Só há um mérito no actual impasse europeu, é o de as pessoas poderem perceber melhor uma realidade que já existia antes e que se negavam a admitir. Esta realidade é a das relações de força que levam a uma evolução da União Europeia para uma oligarquia, quase uma duarquia, europeia, que decide em função dos seus interesses nacionais e não de um “espírito europeu”. A retórica europeísta parece ser hoje pouco mais do que uma muleta dos necessitados para que os salvem da situação de desespero. Mas, se as pessoas percebem melhor aquilo que no optimismo beato europeu não queriam ver, convinha que compreendessem também que o que vai acontecer é que os que precisam vão ficar cada vez mais federalistas e integracionistas, e os que não precisam, cada vez mais nacionalistas. Ou seja, não se aprendeu nada.
E aconteceu que, ao fim de dois anos inteiros, Faraó sonhou, e eis que estava em pé junto ao rio.
Diz-se que depois da tempestade vem a bonança, mas uma parecença de bonança também vem antes da tempestade. E, em tempo de metáforas meteorológicas, também há o olho do furacão, esse local de paz, antes de os céus nos caírem em cima. Estamos a viver um breve momento de alguma acalmia, depois da votação do Orçamento, acalmia que é mais da ordem de nem tudo continuar, de dia para dia, a ficar pior, do que de estar a ficar melhor. O Natal ajuda, mesmo um Natal mais difícil. Mas preparemo-nos para o pior, que está para vir.
E eis que subiam do rio sete vacas, formosas à vista e gordas de carne, e pastavam no prado.
Apesar de, por todo o lado, parecer (e aparecer) que a pobreza cresce exponencialmente, ainda não é verdade, mas vai ser. Eu escrevi, para fúria de alguns, que se estava a gritar ao lobo quando ele está apenas nas margens do povoado, embora caminhe com muita certeza para o seu centro. O cardeal patriarca disse a mesma coisa há uma semana: cuidado porque ainda só estamos a entrar na crise social, porque ela estará no seu pleno em 2011. Pelos vistos não foi interpretado como estando a negar a realidade - não está, nem ele, nem eu, seu humilde e civil companheiro de dizer a mesma coisa -, mas o significado profundo de se avisar que estamos a fazer o barulho todo antes do tempo, em particular dirigido aos media, devia ser ponderado. Quando precisarmos de todos os esforços, de todos os recursos, de todos os alertas para defrontar o momento mais cruel de miséria, as palavras estarão gastas e os que podem dar já estão cansados de as ouvir. Todas as reportagens possíveis e imaginárias sobre a pobreza já estarão feitas e, para os media, o que não tem "novidade" já não existe. O tenebroso efeito mediático da masturbação da dor estará acabado, e nenhuma redacção irá repetir pela enésima vez reportagens sobre o Banco Alimentar, sobre os sem-abrigo, sobre o afluxo às instituições de solidariedade social, sobre a quebra de vendas no comércio. As entrevistas com os que conhecem a pobreza pela acção junto aos pobres sairão da agenda de qualquer telejornal, porque o tema é "chato" e toda a gente está "farta" dele. Ficaremos dependentes dos actos de desespero, quanto mais espectaculares melhor, porque se há coisa que se esgota com muita rapidez é a cobertura televisiva impressionista e ligeira sobre a crise social.
E eis que subiam do rio após elas outras sete vacas, feias à vista e magras de carne; e paravam junto às outras vacas na praia do rio.
É 2011 o ano de todos os perigos, porque é em 2011 que andaremos violentamente para trás, deixando fora de vista na sua dramaticidade o recuo lento dos últimos anos, mesmo o recuo mais acelerado dos últimos dois anos. Começa, porque é só em Janeiro de 2011 que, primeiro para os círculos concêntricos à volta do Estado, para 700.000 portugueses, depois para 3 milhões e, por último, para todos, a vida vai começar a apertar. Salários e reformas, subsídios e apoios, tudo começará a diminuir, menos os preços, e, para aqueles que já vivem no limiar da pobreza, a queda será rápida.
