Uma
das mais injustas fórmulas, sabiamente explorada por este Governo, é a
que "substituiu" as medidas mais gravosas de austeridade por "cortes na
despesa pública". Treta. Substituiu algumas medidas de austeridade
genérica por outras de austeridade dirigida. Para quem? Surpresa! Para
os funcionários públicos. Fê-lo, como faz tudo, de forma pontual e aos
arranques e recuos, conforme o medo de Portas, do PSD, da rua e da
opinião pública.
De há um ano para cá que uma das linhas de continuidade da actuação deste Governo tem sido uma hostilidade profunda dirigida contra os trabalhadores da função pública, que encontra mais uma vez expressão nas medidas do actual orçamento. Começou por ser hostilidade, patente logo no dia seguinte ao primeiro anúncio dos cortes dos subsídios de Natal e de férias, faz agora um ano, quando Passos Coelho incitou claramente ao confronto entre trabalhadores privados contra os "privilegiados" da função pública. Depois da decisão do Tribunal Constitucional, a atitude do Governo, a começar pelo primeiro-ministro, passou de hostilidade à vingança, como se todos os meios, "custasse o que custasse", fossem usados para evitar que os trabalhadores da função pública "escapassem" aos cortes. Os próprios juízes foram enxovalhados com a acusação entre dentes de que tinham decidido em causa própria, para proteger os seus subsídios, exactamente porque eram... funcionários públicos. As mesmas insinuações foram dirigidas ao Presidente, ele próprio também funcionário público, como professor e funcionário do Banco de Portugal.
A palavra "equidade" tornou-se quase um insulto e as medidas governamentais são cada vez mais punição e vingança. "Cortar as despesas do Estado", esse "enorme esforço" que o Governo tem andado a fazer nos últimos dias, assim revelado mais uma vez como impreparadas e inconsistentes são as medidas que anuncia, não significa outra coisa que não seja passar cada vez mais o peso do défice para os trabalhadores da função pública. Procede-se, aliás, com dolo, quebrando todos os contratos feitos já por este Governo, despedindo na função pública dezenas de milhares de trabalhadores contratados, e estipulando medidas muito mais gravosas do que as que conhece quem tem emprego no sector privado. Como se verá, muitas são ilegais e transformam o Estado no mais selvagem e prepotente dos patrões, roçando algumas medidas o puro cinismo, como seja a atribuição das condições de reforma aos trabalhadores não na base da situação existente quando a pediram, mas quando a administração lhes entende responder: basta a administração atrasar burocraticamente os processos quanto tempo for preciso, para que os trabalhadores recebam apenas o que o Estado quer e não aquilo a que tem direito à data do seu pedido. Isto no privado, tão adulado por alguns próceres governamentais, seria um crime.
O par que controla o poder político em Portugal - e saliento que não digo o poder tout court - não é constituído por funcionários públicos, nem a maioria dos governantes teve essa carreira. Há excepções, como é o caso dos professores, como Crato, mas Passos Coelho, Miguel Relvas, Aguiar Branco, Miguel Macedo, Paula Teixeira da Cruz, o núcleo duro partidário do PSD, tem carreiras de dois tipos: ou na advocacia, ou num "privado" muito especial, aquele que vive da dependência do Estado e das decisões políticas seja a nível central, seja a nível autárquico.
Os casos de Passos e Relvas são típicos, porque uma parte fundamental da sua carreira é feita dentro dos partidos, nas "jotas", passam pelos cargos mais ligados ao controlo político "distributivo" no Governo (Relvas) e são empregados por terceiros em empresas em que as redes de ligação com o poder político são fundamentais para aceder aos "negócios". Uma frase esquecida de Ilídio Pinho quando dizia que ter acesso ao poder político valia um milhão de contos traduz bem a utilidade dos políticos para os seus patrões privados. As contas ainda eram em escudos, mas toda a gente percebeu de que é que ele falava.
Essas áreas incluem a formação, no tempo áureo dos fundos, e depois nos sectores como o ambiente, energias renováveis, resíduos e construção, tudo áreas que conheceram grande expansão com dinheiros públicos nos últimos anos. O caso da Tecnoforma, envolvendo Passos e Relvas, é típico de uma espécie de empresas "jota", em que pessoas com carreiras políticas interdependentes entre si se organizam para aproveitar as oportunidades que o acesso ao poder político cria. Este tipo de processos é transversal aos dois partidos, PS e PSD, e acentuou-se nos momentos em que o dinheiro fácil, com os fundos comunitários e com um Estado gastador, permitiram todo o tipo de "negócios". Uns são gigantescos, como as PPP, e outros medíocres, como o das empresas de "formação", mas são da mesma natureza e têm o mesmo perfil de protagonistas.
