ABRUPTO

26.2.11


NUNCA É TARDE PARA APRENDER: BOAS INFORMAÇÕES, ORGANIZAÇÃO E CORAGEM PURA

Thomas Gallagher, Assault in Norway. Sabotaging the Nazi Nuclear Program, 2010.

Um caso raro em que a Lei de Murphy pouco se manifestou, onde tudo o que podia correr mal, correu bem. A excepção foram as tentativas de enviar um grupo de comandos britânicos para apoiar  o núcleo norueguês da operação para atacar a fábrica de água pesada, que resultou em desastre. Uma parte morreu por acidente com os seus planadores, outra foi executada pelos alemães. Quanto aos noruegueses, a história é a da pura coragem e patriotismo, sem falhas. Uma grande história de guerra melhor do que a ficção.



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UMA NARRATIVA BIZARRA

Rezando na Praça Tahrir.

Um dos casos de "narrativas" comunicacionais que mostram um muito mau jornalismo é o que se está a passar com a chamada "revolta árabe". Escolho este termo, porque me parece ainda assim o mais exacto: por um lado, classifica os eventos de "revolta" e não de "revolução", visto que uma e outra não são idênticas; e utiliza o denominador comum de "árabe", que me parece definir um terreno étnico, social, cultural, político e religioso comum. Há, no entanto, um óbice para o qualificativo árabe, que tem a ver com o impacto dos eventos no Irão, que não é um país árabe. Igualmente seria muito imprudente em misturar a Turquia e o legado de Atatürk com o que se está a passar.

Já fiz esta pergunta e faço-a de novo: o que é que sabemos do que se está a passar nesse arco de países que vai de Marrocos até aos emiratos do Golfo Pérsico, com epicentro na Tunísia e no Egipto? Muito pouco. Pior ainda: com a narrativa mais ou menos ficcional que nos foi servida pela comunicação social, sabemos cada vez menos. O lugar do saber está ocupado com um discurso voluntarista, militante, superficial, projectivo, cheio de lugares- comuns oriundos num certo discurso ocidental sobre o multiculturalismo, sobre o modo como nós desejamos que o mundo seja, não sobre o modo como ele é. Ali estavam os árabes, os muçulmanos, como nós desejávamos que eles fossem, émulos das revoltas democráticas europeias, a fazer a sua "revolução francesa" e a meio caminho do "yes we can" do presidente Obama. O relato jornalístico atingiu delírios como seja a comparação dos eventos à queda do Muro de Berlim e ao ressuscitar de muitos rodriguinhos que estão latentes no discurso do jornalismo de esquerda. A revolta suscitou, remakes do célebre artigo de Richard Falk de 1979 sobre o Khomeiny "moderado" - "a descrição de Khomeiny como fanático, reaccionário e cheio de rudimentares preconceitos parece ser certa e felizmente falsa" escreveu Falk -, agora sobre a Irmandade Muçulmana, que afinal "não é o grupo radical que se pensava que era" e que, obviamente, nada indica que deixou de ser.

O problema com estas narrativas, para além da cegueira épica da retórica - a CNN serviu-a à exaustão e mesmo jornais como o Público seguiram-na à letra -, é que a coerência da narrativa só é possível pela omissão de factos, sobre um fundo geral de ignorância, que a língua e a alteridade cultural e religiosa acentuam. Agora, que começa a saber-se mais, vemos que os factos não encaixam na narrativa épica que nos foi servida e isso explica a relutância com que pouco a pouco se tem que dar informação que torna a narrativa bizarra. É o caso das violências de carácter sexual de que foram vítimas várias jornalistas praticadas pela multidão "revolucionária" e "democrática" da Praça Tahrir, com a omissão de detalhes que são significativos, como os gritos de "judia" que precederam o assalto.

Não há nenhum atavismo que impeça os países árabes muçulmanos de serem democracias plenas, mas existem enormes dificuldades de ordem social, cultural e religiosa que não podem ser ignoradas pelo bem-avontadismo multicultural ocidental, que é o pano de fundo de muitas das maiores asneiras desta narrativa comunicacional.

