ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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14.2.11
WEIMARZINHO Vive-se um certo ambiente de Weimar, à portuguesa, Weimarzinho. "Zinho" porque sem o drama alemão, sem a guerra e a "facada nas costas", embora também haja uma versão nacional dessa "facada". E sem os grandes regimentos da ordem, sem nazis, nem comunistas a marchar como exércitos disciplinados pelas ruas de Berlim, Hamburgo e Munique. E sem a arte e a literatura desses tempos empestados mas criativos. Sem Anjos Azuis, somente com alguns professores Unrat. Mas o ar começa a ser o mesmo, mais moderno e tecnológico, mas o mesmo. Como nos anos de Weimar, os grandes partidos moderados estão muito fragilizados, PS e PSD alimentam-se cada vez mais das suas oligarquias internas e menos da influência pública. "Eles são todos iguais". Como nos anos de Weimar, a democracia e as suas instituições estão desgastadas e impotentes, a começar pelo Parlamento. Existe a percepção (e a realidade) que o país é mandado do exterior, seja por "agiotas", na versão do BE, seja pelos "mercados" na versão da direita. A crise económica e social não se revela nas notas de 1.000.000 de marcos, nem nos selos com sobrecargas sucessivas para resistir à inflação galopante, mas num euro cada vez mais forte para o cidadão comum. A prostituição cresce nas páginas dos jornais e nos espíritos. A fome é muita, os bens são escassos, os empregos não abundam, e somos todos primos uns dos outros. O reino das cunhas mantém-se intacto. Cunhas, patrocinato, obediência, silêncios, respeitinho, "gestão de carreiras". Nos partidos políticos que têm lugares para oferecer, é a lei de ferro. As oligarquias partidárias e os grandes interesses estão demasiados habituados ao tráfico de influências e à corrupção, que arrastam atrás de si a imagem da gente honesta para a mesma lama. "Eles são todos uns ladrões". A decadência chama-se hoje modernidade fracturante. Aliás, não se chama assim só de hoje, na contínua máquina de usar as palavras para lhes destruir o sentido, e na tendência, que Orwell descreveu, para usar cada vez menos palavras para haver ainda menos sentido. Vamos a caminho de sermos guturais, a falar como os SMS e a pensar com as 140 palavras do Twitter. Bom para as "bocas", mau para o pensamento. Nos anos de Weimar, o alemão estava sólido, embora os nazis suspeitassem que a Bauhaus, os comunistas da Bauhaus, queriam destruir a força da língua colocando os substantivos em minúsculas. Por cá, em Weimarzinho, a língua torna-se tropical e africana (como os capitais da banca) e afasta-se velozmente do latim por diktat do Estado e tratado de papel passado (eu quero no Público a grafia anterior ao Acordo Ortográfico). Não há "questão judia", mas moldavos, romenos, ucranianos e brasileiros aparecem cada vez mais nas notícias de crime. Não há nacionalismo a não ser no futebol. Não há patriotismo, mas aceitação triste do "governo europeu". As autoridades pátrias encarregam-se de nos encher de circo para esconder que o pão encolheu. Um partido radical da extrema-esquerda faz dançar gente de mais à sua batuta, com o apoio de uma comunicação social que gosta de fitas e simpatiza com o niilismo do espectáculo, mesmo sem saber o que isto é. A consciência cultural da democracia, das suas instituições, das suas formas e procedimentos dissolve-se por todo o lado. O populismo e a demagogia crescem exponencialmente. Não têm um Hitler, um Goebbels, um Roehm, nem um Himmler, mas podem vir a ter. Em "zinho" ou à italiana com bragadoccio e rotundidade. O caminho está aberto porque a percepção dos valores da democracia é escassa: milhares de pessoas correm a assinar uma petição na Internet intitulada "1 milhão na Avenida da Liberdade pela demissão de toda a classe política" e jornais e blogues batem palmas como se não se tratasse de um puro manifesto antidemocrático. "Demitem toda a classe política" como? Como em 1926, com o 28 de Maio? Como se Portugal fosse o Egipto e "Sócrates-Passos Coelho- Portas" (e porque não Jerónimo de Sousa e Louçã) fosse um compósito de Mubarak? Sem eleições? Sem partidos? Democracia directa com votos pela televisão em chamadas de valor acrescentado e o Parlamento no Facebook? Os votos seriam como aquelas sondagens nos blogues? E por que, dizem, não é mais democrático, mais igualitário, mais livre, eu poder fazer o que entender, sem peias, nem lei, nem propriedade, expondo um mundo subterrâneo de gigantescos ressentimentos e invejas, que está lá bem em abaixo nos subterrâneos de Weimarzinho? O retrato desse mundo está bem presente no coro de insultos dos comentários, a vox populi muito elogiada pelos libertários da Internet, um mundo dos comentadores anónimos ou semianónimos que é fascista no seu preciso termo, é a linguagem da força sem lei, a destruição verbal do outro, o veneno das palavras, como o rícino que os squadristi obrigavam os seus adversários a tomar. Todas as peças se montam, em pequenino, em "zinho", mas encaixando entre si. E muita cobardia sobre o que se está a passar, sobre o mundo que começa a parecer, silêncio a mais. Weimarzinho significa também essa cobardia do espírito, de acomodações e silêncios, a dissolução do pensamento e da coragem cívica, essa "destruição da razão" substituída pelos incêndios românticos de livros. O anti-intelectualismo é um traço dessa época, com comunistas e nazis a valorizarem o braço musculado que segurava a foice e o martelo ou o estandarte com a cruz gamada, numa vaga imagética homo-erótica. Um imbecil igualitarismo entre quem estuda e quem dá "bitaites", perdoe-se o plebeísmo, entre quem conhece e quem "acha", entre quem sabe e o arrogante iniciante e ignorante que acha que por escrever um blogue tem o direito de ser "igual". O mesmo anti-intelectualismo que se confrontou nesse encontro raro entre o legionário do "morte à inteligência" e o velho reitor de Salamanca que lhe disse que "vencer" e "convencer" não era a mesma coisa. Dissolução do pensamento, apatia, preguiça, aceitação do inaceitável, cada dia com a sua cedência, à moda, ao espectáculo, à raiva populista e demagógica, para se passar pelo meio da chuva e "não se chatear". Direitos, deveres, procedimentos, regras, cada dia tem menos valor. Nas ruas de Weimar e nas ruelas de Weimarzinho passa o mesmo fantasma, um em versão trágica, outro em versão pobre e simples. Mas esse fantasma que assombra o nosso mundo não é o da primeira página do Manifesto, mas o da linha 9 do Canto III do Inferno de Dante: "Lasciate ogne speranza, voi ch"intrate". E o mundo sem esperança que se vive em Weimarzinho é propício a todos os demónios. (Versão do Público de 12 de Fevereiro de 2011.) (url)
© José Pacheco Pereira
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