Não é por acaso que o "privado" que encontramos nos curricula governamentais, como estes de que falamos, é sempre do mesmo tipo. Não encontramos nunca nenhum genuíno empresário que já estivesse "feito" antes de ir para o Governo. Embora não haja nenhuma área empresarial que não dependa de decisões estatais com alto grau de discricionariedade, um dos piores sinais do nosso atraso, o "privado" que chega ao Governo não tem ninguém do sector agro-pecuário, nenhum empresário industrial, nenhum da panificação, nenhum proprietário de restaurante, nem sequer nenhum verdadeiro pequeno empreiteiro, que tantos os há hoje na miséria. Não há razão nenhuma para estes empresários não terem a mesma vontade de intervenção política do que os juvenis político-gestores, mas por muito amor ao privado da retórica ideológica, a verdade é que estas pessoas não sobrevivem nos partidos, porque são demasiado independentes do jogo permanente de carreiras que, das "jotas" ao topo, marca hoje os partidos.
Por isso, nunca temos no topo do poder partidário e governamental outro tipo de privado que não seja o fortemente dependente do poder e das redes de conhecimentos pessoais, assentes na interdependência e na confiança. É por isso que não adianta dizer que tudo se passou de Barroso a Sócrates, umas vezes com o PS e outras com o PSD, como se isso atestasse a lisura dos processos, porque a única coisa que muda é o peso relativo dos partidos no bolo, mas estão sempre os dois representados e os mecanismos eficazes são sempre de "bloco central".
O caso da função pública em Portugal não é muito diferente do que acontece noutros países, em que a regra é que não haja condições de inteira equivalência entre o privado e o público. Em parte, porque a qualificação média no público é superior ao privado, logo os salários tendem a ser mais altos. Depois, porque nos países com burocracias independentes, como no caso inglês, a mais direitos correspondem mais deveres. E em Portugal, em períodos de expansão, houve idêntico trade off: os salários da função pública permaneciam muito baixos, como contrapartida às garantias de emprego. Depois, houve um período de esbanjamento e facilitismo por responsabilidade clientelar do poder político, que dá hoje o flanco da função pública ao ressentimento social.
Tem a função pública pessoas a mais? Tem certamente e, acima de tudo, mal distribuídas, mas a racionalização desses recursos para poupar despesas não foi feita nem está a ser feita. Despedir e cortar direitos é mais fácil do que saber "gerir", como diz Teodora Cardoso, que não é conhecida por ser meiga quanto à consolidação orçamental.
É a função pública politizada e, nos últimos anos, partidarizada? É e muito, mas não é isso que estas medidas combatem. Pelo contrário, o Estado vai ficar ainda mais dependente do poder político, mesmo nas áreas que tinham alguma autonomia como as forças armadas. A politização da função pública em Portugal não começou com a democracia. O Estado Novo salazarista e caetanista institucionalizou essa relação, obrigando os funcionários públicos a assinar uma declaração "anticomunista", e punindo com a expulsão todos os oposicionistas, desde a Ditadura Militar até ao caetanismo na Capela do Rato. A cunha política e o patrocinato eram uma regra generalizada e a União Nacional funcionava como uma enorme máquina de distribuir favores e prebendas através de lugares, de contínuos a directores-gerais.
Depois do 25 de Abril, este processo democratizou-se e os partidos tomaram conta do Estado, um processo acentuado nos últimos vinte anos. Não tenho dúvidas em afirmar que este é um dos problemas mais graves da nossa democracia, mas nenhuma destas medidas diminui esse poder, bem pelo contrário. Veja-se como decorreu o processo de privatizações, como são feitas as nomeações de "sempre os mesmos", como a acesso ao poder político permanece sempre nos mesmos círculos, da banca aos grandes escritórios de advogados, da consultadoria económica à intermediação, para perceber que, em períodos de crise, pelo menos os de cima continuam na mesma a mandar e a ganhar.
Numa altura de crise económica, é natural que muitos desempregados olhem com algum ressabiamento para os funcionários públicos que lhes parecem privilegiados, e nalguns casos são-no. Mas alimentar este tipo de atitudes como o Governo faz é muito perigoso para a democracia, porque um Estado estragado e ineficaz é pasto livre para haver ainda mais partidocracia. Também por isso, a noção de Estado e de serviço público, fundamental num Estado democrático, assente em burocracias de mérito, deveria ser preservada se houvesse "sentido de Estado", o que não há.
