses mais velhos ainda têm uma memória viva, muito
provavelmente biográfica, desta pobreza ancestral. Mesmo os que já não a
viveram sabiam pelos seus pais e avós que era assim, e isso significa,
ao mesmo tempo, um certo conformismo e alguma revolta.
O último
tempo onde mais negra foi a miséria portuguesa que ainda pode ser
lembrado pelos vivos foi por volta de 1943, o ano em que houve um
excedente da balança comercial que a imbecil ignorância actual se
permite louvar, sem saber do que está a falar. Ter havido excedentes na
balança foi bom, a razão por que isso aconteceu foi péssima. É essa
fractura entre a abstração e a realidade que torna obrigatório viajar
pelo passado por causa do presente. Tudo é muito diferente, mas também
muita coisa é demasiadamente igual. Esperemos que em 2013 não se torne
ainda mais parecida.
(Versão do Público de 22 de dezembro de 2012.)
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© José Pacheco Pereira
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