A
"crise" às claras, é melhor do que a "crise" às escuras. A crise aberta
é melhor do que a crise larvar. Um dia a larva passa a outra coisa e a
crise é muito pior. Há histórias terríveis do que as larvas podem fazer
dentro dos corpos. É melhor não experimentar, nem ver o Alien. Para além disso, de um modo geral, ganham as larvas.
A melhor metáfora sobre o efeito do
Orçamento deve-se a Bagão Félix: funciona como uma septicemia, infecta
tudo. É melhor do que o "terramoto fiscal" (do mesmo autor), da "bomba
atómica fiscal" (do PS), do "buraco negro" (de Manuela Ferreira Leite).
Todas estas imagens se centram num acto singular de destruição, brutal e
único, com tempo limitado. Estoura e depois reconstrói-se a partir dos
escombros. Não é assim. Fica por muito tempo. Infecta tudo.
O
Orçamento do Estado viola as leis da Física e é da ordem da magia. Pode
dizer no intróito que quer ir mais depressa do que a velocidade da luz.
Dizer pode, ir não pode.
Tem alguma ironia ver aqueles que elogiaram até aos limites o memorando da troika, que a consideraram o verdadeiro programa desejado para um governo ideal, que disseram que o "meu programa é o da troika", e até que o programa do PSD devia ser o da troika, que incorporaram o programa da troika no chamado pacto orçamental, de que já ninguém se lembra, agora andarem aí a dizer que o "desígnio nacional" é pôr a troika de novo fora de Portugal. Estamos mesmo a ver a genuinidade da reivindicação: "Troika fora de Portugal", antes os mercados do que a troika.
Não acreditem. Eles não querem ver a troika
longe, nem nada que se pareça. Estão a aplicar apenas uma receita
daquilo que algum assessor de "comunicação" lhes disse ser necessário
para haver "política", depois de ouvir o professor Marcelo. "Arranjem um
desígnio nacional para não ser só austeridade" - estou mesmo a ouvi-lo.
E alguém no fundo da sala disse: "Que se lixe a troika".
Um
povo não são os "meus colaboradores". Ou os "meus empregados". Ou "os
meus trabalhadores". Ou o "pessoal". Ou os "meus funcionários". O povo
não são "meus" coisa nenhuma.
Vocês é que são deles.
Um
povo não é uma abstracção a não ser na retórica política má. Não é o que
está nas ruas, como pensam a esquerda e Passos Coelho e Gaspar,
irmanados pela mesma ideia simples. É mais do que aquele que se
manifesta, mas também é o que se manifesta.
Uma regra é que para
cada um que dá a cara e o corpo na rua, "manifestando-se", dizendo que
existe e o que quer e o que não quer, há cem que não foram, mas
concordam, poderiam estar lá. Não é uma estatística brilhante para o
Governo.
Para evitar que todos percebam que é assim, e minimizar o
efeito devastador de uma rua à solta e hostil, não basta tentar
"engolir" as manifestações "boas" e ignorar as "más", é preciso fazer
alguma coisa mais. Se o Governo acha que a maioria dos portugueses está
com ele, tem que apelar à "boa rua" contra a "má rua". É um clássico.
Aliás, Passos Coelho sugeriu-o há algum tempo (pouco) com um apelo à
"maioria silenciosa" numa intervenção em que ninguém reparou, nem sequer
a "maioria silenciosa". Será que enche o Terreiro do Paço como os
comunistas da CGTP?
Reflexão para um governante peculiar: quando
o "melhor povo do mundo" me chama "gatuno", talvez seja melhor pensar
duas vezes. Ou muito mais vezes. Talvez o "melhor povo do mundo" não
seja assim tão bom. Vamos cauterizá-lo com impostos em nome do
patriotismo, a ver se ele melhora e se mostra outra vez "paciente".
Um país é um país. As regras são outras. Os métodos são outros. Os procedimentos são outros. As pessoas certas são outras.
Repita: as pessoas certas são outras.