De há um ano para cá que uma das linhas de continuidade da actuação deste Governo tem sido uma hostilidade profunda dirigida contra os trabalhadores da função pública, que encontra mais uma vez expressão nas medidas do actual orçamento. Começou por ser hostilidade, patente logo no dia seguinte ao primeiro anúncio dos cortes dos subsídios de Natal e de férias, faz agora um ano, quando Passos Coelho incitou claramente ao confronto entre trabalhadores privados contra os "privilegiados" da função pública. Depois da decisão do Tribunal Constitucional, a atitude do Governo, a começar pelo primeiro-ministro, passou de hostilidade à vingança, como se todos os meios, "custasse o que custasse", fossem usados para evitar que os trabalhadores da função pública "escapassem" aos cortes. Os próprios juízes foram enxovalhados com a acusação entre dentes de que tinham decidido em causa própria, para proteger os seus subsídios, exactamente porque eram... funcionários públicos. As mesmas insinuações foram dirigidas ao Presidente, ele próprio também funcionário público, como professor e funcionário do Banco de Portugal.
A palavra "equidade" tornou-se quase um insulto e as medidas governamentais são cada vez mais punição e vingança. "Cortar as despesas do Estado", esse "enorme esforço" que o Governo tem andado a fazer nos últimos dias, assim revelado mais uma vez como impreparadas e inconsistentes são as medidas que anuncia, não significa outra coisa que não seja passar cada vez mais o peso do défice para os trabalhadores da função pública. Procede-se, aliás, com dolo, quebrando todos os contratos feitos já por este Governo, despedindo na função pública dezenas de milhares de trabalhadores contratados, e estipulando medidas muito mais gravosas do que as que conhece quem tem emprego no sector privado. Como se verá, muitas são ilegais e transformam o Estado no mais selvagem e prepotente dos patrões, roçando algumas medidas o puro cinismo, como seja a atribuição das condições de reforma aos trabalhadores não na base da situação existente quando a pediram, mas quando a administração lhes entende responder: basta a administração atrasar burocraticamente os processos quanto tempo for preciso, para que os trabalhadores recebam apenas o que o Estado quer e não aquilo a que tem direito à data do seu pedido. Isto no privado, tão adulado por alguns próceres governamentais, seria um crime.
O par que controla o poder político em Portugal - e saliento que não digo o poder tout court - não é constituído por funcionários públicos, nem a maioria dos governantes teve essa carreira. Há excepções, como é o caso dos professores, como Crato, mas Passos Coelho, Miguel Relvas, Aguiar Branco, Miguel Macedo, Paula Teixeira da Cruz, o núcleo duro partidário do PSD, tem carreiras de dois tipos: ou na advocacia, ou num "privado" muito especial, aquele que vive da dependência do Estado e das decisões políticas seja a nível central, seja a nível autárquico.
Os casos de Passos e Relvas são típicos, porque uma parte fundamental da sua carreira é feita dentro dos partidos, nas "jotas", passam pelos cargos mais ligados ao controlo político "distributivo" no Governo (Relvas) e são empregados por terceiros em empresas em que as redes de ligação com o poder político são fundamentais para aceder aos "negócios". Uma frase esquecida de Ilídio Pinho quando dizia que ter acesso ao poder político valia um milhão de contos traduz bem a utilidade dos políticos para os seus patrões privados. As contas ainda eram em escudos, mas toda a gente percebeu de que é que ele falava.
Essas áreas incluem a formação, no tempo áureo dos fundos, e depois nos sectores como o ambiente, energias renováveis, resíduos e construção, tudo áreas que conheceram grande expansão com dinheiros públicos nos últimos anos. O caso da Tecnoforma, envolvendo Passos e Relvas, é típico de uma espécie de empresas "jota", em que pessoas com carreiras políticas interdependentes entre si se organizam para aproveitar as oportunidades que o acesso ao poder político cria. Este tipo de processos é transversal aos dois partidos, PS e PSD, e acentuou-se nos momentos em que o dinheiro fácil, com os fundos comunitários e com um Estado gastador, permitiram todo o tipo de "negócios". Uns são gigantescos, como as PPP, e outros medíocres, como o das empresas de "formação", mas são da mesma natureza e têm o mesmo perfil de protagonistas.