Uma delas, e talvez a maior de todas, é a da condição feminina. Pode parecer estranho que comece por aqui, mas a história mostra que em todas as genuínas tentativas de modernização quer autocráticas (como a do Xá do Irão) ou a de Atatürk, ou protodemocráticas, vindas de movimentos de opinião laicos, nacionalistas ou influenciados por eventos internacionais (por exemplo, a influência considerável da Revolução Francesa no império otomano e no Egipto), a condição da mulher foi o ponto limite, que barrou qualquer desenvolvimento e motivou o retrocesso de movimentos reformistas. A situação da mulher como património dos homens, tanto do pai, dos irmãos, como do marido, e a sua real submissão a um mundo masculino, torna impossível uma democracia, porque, mesmo que muitas feministas o esqueçam em nome da multiculturalidade, não há democracia sem igualdade entre homens e mulheres.

A segunda dificuldade é a substância daquilo que no mundo ocidental se chama a "separação da Igreja do Eestado". Como o islão (pelo menos o sunita, porque o xiita é diferente) não tem "Igreja" propriamente dita, a fórmula ocidental não é perfeita, mas o problema que nela está implícito existe de facto. A ideia de um Estado laico é muito difícil de compatibilizar com a noção de umma, a comunidade dos crentes, e, embora a cultura religiosa islâmica aceite alguma tolerância pelas "religiões do livro", não tem nenhuma pelo ateísmo e a laicidade. É verdade que algumas experiências de laicidade existiram e existem no mundo muçulmano, como os antigos regimes comunistas no Iémen do Norte e no Afeganistão, ou regimes laicos como os nacionalistas argelinos, ou os de Nasser, Assad, Saddam Hussein, mas estiveram sempre associados a ditaduras ou a ocupações estrangeiras e quase não tocaram as enormes massas, mas apenas uma pequena elite. Mesmo em todos estes casos, quando a religião foi necessária para reforçar a legitimidade do poder, como aconteceu a Saddam Hussein em guerra, os mais laicos dos dirigentes apareciam a rezar. E também, sempre que se permitiram eleições livres, como aconteceu na Argélia, as forças mais fundamentalistas como a FIS, ganharam-nas de forma indiscutível.

É por isso que uma das coisas que não encaixavam na narrativa sobre a revolta árabe era ver a multidão na Praça Tahrir a rezar. Não que a fé e a oração públicas sejam por si só incompatíveis com a laicidade de um Estado, mas porque não havia excepções na muralha de corpos prostrados. Não havia cristãos na multidão, não havia um ateu, um agnóstico, alguém que não fosse religioso, e permanecesse de pé ou à margem da oração? E se tudo se passasse no mês do Ramadão, alguém comeria em público nas horas de jejum? E podia fazê-lo sem risco pessoal? Não podia. E esse é que é um dos problemas maiores da democratização, porque não há sociedades democráticas sem liberdade religiosa e espaço para a laicidade.

Um dos equívocos da narrativa jornalística que nos foi servida resulta da confusão entre liberdade e democracia. A reivindicação de liberdade por parte dos revoltosos pode ser genuinamente descrita como tal. Não tenho dúvidas de que os manifestantes se revoltavam contra uma ditadura (embora Mubarak e Ben Ali sejam maus exemplos de ditadores "ferozes" comparados com os ditadores e as autocracias da Líbia, Síria, Irão ou com a família real saudita, outro exemplo da falta de perspectiva jornalística) e contra a violência policial, a falta de liberdade para criticarem o poder e a corrupção. Anote-se, aliás, que a luta contra a corrupção e o nepotismo é sempre um forte componente de qualquer revolta popular. Mas não basta querer-se mais liberdade individual no plano político, se esta liberdade não vai mais longe no plano dos modos de vida, da identidade cultural e da religião. E se esta liberdade não se traduz no primado do direito e dos direitos e não numa qualquer variante da sharia, cujo conteúdo purificador dos costumes e da corrupção sempre foi uma inspiração muito popular para o recrutamento fundamentalista. Um esquecimento da narrativa épica foi que tudo isto se passou uma semana depois do ataque contra os cristãos coptas e dos confrontos que se lhe seguiram, sendo que a tolerância religiosa permaneceu completamente ausente das reivindicações "democráticas" dos manifestantes.

Muito mais se poderia dizer e muito mais se vai saber, mas a bizarria, para usar uma expressão caridosa e meiga, da narrativa comunicacional, com as habituais excepções, ficará como um momento em que o jornalismo não informou, mas "lutou" por uma causa. Causa da sua imaginação, mas não da nossa realidade. Muitas vezes me lembrei dos relatos da imprensa europeia sobre a "revolução portuguesa" de 1974 que hoje não se podem ler sem sentir o ridículo. 

(Versão do Público de 19 de Fevereiro de 2011.)