As
escolhas de pessoas devem obedecer a outros critérios. Porque um país
não é uma empresa, não é uma burocracia, não é uma empresa de marketing,
não é uma consultora, não é um think tank, não é um blogue dos
"nossos", não é uma secção partidária, nem um "grupo geracional" vindo
de uma "jota" qualquer a tomar o poder.
O modo como as coisas funcionam num país é outro.
O modo como as coisas não funcionam é outro.
A ciência é outra. O ruído é outro.
O sucesso tem regras diferentes. O fracasso tem regras diferentes.
Há coisas parecidas por analogia, mas não por homologia.
Há uma regra
simples: sempre que encontra uma "inevitabilidade", o pensamento
soçobra. É assim o pensamento balofo em que estamos mergulhados até ao
pescoço. Um pensamento de banalidades, que nunca as pensa, que as aceita
como manifestações da verdade revelada, que as faz circular como se
fossem incontestáveis. Que evita deixar o terreno do pântano, da
estagnação, da apatia, da preguiça, da complacência, da subserviência
aos poderosos e à moda, para ir para outras terras mais árduas e
arriscadas, mas outras terras que também existem. Muitas vezes chegamos
lá da pior maneira, por acaso e tarde de mais para evitar mais
desgraças, mas, insisto, as terras estão lá. Mas sem risco não se chega
lá. Os liberais, os amigos da liberdade, que prezam o risco, deviam dar o
exemplo. No fundo, já não há muita coisa para perder.
Há
pensamento balofo a mais. Repetido. Impensado, uma contradição nos
termos. Que repete todos os rodriguinhos que por aí circulam. Uns a
favor e outros contra. "A culpa é dos funcionários públicos", "a crise
seria uma desgraça porque ficávamos como a Grécia", "não somos como a
Grécia", "é preciso antes que tudo manter a estabilidade política", "a
troika que se lixe", "não há políticas de crescimento", "a nossa carga
fiscal ainda é baixa" (sim, há quem diga isto), "o nosso ajustamento
está a correr melhor do que o esperado", "restaurámos a credibilidade de
Portugal nos mercados", "o Governo tem um problema de comunicação",
"estas políticas são inevitáveis", "não há alternativas", "ninguém
apresenta alternativas", "as manifestações ameaçam fazer perder tudo o
que o Governo conseguiu no último ano", "precisamos de mais tempo e de
mais dinheiro", "enquanto a Europa não mudar, não podemos fazer nada",
"só o federalismo e a cedência de soberania podem resolver o nosso
problema", "não se muda de direcção a meio do caminho", "há muita coisa a
correr bem", "é necessário baixar salários para sermos competitivos",
"cortar nas despesas é cortar nas funções sociais do Estado", "estamos a
fazer todos os esforços para cortar na despesa pública", "se este
orçamento não passar, daí a uma semana não há dinheiro para pagar
salários", "não há crise política", "o comunicado do CDS acabou com a
crise política", "as medidas são boas, foram é mal explicadas", "vamos
cumprir os números do défice custe o que custar", "não cumprimos este
ano, mas a troika, para nos premiar por tentarmos, deu-nos mais um ano",
"a recessão é inevitável", "desemprego é inevitável", "quando é que
saímos da recessão? Não se pode saber", "o modelo não funcionou? Bem
pelo contrário, funciona perfeitamente", etc.
Por exemplo, está-se sempre a dizer que este é um OE “de alto risco”. Tomemos à letra que sim, há muitas probabilidades (há quem diga que todas) de falhar como falhou o de 2012, pelos mesmos motivos: expectativas irrealistas sobre a economia e efeitos “surpreendentes” no consumo e no desemprego, que se reflectem nas receitas. Muito bem. E se escolhêssemos outro tipo de “riscos”, que não seriam maiores do que estes? E se, por uma cuidada gestão do peso e distribuição dos impostos, se contasse beneficiar certos sectores da economia real para aí encontrar algum incremento de actividade e salvaguardas para o aumento do desemprego, e assim também garantir mais receitas virtuosas e não perversas?
Insisto, soluções dentro da economia real e não na economia desejada pelo wishfull thinking governamental, que, enquanto destrói a economia que existe, orienta-se (pouco e mal) para a que não existe e cujas condições de existência acaba por pôr em causa. É um caso clássico de Lei de Murphy.