Não é por acaso que o "privado" que encontramos nos curricula governamentais, como estes de que falamos, é sempre do mesmo tipo. Não encontramos nunca nenhum genuíno empresário que já estivesse "feito" antes de ir para o Governo. Embora não haja nenhuma área empresarial que não dependa de decisões estatais com alto grau de discricionariedade, um dos piores sinais do nosso atraso, o "privado" que chega ao Governo não tem ninguém do sector agro-pecuário, nenhum empresário industrial, nenhum da panificação, nenhum proprietário de restaurante, nem sequer nenhum verdadeiro pequeno empreiteiro, que tantos os há hoje na miséria. Não há razão nenhuma para estes empresários não terem a mesma vontade de intervenção política do que os juvenis político-gestores, mas por muito amor ao privado da retórica ideológica, a verdade é que estas pessoas não sobrevivem nos partidos, porque são demasiado independentes do jogo permanente de carreiras que, das "jotas" ao topo, marca hoje os partidos.
Por isso, nunca temos no topo do poder partidário e governamental outro tipo de privado que não seja o fortemente dependente do poder e das redes de conhecimentos pessoais, assentes na interdependência e na confiança. É por isso que não adianta dizer que tudo se passou de Barroso a Sócrates, umas vezes com o PS e outras com o PSD, como se isso atestasse a lisura dos processos, porque a única coisa que muda é o peso relativo dos partidos no bolo, mas estão sempre os dois representados e os mecanismos eficazes são sempre de "bloco central".
O caso da função pública em Portugal não é muito diferente do que acontece noutros países, em que a regra é que não haja condições de inteira equivalência entre o privado e o público. Em parte, porque a qualificação média no público é superior ao privado, logo os salários tendem a ser mais altos. Depois, porque nos países com burocracias independentes, como no caso inglês, a mais direitos correspondem mais deveres. E em Portugal, em períodos de expansão, houve idêntico trade off: os salários da função pública permaneciam muito baixos, como contrapartida às garantias de emprego. Depois, houve um período de esbanjamento e facilitismo por responsabilidade clientelar do poder político, que dá hoje o flanco da função pública ao ressentimento social.
Tem a função pública pessoas a mais? Tem certamente e, acima de tudo, mal distribuídas, mas a racionalização desses recursos para poupar despesas não foi feita nem está a ser feita. Despedir e cortar direitos é mais fácil do que saber "gerir", como diz Teodora Cardoso, que não é conhecida por ser meiga quanto à consolidação orçamental.
É a função pública politizada e, nos últimos anos, partidarizada? É e muito, mas não é isso que estas medidas combatem. Pelo contrário, o Estado vai ficar ainda mais dependente do poder político, mesmo nas áreas que tinham alguma autonomia como as forças armadas. A politização da função pública em Portugal não começou com a democracia. O Estado Novo salazarista e caetanista institucionalizou essa relação, obrigando os funcionários públicos a assinar uma declaração "anticomunista", e punindo com a expulsão todos os oposicionistas, desde a Ditadura Militar até ao caetanismo na Capela do Rato. A cunha política e o patrocinato eram uma regra generalizada e a União Nacional funcionava como uma enorme máquina de distribuir favores e prebendas através de lugares, de contínuos a directores-gerais.
Depois do 25 de Abril, este processo democratizou-se e os partidos tomaram conta do Estado, um processo acentuado nos últimos vinte anos. Não tenho dúvidas em afirmar que este é um dos problemas mais graves da nossa democracia, mas nenhuma destas medidas diminui esse poder, bem pelo contrário. Veja-se como decorreu o processo de privatizações, como são feitas as nomeações de "sempre os mesmos", como a acesso ao poder político permanece sempre nos mesmos círculos, da banca aos grandes escritórios de advogados, da consultadoria económica à intermediação, para perceber que, em períodos de crise, pelo menos os de cima continuam na mesma a mandar e a ganhar.
Numa altura de crise económica, é natural que muitos desempregados olhem com algum ressabiamento para os funcionários públicos que lhes parecem privilegiados, e nalguns casos são-no. Mas alimentar este tipo de atitudes como o Governo faz é muito perigoso para a democracia, porque um Estado estragado e ineficaz é pasto livre para haver ainda mais partidocracia. Também por isso, a noção de Estado e de serviço público, fundamental num Estado democrático, assente em burocracias de mérito, deveria ser preservada se houvesse "sentido de Estado", o que não há.
(Versão do Público de 13 de Outubro de 2012.)