ABRUPTO

26.2.11


UMA NARRATIVA BIZARRA

Rezando na Praça Tahrir.

Um dos casos de "narrativas" comunicacionais que mostram um muito mau jornalismo é o que se está a passar com a chamada "revolta árabe". Escolho este termo, porque me parece ainda assim o mais exacto: por um lado, classifica os eventos de "revolta" e não de "revolução", visto que uma e outra não são idênticas; e utiliza o denominador comum de "árabe", que me parece definir um terreno étnico, social, cultural, político e religioso comum. Há, no entanto, um óbice para o qualificativo árabe, que tem a ver com o impacto dos eventos no Irão, que não é um país árabe. Igualmente seria muito imprudente em misturar a Turquia e o legado de Atatürk com o que se está a passar.

Já fiz esta pergunta e faço-a de novo: o que é que sabemos do que se está a passar nesse arco de países que vai de Marrocos até aos emiratos do Golfo Pérsico, com epicentro na Tunísia e no Egipto? Muito pouco. Pior ainda: com a narrativa mais ou menos ficcional que nos foi servida pela comunicação social, sabemos cada vez menos. O lugar do saber está ocupado com um discurso voluntarista, militante, superficial, projectivo, cheio de lugares- comuns oriundos num certo discurso ocidental sobre o multiculturalismo, sobre o modo como nós desejamos que o mundo seja, não sobre o modo como ele é. Ali estavam os árabes, os muçulmanos, como nós desejávamos que eles fossem, émulos das revoltas democráticas europeias, a fazer a sua "revolução francesa" e a meio caminho do "yes we can" do presidente Obama. O relato jornalístico atingiu delírios como seja a comparação dos eventos à queda do Muro de Berlim e ao ressuscitar de muitos rodriguinhos que estão latentes no discurso do jornalismo de esquerda. A revolta suscitou, remakes do célebre artigo de Richard Falk de 1979 sobre o Khomeiny "moderado" - "a descrição de Khomeiny como fanático, reaccionário e cheio de rudimentares preconceitos parece ser certa e felizmente falsa" escreveu Falk -, agora sobre a Irmandade Muçulmana, que afinal "não é o grupo radical que se pensava que era" e que, obviamente, nada indica que deixou de ser.

O problema com estas narrativas, para além da cegueira épica da retórica - a CNN serviu-a à exaustão e mesmo jornais como o Público seguiram-na à letra -, é que a coerência da narrativa só é possível pela omissão de factos, sobre um fundo geral de ignorância, que a língua e a alteridade cultural e religiosa acentuam. Agora, que começa a saber-se mais, vemos que os factos não encaixam na narrativa épica que nos foi servida e isso explica a relutância com que pouco a pouco se tem que dar informação que torna a narrativa bizarra. É o caso das violências de carácter sexual de que foram vítimas várias jornalistas praticadas pela multidão "revolucionária" e "democrática" da Praça Tahrir, com a omissão de detalhes que são significativos, como os gritos de "judia" que precederam o assalto.

Não há nenhum atavismo que impeça os países árabes muçulmanos de serem democracias plenas, mas existem enormes dificuldades de ordem social, cultural e religiosa que não podem ser ignoradas pelo bem-avontadismo multicultural ocidental, que é o pano de fundo de muitas das maiores asneiras desta narrativa comunicacional.

Uma delas, e talvez a maior de todas, é a da condição feminina. Pode parecer estranho que comece por aqui, mas a história mostra que em todas as genuínas tentativas de modernização quer autocráticas (como a do Xá do Irão) ou a de Atatürk, ou protodemocráticas, vindas de movimentos de opinião laicos, nacionalistas ou influenciados por eventos internacionais (por exemplo, a influência considerável da Revolução Francesa no império otomano e no Egipto), a condição da mulher foi o ponto limite, que barrou qualquer desenvolvimento e motivou o retrocesso de movimentos reformistas. A situação da mulher como património dos homens, tanto do pai, dos irmãos, como do marido, e a sua real submissão a um mundo masculino, torna impossível uma democracia, porque, mesmo que muitas feministas o esqueçam em nome da multiculturalidade, não há democracia sem igualdade entre homens e mulheres.