HÁ ALTERNATIVAS PARA ESTE ORÇAMENTO? CLARO QUE HÁ.
REPITO: SIM QUANTAS VEZES FOR PRECISO DIZER
O OE é preparado por mais de uma centena de pessoas nos diferentes ministérios, nas secretarias de estado, em particular nos serviços das Finanças e analisado no detalhe por consultoras financeiras e consultores individuais contratados pelo governo. Presumo que algumas consultas jurídicas também foram feitas, para avaliar das inconstitucionalidades, mas pelos resultados anteriores a qualidade dessas consultas não é por aí além. A elaboração de um OE é uma matéria complexa e que mobiliza recursos consideráveis, tempo, informação, dinheiro e pessoas, e não está nas mãos de qualquer particular, sozinho ou em grupo, dar-lhe uma “alternativa” numa forma semelhante.
Por isso, ao OE não há “alternativa” com o mesmo peso, a mesma elaboração, a mesma informação, o mesmo detalhe. Mas há bastantes alternativas à cabeça, nas opções a tomar, mesmo no quadro do cumprimento do memorando. A grande mistificação do “não há alternativas” é querer-nos convencer que as opções tomadas representam a única forma de cumprir os objectivos do memorando com algum realismo. Aliás, a alternativa do governo é que já mostrou não ser alternativa porque, no primeiro ano crucial, falhou, falhou por muito e falhou exactamente naquilo que muitos disseram que ia falhar.
HÁ ALTERNATIVAS PARA “ESTA” FORMA DE AUSTERIDADE? SIM.
Se há alternativas ao Orçamento de Estado (OE) apresentado pelo governo? É obvio que sim, a não ser que consideremos que o OE é o primeiro documento cientifico que as Finanças produziram desde que os homens fazem contas entre o deve e o haver. E por muito génio escondido que haja na cabeça ministerial, ele está na fase daquele aluno de Niels Bohr a quem este disse: “a sua teoria é louca, mas não suficientemente louca para ser verdadeira”.
A resposta à pergunta sobre o OE é inquinada porque a pergunta engana-nos quanto ao tempo e à coisa sobre a qual há alternativa. É que a alternativa ao OE é à cabeça e não no fim, é no momento em que alguém se sentou à mesa, o solitário Gaspar, e delineou as linhas gerais do OE, as comunica à troika, que diz que sim com todas as partes do corpo. Depois, Gaspar comunica a Passos o facto mais ou menos consumado, e Passos repete o gesto da troika. É nesta altura que, pensando-se diferente, se fazia diferente. Chegando-se na mesma ao cumprimento do memorando, com mais ou menos latitude. E não me venham dizer que não há “margem”, porque também não havia para 2012 e vai ter que haver. E não faltam propostas, o que não encaixam é nestas opções deste OE.
Coloquemos a questão de novo. Se a pergunta for “não há
alternativas para a austeridade”, a resposta correcta é não. Seja de que forma
for, mesmo que houvesse uma revolução salvífica, com os trotsquistas do Bloco a
fazer discursos nas barricadas, o Otelo a fazer planos para um novo Campo
Pequeno, os comunistas a conduzirem o assalto dos “soldados de Abril”, haveria
na mesma austeridade, ou seja, as pessoas a viverem pior. A não haver um
milagre de multiplicação de qualquer coisa, pão, ouro, petróleo, divisas, gente
honesta, por obra divina,não há maneira
de escapar a um período difícil, àquilo a que chamamos benevolamente
“austeridade”. Não é essa a questão, nem é isso que dizem os que afirmam haver
alternativas.
A “FALTA DE ALTERNATIVAS” COMO PESTICIDA PARA O DEBATE
O principal argumento governamental usado e abusado pelos seus defensores e parodiado pelos seus propagandistas, e um must da pauperização do debate parlamentar, é a pergunta “então quais são as alternativas?”. É como se fosse um pesticida mortífero, uma espécie de DDT nos anos cinquenta, uma arma de devastação para os insectos. Chegou para matar uma enorme quantidade de insectos, mas gerou um considerável problema: matou mais coisas e os que escaparam deram origem a uma nova geração de insectos com resistência ao DDT e vastos recursos de comida para se alimentar sem grande competição.