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EARLY MORNING BLOGS

1970 - Provérbio

Quando se declara a guerra, o Diabo alarga o Inferno.

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ESPÍRITO DO TEMPO: ESTES DIAS



Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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25.2.11


EARLY MORNING BLOGS

1969 - Provérbio

Pau deitado não chama trovoada.

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21.2.11

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COISAS DA SÁBADO:  
O QUE ESTÁ NA MODA NO BLOCO DE ESQUERDA: JUSTIFICAR-SE, DESDIZER-SE, EXPLICAR-SE


Nunca o BE tinha sido mais loquaz do que nos últimos dias, tentando cobrir com explicações, declarações, artigos , entrevistas, uma moção de censura errada do próprio ponto de vista da organização. Explico-me: estrategicamente, o BE é um partido revolucionário, com uma visão marxista e leninista da sociedade, mas já está longe dessa tradição do ponto de vista organizacional. Tacticamente, funcionam como um “partido oportunista”, privilegiando aquilo que Rosa Luxemburgo chamava o “movimento”, em detrimento do “fim”. Ou seja, para também utilizar palavras que a liderança do BE conhece muito bem, “social-democratizou-se”. E acontece que do ponto de vista do “movimento”, a moção de censura é uma asneira completa e eles já se aperceberam disso. Tudo isto é muito esquizofrénico, mas as sociedades ocidentais estão cheias de este tipo de partidos que são uma coisa e outra ao mesmo tempo, desejam ser revolucionários e são apenas radicais.

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20.2.11


O MUNDO DOS LIVROS (25)
 

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19.2.11

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COISAS DA SÁBADO:  
 O QUE ESTÁ NA MODA: A COMUNICAÇÃO SOCIAL QUER À FORÇA DAR UM HINO E UMA CAUSA AO BLOCO DE ESQUERDA

O Bloco de Esquerda não é desprovido de uma certa base social própria. Essa base social não é a que o BE gostaria de ter, - o BE gostaria de ter a base social do PCP, - mas é a que existe e se revê na sua política. Essa base social provem de sectores da pequena e média burguesia urbana, jovens e mais radicalizados, oriundos de famílias com alguns rendimentos (embora agora possam estar em processo de pauperização), mais “educados” na proliferação de cursos universitários de encomenda dos últimos anos. Na província, o BE também recruta em sectores semelhantes, em muitos casos ligados ao ensino e às indústrias culturais, o que lhe transmite um tom de arrogância muito próprio destes sectores. O BE tem aliás proposto legislação sobre os “intermitentes” (uma adaptação dos franceses), e sobre os sectores da cultura e da animação subsidiada pelo estado e pelas autarquias, que correspondem a este “sindicato de voto”. 

O principal factor de agitação social desses sectores juvenis é a dificuldade de conseguirem um emprego fixo e garantido (aquilo que se chama “um emprego com direitos”), que acham adequados aos seus diplomas e, embora não o digam, própria do seu estatuto social. Mas a verdade é que muitos desses diplomas não tem qualquer valorização no mercado de trabalho, são pouco mais do que papéis pintados, enquanto outros efectivamente são valorizados e garantem emprego. Convém por isso não generalizar e distinguir. Por isso o papel não justifica a “cultura” e tê-lo significa muitas vezes “parvoíce”, para usar os termos da canção, porque com outro tipo de esforço se poderia obter outros resultados, com menos prosápia e menos revolta. 

Para além disso, esta situação é mais normal do que parece, sendo que a situação de entrada aos vinte e poucos anos em empregos para a vida na função pública, é que é a anormal. Só em países com uma presença de um estado empregador e garantista (normalmente países menos desenvolvidos) é que é normal iniciar-se uma carreira profissional com esse grau de garantias e sem risco. As reivindicações dos “precários”, tal como as formula o BE, são no fundo exigências de entrada na função pública ou medidas cujo efeito na economia privada é gerar mais precariedade e desemprego. 

Esses jovens estão revoltados e tal é normal, porque ninguém gosta de perder e hoje estes sectores sociais, quer os jovens, quer as famílias, percebem que esta situação de precariedade é um sinal mais do empobrecimento da classe média, que é, como se sabe, um dos factores de maior radicalização nas sociedades ocidentais.

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EARLY MORNING BLOGS

1968 - 10 PROVÉRBIOS SOBRE A FOME

"Quem tem fome, tudo come."

"Fome que espera fartura não é fome."