A segunda dificuldade é a substância daquilo que no mundo ocidental se chama a "separação da Igreja do Eestado". Como o islão (pelo menos o sunita, porque o xiita é diferente) não tem "Igreja" propriamente dita, a fórmula ocidental não é perfeita, mas o problema que nela está implícito existe de facto. A ideia de um Estado laico é muito difícil de compatibilizar com a noção de umma, a comunidade dos crentes, e, embora a cultura religiosa islâmica aceite alguma tolerância pelas "religiões do livro", não tem nenhuma pelo ateísmo e a laicidade. É verdade que algumas experiências de laicidade existiram e existem no mundo muçulmano, como os antigos regimes comunistas no Iémen do Norte e no Afeganistão, ou regimes laicos como os nacionalistas argelinos, ou os de Nasser, Assad, Saddam Hussein, mas estiveram sempre associados a ditaduras ou a ocupações estrangeiras e quase não tocaram as enormes massas, mas apenas uma pequena elite. Mesmo em todos estes casos, quando a religião foi necessária para reforçar a legitimidade do poder, como aconteceu a Saddam Hussein em guerra, os mais laicos dos dirigentes apareciam a rezar. E também, sempre que se permitiram eleições livres, como aconteceu na Argélia, as forças mais fundamentalistas como a FIS, ganharam-nas de forma indiscutível.

É por isso que uma das coisas que não encaixavam na narrativa sobre a revolta árabe era ver a multidão na Praça Tahrir a rezar. Não que a fé e a oração públicas sejam por si só incompatíveis com a laicidade de um Estado, mas porque não havia excepções na muralha de corpos prostrados. Não havia cristãos na multidão, não havia um ateu, um agnóstico, alguém que não fosse religioso, e permanecesse de pé ou à margem da oração? E se tudo se passasse no mês do Ramadão, alguém comeria em público nas horas de jejum? E podia fazê-lo sem risco pessoal? Não podia. E esse é que é um dos problemas maiores da democratização, porque não há sociedades democráticas sem liberdade religiosa e espaço para a laicidade.

Um dos equívocos da narrativa jornalística que nos foi servida resulta da confusão entre liberdade e democracia. A reivindicação de liberdade por parte dos revoltosos pode ser genuinamente descrita como tal. Não tenho dúvidas de que os manifestantes se revoltavam contra uma ditadura (embora Mubarak e Ben Ali sejam maus exemplos de ditadores "ferozes" comparados com os ditadores e as autocracias da Líbia, Síria, Irão ou com a família real saudita, outro exemplo da falta de perspectiva jornalística) e contra a violência policial, a falta de liberdade para criticarem o poder e a corrupção. Anote-se, aliás, que a luta contra a corrupção e o nepotismo é sempre um forte componente de qualquer revolta popular. Mas não basta querer-se mais liberdade individual no plano político, se esta liberdade não vai mais longe no plano dos modos de vida, da identidade cultural e da religião. E se esta liberdade não se traduz no primado do direito e dos direitos e não numa qualquer variante da sharia, cujo conteúdo purificador dos costumes e da corrupção sempre foi uma inspiração muito popular para o recrutamento fundamentalista. Um esquecimento da narrativa épica foi que tudo isto se passou uma semana depois do ataque contra os cristãos coptas e dos confrontos que se lhe seguiram, sendo que a tolerância religiosa permaneceu completamente ausente das reivindicações "democráticas" dos manifestantes.

Muito mais se poderia dizer e muito mais se vai saber, mas a bizarria, para usar uma expressão caridosa e meiga, da narrativa comunicacional, com as habituais excepções, ficará como um momento em que o jornalismo não informou, mas "lutou" por uma causa. Causa da sua imaginação, mas não da nossa realidade. Muitas vezes me lembrei dos relatos da imprensa europeia sobre a "revolução portuguesa" de 1974 que hoje não se podem ler sem sentir o ridículo. 

(Versão do Público de 19 de Fevereiro de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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