With usura hath no man a house of good stone each block cut smooth and well fitting that design might cover their face, with usura hath no man a painted paradise on his church wall harpes et luz or where virgin receiveth message and halo projects from incision, with usura seeth no man Gonzaga his heirs and his concubines no picture is made to endure nor to live with but it is made to sell and sell quickly with usura, sin against nature, is thy bread ever more stale rags is thy bread dry as paper, no mountain wheat, no strong flour With usura the line grows thick with usura is no clear demarcation and no man can find site for his dwelling. Stonecutter is kept from his stone weaver is kept from his loom WITH USURA wool comes not to market sheep bringeth no gain with usura Usura is a murrain, usura blunteth the needle in the maid's hand and stoppeth the spinner's cunning. Pietro Lombardo came not by usura Duccio came not by usura nor Pier della Francesca; Zuan Bellin' not by usura nor was "La Calunnia" painted. Came not by usura Angelico; came not Ambrogio Praedis, Came no church of cut stone signed: Adamo me fecit. Not by usura Saint Trophime Not by usura Saint Hilaire, Usura rusteth the chisel It rusteth the craft and the craftsman It gnaweth the thread in the loom None learneth to weave gold in her pattern; Azure hath a canker by usura; cramoisi is unbroidered Emerald findeth no Memling. Usura slayeth the child in the womb It stayeth the young man's courting It hath brought palsy to bed, lyeth between the young bride and her bridegroom. CONTRA NATURAM They have brought whores for Eleusis Corpses are set to banquet at behest of usura.
… foi contratar uma agência de comunicação. Eu pensava que toda a RTP servia para “comunicar” pelo que não precisava de agências de comunicação para nada. É como se um jornal contratasse assessores de imprensa.
E se o governo estivesse deliberadamente, com mais ou menos consciência do que está a fazer, a suicidar-se para fugir à sua incapacidade em governar? É que há aspectos neste Orçamento de Estado que são tão grosseiramente errados, que podem apontar para outra intenção. Se por exemplo, o Orçamento de estado contiver inconstitucionalidades que nenhum “estado de emergência” pode justificar? Não é esse o pretexto ideal para a parte mais politiqueira do governo, o seu coração “político”, sair como vítima do Tribunal Constitucional e a dizer “nós tentamos, mas não nos deixaram” e retomar o “business as usual”? Para quem os conheça, é uma hipótese a considerar, porque são mesmo capazes disso.
A DITADURA DAS FINANÇAS (3): O QUE É IMPOSSÍVEL, IMPOSSÍVEL CONTINUA
Mas se o estado pode muito, e o estado fiscal pode ainda mais, não podem tudo. Não podem fazer com que quem não tem dinheiro para pagar impostos os pague. Podem ir-lhes buscar o salário, e, quando existem, as contas bancárias, os carros, as casas, tudo e mais alguma coisa, mas se não há dinheiro. Podem levar uma família ao calvário de todos os incumprimentos, podem executar tudo o que há, podem levar uma pequena empresa, ou média, ou grande, à falência, mas se não há dinheiro para pagar os brutais impostos, não há. Podem até introduzir a prisão por dívidas, ou quiçá a escravatura por dívidas, podem por um polícia fiscal em cada loja, mercado, restaurante, courela, feira da ladra, mesada de pais para filhos, presente de namoro, funeral, e taxar o atravessar das ruas, mas se não há dinheiro, não há. Ponto.
O estado pode muito, pode estragar a vida a milhões de pessoas, mas não as pode fazer pagar o que não têm. Em 2013 esta vai ser a grande lição aos soberbos, ignorantes espertos, aprendizes de feiticeiros, e aos medíocres arrogantes. Infelizmente esta lição vai sair muito cara a todos os portugueses.