E as vacas feias à vista e magras de carne, comiam as sete vacas formosas à vista e gordas. Então acordou Faraó.
Apesar de a experiência mostrar que o Governo e o Ministério das Finanças não são particularmente capazes de controlar as despesas - são até manifestamente incapazes -, tenho poucas dúvidas de que, entalados como estão, vão passar do oito para o oitenta e haverá um enorme apertão em todo o Estado. Nem é preciso mais do que perceber o que está obsessivamente na mente do ministro das Finanças, que sabe que falhou em 2009 e em 2010, e quererá acertar em 2011. Os homens contam muito e este homem está muito ferido. Se não for a bem (e não vai ser), vai a mal, tudo raso à frente.
Então disse José a Faraó: O sonho de Faraó é um só; o que Deus há de fazer, mostrou-o a Faraó.
Esse apertão terá enormes consequências não só em quem dele directamente depende, mas também em toda a economia, investimentos, bens, serviços, encomendas, obras, prazos de pagamento, pagamentos, tudo. Na discussão, muito ideológica e muitas vezes muito ignorante, sobre o Estado esquece-se que a redução das despesas, aquilo que hoje se chama "cortar as gorduras" do Estado, vai dar uma grande contribuição para a recessão económica, tão eficaz nos seus efeitos perversos como a quebra do poder de compra das pessoas e das famílias. E de certeza que o seu contributo recessivo será mais eficaz e mais rápido até porque é pouco provável que se consiga um controlo fino e racional das despesas, atingindo apenas as "gorduras", cuja identificação também é controversa. O que acontecerá é um apertão brutal, desigual, cego. Mas, seja como for, é um enorme apertão.
As sete vacas formosas são sete anos, as sete espigas formosas também são sete anos, o sonho é um só.
E depois, há as pessoas, a começar pelos reformados com pensões mínimas, a continuar pelos desempregados de longa duração, depois pelas famílias desconstruídas, seguindo-se os que já estão muito endividados, e prosseguindo em mil e uma categorias de risco, em que o corte mensal de vinte, cinquenta, cem euros para cima fará toda a diferença. A luz vai custar mais, os barcos que atravessam o Tejo vão custar mais, a água vai custar mais, as portagens vão custar mais, os comboios e os autocarros vão custar mais, a gasolina e o gasóleo vão custar mais, o gás vai custar mais, a vida mais comum e quotidiana vai custar mais. Haverá um vidro que vai continuar partido numa janela, uma lâmpada fundida num candeeiro que se deixou de utilizar, um telemóvel sem serviço, o condomínio mais um ano por pagar, um farol do carro por arranjar, um jornal que se deixou de comprar, um tapete estragado que continuará estragado, uma camisola gasta que se usa puída, uns sapatos velhos de mais, numa vida cansada de mais. Decisões muito complicadas vão ter que ser tomadas em meados de 2011 por muitas famílias: saber se continua a haver dinheiro para pagar a prestação da casa, as dívidas do cartão de crédito, o transporte para a escola, as propinas do filho ou da filha, os medicamentos mensais, as contas a que se reduziu a correspondência, os impostos. E podia continuar indefinidamente, porque há mil e uma atitudes que estão envolvidas nesta queda, a vida toda está envolvida. Estas enumerações são profundamente aborrecidas? São, poucas coisas são mais aborrecidas do que a pobreza. Nada nela brilha.
E as sete vacas feias à vista e magras, que subiam depois delas, são sete anos, e as sete espigas miúdas e queimadas do vento oriental, serão sete anos de fome.
Em teoria, toda a gente sabe o que há-de fazer. Mas, mesmo que o façam na perfeição, só uma pequena minoria, mais capaz, com mais literacias, é capaz dessa perfeição: poupar, gastar racionalmente, minimizar despesas supérfluas, aguentar, prevenir-se, singrar nas águas agitadas, ter sorte. O resto levará com o tumulto em cima, um tumulto que afecta tanto fisicamente como psicologicamente. Vergonha, humilhação, medo, perda de dignidade, mais medo. Poderá protestar como nunca imaginou, com imensa raiva e violência. Poderá culpar tudo e todos, trucidar os políticos, os bancos, os vizinhos, os ladrões, os ciganos. Mas o mais provável é que sofra em silêncio, que perca os primeiros anos da sua vida adulta, os anos do meio e os anos do fim e o tempo da vida é a única coisa que nunca se recupera. 2011 é o ano da perda.