"Para quem tem fome, não há pão ruim."

"Quem tem fome, não olha o que come."

"Quem está com fome, não escuta conselhos."

"A fome não espera pelo tempo da fartura."

"A fome é inimiga da virtude."

"A fome é inimiga da alma."

"A fome não tem lei."

"A fome é má conselheira."

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18.2.11


COISAS DA SÁBADO: O QUE ESTÁ NA MODA: TRATAR AS COISAS POR SURTOS E, DEPOIS DO SURTO, ESQUECE-LAS

A comunicação social actua por surtos. Aparece um tema, muitas vezes um tema repetido mas que a memória curta trata como novo, e durante quinze dias (o máximo) tudo se centra ali. É a “agenda mediática”. Quando há dois temas, é um aborrecimento, porque gera muita confusão. O ideal seria um mundo com um novo tema, ou “semi-novo”, de semana a semana. Depois, o tema perde novidade, “deixa de ser notícia”, e é preciso arranjar um novo tema. É pouco importante saber da relevância do tema, ou sequer saber até que ponto ele é novo, ou se alguma coisa importante se vem a saber sobre ele quando já está na zona cinzenta da “perda de novidade”, ou pura e simplesmente é o arrombar de portas que estiveram sempre abertas, mas que um caso sensacional faz parecer novas. É o caso da senhora que morreu sozinha e que a incompetência, desleixo e burocracia, deixaram cadáver numa casa de que o fisco se veio a apropriar. O fisco funcionou, tudo o resto não. Porém, agora, todos os noticiários parece que descobriram que muitos idosos abandonados morrem solitários e ignorados em suas casas. Agora os seus corpos são notícia de abertura do telejornal, embora daqui a uma semana possam de novo continuar a morrer sozinhos. É um surto, depois haverá outro. Os factos, as situações, pouco interessam.

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ESPÍRITO DO TEMPO: HOJE


Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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EARLY MORNING BLOGS

1967 - The Owl

When cats run home and light is come,
And dew is cold upon the ground,
And the far-off stream is dumb,
And the whirring sail goes round,
And the whirring sail goes round;
Alone and warming his five wits,
The white owl in the belfry sits.

When merry milkmaids click the latch,
And rarely smells the new-mown hay,
And the cock hath sun beneath the thatch
Twice or thrice his roundelay,
Twice or thrice his roundelay;
Alone and warming his five wits,
The white owl in the belfry sits.

(Alfred, Lord Tennyson)

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17.2.11


PIN POLÍTICO PARA OS DIAS DE HOJE

A miséria cura o deficit.
Copy of 12-02-11 (3)SS (3)

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DIÁLOGOS POLÍTICOS PARA OS DIAS DE HOJE


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PROVÉRBIOS POLÍTICOS PARA OS DIAS DE HOJE

O Ministério da Cultura é uma ilustração viva de que podem existir zeros à esquerda dos números.

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PROVÉRBIOS POLÍTICOS PARA OS DIAS DE HOJE

1.

Onde o Ministério da Administração Interna põe as mãos nada funciona.

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ESPÍRITO DO TEMPO: HOJE


Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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EARLY MORNING BLOGS

1966 - My Bed is a Boat

My bed is like a little boat;
Nurse helps me in when I embark;
She girds me in my sailor’s coat
And starts me in the dark.

At night, I go on board and say
Good night to all my friends on shore;
I shut my eyes and sail away
And see and hear no more.

And sometimes things to bed I take,
As prudent sailors have to do;
Perhaps a slice of wedding-cake,
Perhaps a toy or two.

All night across the dark we steer;
But when the day returns at last,
Safe in my room, beside the pier,
I find my vessel fast.

(Robert Louis Stevenson)

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16.2.11


EARLY MORNING BLOGS

1965 - Who Has Seen the Wind?

Who has seen the wind?
Neither I nor you;
But when the leaves hang trembling
The wind is passing through.

Who has seen the wind?
Neither you nor I;
But when the trees bow down their heads
The wind is passing by.

(Christina Rossetti)

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15.2.11

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ESPÍRITO DO TEMPO: HOJE


Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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EARLY MORNING BLOGS

1964

"As a rule reading fiction is as hard to me as trying to hit a target by hurling feathers at it. I need resistance to celebrate! "

(William James)

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14.2.11


ESPÍRITO DO TEMPO: HOJE


Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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WEIMARZINHO



Vive-se um certo ambiente de Weimar, à portuguesa, Weimarzinho. "Zinho" porque sem o drama alemão, sem a guerra e a "facada nas costas", embora também haja uma versão nacional dessa "facada". E sem os grandes regimentos da ordem, sem nazis, nem comunistas a marchar como exércitos disciplinados pelas ruas de Berlim, Hamburgo e Munique. E sem a arte e a literatura desses tempos empestados mas criativos. Sem Anjos Azuis, somente com alguns professores Unrat.