A DITADURA DAS FINANÇAS (2): A EVASÃO FISCAL É OUTRA MATÉRIA
Não estou a falar da evasão fiscal, pequena, média e grande, que isso é outra matéria. Matéria que não quero tratar como o fisco a trata: qualquer protesto ou reclamação é sempre de um culpado. A evasão fiscal é um efeito social: em baixo, uma reacção ao abuso fiscal pela “economia paralela”, em cima um crime habitual e seguro, premiado sempre por razões económicas com amnistias e retornos do dinheiro dos offshores a taxas nominais. Para além disso, os ricos podem fazer “planeamento fiscal”, e litigar o tempo que entenderem e, como as prepotências do fisco são muitas, legitimamente ganhar. Todos os outros não podem pagar à cabeça e depois andar anos pelos tribunais, porque não têm dinheiro para pagar advogados, custas e tempo para esperar antes das execuções e das falências. Até aqui, na possibilidade de defesa, o fisco é de uma monstruosidade má-fé com a gente comum.
Uma
das mais injustas fórmulas, sabiamente explorada por este Governo, é a
que "substituiu" as medidas mais gravosas de austeridade por "cortes na
despesa pública". Treta. Substituiu algumas medidas de austeridade
genérica por outras de austeridade dirigida. Para quem? Surpresa! Para
os funcionários públicos. Fê-lo, como faz tudo, de forma pontual e aos
arranques e recuos, conforme o medo de Portas, do PSD, da rua e da
opinião pública.
De há um ano para cá que uma das linhas de
continuidade da actuação deste Governo tem sido uma hostilidade profunda
dirigida contra os trabalhadores da função pública, que encontra mais
uma vez expressão nas medidas do actual orçamento. Começou por ser
hostilidade, patente logo no dia seguinte ao primeiro anúncio dos cortes
dos subsídios de Natal e de férias, faz agora um ano, quando Passos
Coelho incitou claramente ao confronto entre trabalhadores privados
contra os "privilegiados" da função pública. Depois da decisão do
Tribunal Constitucional, a atitude do Governo, a começar pelo
primeiro-ministro, passou de hostilidade à vingança, como se todos os
meios, "custasse o que custasse", fossem usados para evitar que os
trabalhadores da função pública "escapassem" aos cortes. Os próprios
juízes foram enxovalhados com a acusação entre dentes de que tinham
decidido em causa própria, para proteger os seus subsídios, exactamente
porque eram... funcionários públicos. As mesmas insinuações foram
dirigidas ao Presidente, ele próprio também funcionário público, como
professor e funcionário do Banco de Portugal.
A palavra
"equidade" tornou-se quase um insulto e as medidas governamentais são
cada vez mais punição e vingança. "Cortar as despesas do Estado", esse
"enorme esforço" que o Governo tem andado a fazer nos últimos dias,
assim revelado mais uma vez como impreparadas e inconsistentes são as
medidas que anuncia, não significa outra coisa que não seja passar cada
vez mais o peso do défice para os trabalhadores da função pública.
Procede-se, aliás, com dolo, quebrando todos os contratos feitos já por
este Governo, despedindo na função pública dezenas de milhares de
trabalhadores contratados, e estipulando medidas muito mais gravosas do
que as que conhece quem tem emprego no sector privado. Como se verá,
muitas são ilegais e transformam o Estado no mais selvagem e prepotente
dos patrões, roçando algumas medidas o puro cinismo, como seja a
atribuição das condições de reforma aos trabalhadores não na base da
situação existente quando a pediram, mas quando a administração lhes
entende responder: basta a administração atrasar burocraticamente os
processos quanto tempo for preciso, para que os trabalhadores recebam
apenas o que o Estado quer e não aquilo a que tem direito à data do seu
pedido. Isto no privado, tão adulado por alguns próceres governamentais,
seria um crime.
O par que controla o poder político em Portugal - e saliento que não digo o poder tout court
- não é constituído por funcionários públicos, nem a maioria dos
governantes teve essa carreira. Há excepções, como é o caso dos
professores, como Crato, mas Passos Coelho, Miguel Relvas, Aguiar
Branco, Miguel Macedo, Paula Teixeira da Cruz, o núcleo duro partidário
do PSD, tem carreiras de dois tipos: ou na advocacia, ou num "privado"
muito especial, aquele que vive da dependência do Estado e das decisões
políticas seja a nível central, seja a nível autárquico.