Esta é a palavra que tenho dito a Faraó; o que Deus há de fazer, mostrou-o a Faraó.
E eis que vêm sete anos, e haverá grande fartura em toda a terra do Egipto.
E depois deles levantar-se-ão sete anos de fome, e toda aquela fartura será esquecida na terra do Egipto, e a fome consumirá a terra;
E não será conhecida a abundância na terra, por causa daquela fome que haverá depois; porquanto será gravíssima. (Génesis)
Like Rain it sounded till it curved And then I new 'twas Wind -- It walked as wet as any Wave But swept as dry as sand -- When it had pushed itself away To some remotest Plain A coming as of Hosts was heard It filled the Wells, it pleased the Pools It warbled in the Road -- It pulled the spigot from the Hills And let the Floods abroad -- It loosened acres, lifted seas The sites of Centres stirred Then like Elijah rode away Upon a Wheel of Cloud.
Depois há documentos que estão classificados exactamente porque matam pelo seu conteúdo. Esses só um critério de absoluto, urgente, inequívoco interesse público e de força maior justifica a sua divulgação e mesmo assim com todos os cuidados. Não tenho dúvidas que alguma informação retirada dos arquivos da PIDE/DGS em 1974-5, em particular a que mais interessava aos soviéticos porque era oriunda de serviços de informação que trocavam informações com a polícia portuguesa, como o BOSS sul-africano, ou mesmo com origem na própria PIDE/DGS nas colónias, matou gente na Guiné, Angola e Moçambique depois da descolonização. E a divulgação do telegrama sobre as instalações consideradas estratégicas pelos EUA, é de escasso interesse público geral quando medido com o risco de fornecer uma lista de alvos a tudo o que seja terrorista profissional e amador. E a continuar assim não faltarão “revelações” que ponham em causa o risco de países e a segurança de pessoas.
Quem, como os historiadores e os jornalistas especializados, tem que lidar com arquivos de polícia oriundos de regimes totalitários ou arquivos envolvendo matérias de sigilo e segredo, como é o caso dos “arquivos Mitrokhin” copiados do KGB, os arquivos soviéticos revelados depois da queda do Muro, os arquivos da STASI, os arquivos já abertos da “intelligence” e das operações aliadas da II Guerra Mundial, e, para todos os efeitos, os 250.000 telegramas diplomáticos americanos, sabe que tem que lhes pegar com pinças e ter o know how para deles extrair informação, sem necessariamente os tomar à letra. Primeiro, porque os documentos não são verdadeiros em si mesmos, no seu conteúdo, mesmo quando são fidedignos. Toda a gente que trabalha com documentos sabe que é comum o seu autor burocrático valorizar-se exagerando o conteúdo da informação que transmite. Depois é fundamental a apreciação crítica e inserção no contexto, compreendendo a natureza das comunicações diplomáticas, que não são a mesma coisa que as comunicações de “intelligence”, nem são actas de reuniões validadas pelos dois interlocutores. Sem estes cuidados, quem usasse as comunicações diplomáticas do Foreign Office oriundas da embaixada e consulados ingleses, nos anos 10 e 20 do século XX, para estudar Portugal (que são conhecidas), chumbaria em qualquer exame de história. Por fim, é preciso saber ler, o “diplomatês”, ou até sequer o inglês e ser fiel ao que lá está, para evitar a manipulação descuidada que tem vindo a ser feita dos telegramas já conhecidos sobre os voos de repatriação de Guantanamo, uma política pública e conhecida ao ponto de até haver presos recolocados em Portugal, confundidos com os voos para a prisão em Cuba, de que até agora não há traços nos telegramas. Até agora.