Mas o ar começa a ser o mesmo, mais moderno e tecnológico, mas o mesmo. Como nos anos de Weimar, os grandes partidos moderados estão muito fragilizados, PS e PSD alimentam-se cada vez mais das suas oligarquias internas e menos da influência pública. "Eles são todos iguais". Como nos anos de Weimar, a democracia e as suas instituições estão desgastadas e impotentes, a começar pelo Parlamento. Existe a percepção (e a realidade) que o país é mandado do exterior, seja por "agiotas", na versão do BE, seja pelos "mercados" na versão da direita. A crise económica e social não se revela nas notas de 1.000.000 de marcos, nem nos selos com sobrecargas sucessivas para resistir à inflação galopante, mas num euro cada vez mais forte para o cidadão comum.

A prostituição cresce nas páginas dos jornais e nos espíritos. A fome é muita, os bens são escassos, os empregos não abundam, e somos todos primos uns dos outros. O reino das cunhas mantém-se intacto. Cunhas, patrocinato, obediência, silêncios, respeitinho, "gestão de carreiras". Nos partidos políticos que têm lugares para oferecer, é a lei de ferro. As oligarquias partidárias e os grandes interesses estão demasiados habituados ao tráfico de influências e à corrupção, que arrastam atrás de si a imagem da gente honesta para a mesma lama. "Eles são todos uns ladrões".


A decadência chama-se hoje modernidade fracturante. Aliás, não se chama assim só de hoje, na contínua máquina de usar as palavras para lhes destruir o sentido, e na tendência, que Orwell descreveu, para usar cada vez menos palavras para haver ainda menos sentido. Vamos a caminho de sermos guturais, a falar como os SMS e a pensar com as 140 palavras do Twitter. Bom para as "bocas", mau para o pensamento. Nos anos de Weimar, o alemão estava sólido, embora os nazis suspeitassem que a Bauhaus, os comunistas da Bauhaus, queriam destruir a força da língua colocando os substantivos em minúsculas. Por cá, em Weimarzinho, a língua torna-se tropical e africana (como os capitais da banca) e afasta-se velozmente do latim por diktat do Estado e tratado de papel passado (eu quero no Público a grafia anterior ao Acordo Ortográfico).


Não há "questão judia", mas moldavos, romenos, ucranianos e brasileiros aparecem cada vez mais nas notícias de crime. Não há nacionalismo a não ser no futebol. Não há patriotismo, mas aceitação triste do "governo europeu". As autoridades pátrias encarregam-se de nos encher de circo para esconder que o pão encolheu. Um partido radical da extrema-esquerda faz dançar gente de mais à sua batuta, com o apoio de uma comunicação social que gosta de fitas e simpatiza com o niilismo do espectáculo, mesmo sem saber o que isto é. A consciência cultural da democracia, das suas instituições, das suas formas e procedimentos dissolve-se por todo o lado. O populismo e a demagogia crescem exponencialmente. Não têm um Hitler, um Goebbels, um Roehm, nem um Himmler, mas podem vir a ter. Em "zinho" ou à italiana com bragadoccio e rotundidade.


O caminho está aberto porque a percepção dos valores da democracia é escassa: milhares de pessoas correm a assinar uma petição na Internet intitulada "1 milhão na Avenida da Liberdade pela demissão de toda a classe política" e jornais e blogues batem palmas como se não se tratasse de um puro manifesto antidemocrático. "Demitem toda a classe política" como? Como em 1926, com o 28 de Maio? Como se Portugal fosse o Egipto e "Sócrates-Passos Coelho- Portas" (e porque não Jerónimo de Sousa e Louçã) fosse um compósito de Mubarak? Sem eleições? Sem partidos? Democracia directa com votos pela televisão em chamadas de valor acrescentado e o Parlamento no Facebook? Os votos seriam como aquelas sondagens nos blogues? E por que, dizem, não é mais democrático, mais igualitário, mais livre, eu poder fazer o que entender, sem peias, nem lei, nem propriedade, expondo um mundo subterrâneo de gigantescos ressentimentos e invejas, que está lá bem em abaixo nos subterrâneos de Weimarzinho? O retrato desse mundo está bem presente no coro de insultos dos comentários, a vox populi muito elogiada pelos libertários da Internet, um mundo dos comentadores anónimos ou semianónimos que é fascista no seu preciso termo, é a linguagem da força sem lei, a destruição verbal do outro, o veneno das palavras, como o rícino que os squadristi obrigavam os seus adversários a tomar. Todas as peças se montam, em pequenino, em "zinho", mas encaixando entre si. E muita cobardia sobre o que se está a passar, sobre o mundo que começa a parecer, silêncio a mais.