Os
casos de Passos e Relvas são típicos, porque uma parte fundamental da
sua carreira é feita dentro dos partidos, nas "jotas", passam pelos
cargos mais ligados ao controlo político "distributivo" no Governo
(Relvas) e são empregados por terceiros em empresas em que as redes de
ligação com o poder político são fundamentais para aceder aos
"negócios". Uma frase esquecida de Ilídio Pinho quando dizia que ter
acesso ao poder político valia um milhão de contos traduz bem a
utilidade dos políticos para os seus patrões privados. As contas ainda
eram em escudos, mas toda a gente percebeu de que é que ele falava.
Essas
áreas incluem a formação, no tempo áureo dos fundos, e depois nos
sectores como o ambiente, energias renováveis, resíduos e construção,
tudo áreas que conheceram grande expansão com dinheiros públicos nos
últimos anos. O caso da Tecnoforma, envolvendo Passos e Relvas, é típico
de uma espécie de empresas "jota", em que pessoas com carreiras
políticas interdependentes entre si se organizam para aproveitar as
oportunidades que o acesso ao poder político cria. Este tipo de
processos é transversal aos dois partidos, PS e PSD, e acentuou-se nos
momentos em que o dinheiro fácil, com os fundos comunitários e com um
Estado gastador, permitiram todo o tipo de "negócios". Uns são
gigantescos, como as PPP, e outros medíocres, como o das empresas de
"formação", mas são da mesma natureza e têm o mesmo perfil de
protagonistas.
Não é por acaso que o "privado" que encontramos nos curricula
governamentais, como estes de que falamos, é sempre do mesmo tipo. Não
encontramos nunca nenhum genuíno empresário que já estivesse "feito"
antes de ir para o Governo. Embora não haja nenhuma área empresarial que
não dependa de decisões estatais com alto grau de discricionariedade,
um dos piores sinais do nosso atraso, o "privado" que chega ao Governo
não tem ninguém do sector agro-pecuário, nenhum empresário industrial,
nenhum da panificação, nenhum proprietário de restaurante, nem sequer
nenhum verdadeiro pequeno empreiteiro, que tantos os há hoje na miséria.
Não há razão nenhuma para estes empresários não terem a mesma vontade
de intervenção política do que os juvenis político-gestores, mas por
muito amor ao privado da retórica ideológica, a verdade é que estas
pessoas não sobrevivem nos partidos, porque são demasiado independentes
do jogo permanente de carreiras que, das "jotas" ao topo, marca hoje os
partidos.
Por isso, nunca temos no topo do poder partidário e
governamental outro tipo de privado que não seja o fortemente dependente
do poder e das redes de conhecimentos pessoais, assentes na
interdependência e na confiança. É por isso que não adianta dizer que
tudo se passou de Barroso a Sócrates, umas vezes com o PS e outras com o
PSD, como se isso atestasse a lisura dos processos, porque a única
coisa que muda é o peso relativo dos partidos no bolo, mas estão sempre
os dois representados e os mecanismos eficazes são sempre de "bloco
central".
O caso da função pública em Portugal não é muito
diferente do que acontece noutros países, em que a regra é que não haja
condições de inteira equivalência entre o privado e o público. Em parte,
porque a qualificação média no público é superior ao privado, logo os
salários tendem a ser mais altos. Depois, porque nos países com
burocracias independentes, como no caso inglês, a mais direitos
correspondem mais deveres. E em Portugal, em períodos de expansão, houve
idêntico trade off: os salários da função pública permaneciam
muito baixos, como contrapartida às garantias de emprego. Depois, houve
um período de esbanjamento e facilitismo por responsabilidade clientelar
do poder político, que dá hoje o flanco da função pública ao
ressentimento social.
Tem a função pública pessoas a mais? Tem
certamente e, acima de tudo, mal distribuídas, mas a racionalização
desses recursos para poupar despesas não foi feita nem está a ser feita.
Despedir e cortar direitos é mais fácil do que saber "gerir", como diz
Teodora Cardoso, que não é conhecida por ser meiga quanto à consolidação
orçamental.
É a função pública politizada e, nos últimos anos,
partidarizada? É e muito, mas não é isso que estas medidas combatem.
Pelo contrário, o Estado vai ficar ainda mais dependente do poder
político, mesmo nas áreas que tinham alguma autonomia como as forças
armadas. A politização da função pública em Portugal não começou com a
democracia. O Estado Novo salazarista e caetanista institucionalizou
essa relação, obrigando os funcionários públicos a assinar uma
declaração "anticomunista", e punindo com a expulsão todos os
oposicionistas, desde a Ditadura Militar até ao caetanismo na Capela do
Rato. A cunha política e o patrocinato eram uma regra generalizada e a
União Nacional funcionava como uma enorme máquina de distribuir favores e
prebendas através de lugares, de contínuos a directores-gerais.
Depois
do 25 de Abril, este processo democratizou-se e os partidos tomaram
conta do Estado, um processo acentuado nos últimos vinte anos. Não tenho
dúvidas em afirmar que este é um dos problemas mais graves da nossa
democracia, mas nenhuma destas medidas diminui esse poder, bem pelo
contrário. Veja-se como decorreu o processo de privatizações, como são
feitas as nomeações de "sempre os mesmos", como a acesso ao poder
político permanece sempre nos mesmos círculos, da banca aos grandes
escritórios de advogados, da consultadoria económica à intermediação,
para perceber que, em períodos de crise, pelo menos os de cima continuam
na mesma a mandar e a ganhar.
Numa altura de crise económica, é
natural que muitos desempregados olhem com algum ressabiamento para os
funcionários públicos que lhes parecem privilegiados, e nalguns casos
são-no. Mas alimentar este tipo de atitudes como o Governo faz é muito
perigoso para a democracia, porque um Estado estragado e ineficaz é
pasto livre para haver ainda mais partidocracia. Também por isso, a
noção de Estado e de serviço público, fundamental num Estado
democrático, assente em burocracias de mérito, deveria ser preservada se
houvesse "sentido de Estado", o que não há.
O estado fiscal é, em democracia, a zona do estado em que a relação de poderes e direitos entre o cidadão e o estado é mais desigual. Por isso, o estado fiscal, que desde Sócrates viu crescer todo o tipo de prepotências e violação de direitos na relação entre o contribuinte e o fisco, aproxima-se de práticas totalitárias. Por exemplo, o princípio do ónus da prova não existe no fisco: todos têm que provar que não são culpados, porque o fisco os considera à partida culpados. Um vasto conjunto de práticas iníquas e desiguais está estabelecido em regulamentos, disposições, decretos, decisões. Um elevado grau de discricionariedade existe nas decisões fiscais, o que leva a que o fisco sirva para perseguir inimigos políticos, como já se viu, vê e verá. A má fé do estado está embrenhada no fisco como granito. Não é preciso ir mais longe do que a legislação do IMI, a sua actualização arbitrária, a desigualdade em que está o cidadão ao defender-se de decisões que podem ser grosseiramente erradas, datas erradas, áreas erradas, localizações erradas, critérios errados, e que se forem corrigidas, o que muitas vezes nunca acontece, só o são depois de uma litigância absurda e cara, inacessível a muitos portugueses, pagando sempre tudo à cabeça, sem qualquer obrigação do estado em indemnizar pelos seus erros. Quem diz o IMI, diz todos os outros impostos.
Daqui a seis meses, mais dia menos dia, ou até antes, ver-se-á que tudo está, nem sequer na mesma, mas pior. E foram mais seis meses de sacrifícios sem sentido para milhões de portugueses, o Sísifo empurrando a pedra eternamente, como punição infernal "por viver acima das suas posses". Nessa altura, ou antes, o governo cai, os governantes voltam ao "privado" de onde nunca saíram, uns por cima como mandantes, outros por baixo como empregados, o sistema político sofre de uma "italianização" nas urnas, se o caminho for de eleições, e cada peça do corpo institucional, Presidente, partidos, Tribunal, ficará a contorcer-se para o seu lado, sem nexo. E este não é o pior cenário. Há pior. O problema é que todos sabem disto e ninguém faz nada.