Weimarzinho significa também essa cobardia do espírito, de acomodações e silêncios, a dissolução do pensamento e da coragem cívica, essa "destruição da razão" substituída pelos incêndios românticos de livros. O anti-intelectualismo é um traço dessa época, com comunistas e nazis a valorizarem o braço musculado que segurava a foice e o martelo ou o estandarte com a cruz gamada, numa vaga imagética homo-erótica. Um imbecil igualitarismo entre quem estuda e quem dá "bitaites", perdoe-se o plebeísmo, entre quem conhece e quem "acha", entre quem sabe e o arrogante iniciante e ignorante que acha que por escrever um blogue tem o direito de ser "igual". O mesmo anti-intelectualismo que se confrontou nesse encontro raro entre o legionário do "morte à inteligência" e o velho reitor de Salamanca que lhe disse que "vencer" e "convencer" não era a mesma coisa.

Dissolução do pensamento, apatia, preguiça, aceitação do inaceitável, cada dia com a sua cedência, à moda, ao espectáculo, à raiva populista e demagógica, para se passar pelo meio da chuva e "não se chatear". Direitos, deveres, procedimentos, regras, cada dia tem menos valor. Nas ruas de Weimar e nas ruelas de Weimarzinho passa o mesmo fantasma, um em versão trágica, outro em versão pobre e simples. Mas esse fantasma que assombra o nosso mundo não é o da primeira página do Manifesto, mas o da linha 9 do Canto III do Inferno de Dante: "Lasciate ogne speranza, voi ch"intrate". E o mundo sem esperança que se vive em Weimarzinho é propício a todos os demónios.

(Versão do Público de 12 de Fevereiro de 2011.)

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EARLY MORNING BLOGS

1963

"It is not down in any map; true places never are."

(Herman Melville)

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13.2.11


 NOTAS DE VIAGEM AMERICANAS: OS RECLAMES DE COISAS QUE NÃO TEMOS

Os reclames de coisas que não temos. Um número significativo dos reclames que passam na televisão americana seriam impossíveis em Portugal, ou porque se referem a realidades distintas na relação entre os cidadãos e o Estado, e outros porque seriam proibidos. Entre os proibidos estão os anúncios de advogados que em Portugal a Ordem dos Advogados, numa interessante manifestação do velho poder corporativo, impede. Nos EUA, o país da litigância, são comuns os anúncios como o de Kim Michael Cullen. A questão está em saber se este tipo de competição pelo mercado não serve os mais pobres e os mais necessitados, que assim acedem a um serviço cujos termos de referência e preço conhecem com exactidão e que a competição torna mais barato.

Depois há anúncios de empresas como os Tax Masters, que oferecem serviços de consultadoria e representação mais ou menos agressiva para lidar com o fisco. Sente-se ameaçado pelo fisco? Acha injusto o que lhe cobram de imposto? Contrate os Tax Masters, que tem na sua folha de pagamento entre outros "antigos funcionários da administração fiscal". Aqui está um tipo de empresa que poderia por cá ter muito sucesso. Mais uma vez, como acontece com os advogados, estas empresas não são para os ricos e poderosos, mas para o homem comum, que não tem dinheiro para pagar a uma grande firma de advogados, nem para a litigância agressiva com o fisco.

E por último, deixando de lado a publicidade a medicamentos, a série extensiva de anúncios de companhias de seguros. Uma delas até faz questão de sublinhar que o seu plano de saúde tem um nome parecido com o do Presidente Obama, mas não é a mesma coisa. Seguros para tudo, planos de seguros para novos, estudantes, jovens mães, velhos, etc., etc. É o melhor retrato de uma sociedade em que são os privados a tomarem conta do seu futuro, com as vantagens e os riscos inerentes.

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© José Pacheco Pereira
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