ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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23.12.10
2011: O ANO NEFASTO
Diz-se que depois da tempestade vem a bonança, mas uma parecença de bonança também vem antes da tempestade. E, em tempo de metáforas meteorológicas, também há o olho do furacão, esse local de paz, antes de os céus nos caírem em cima. Estamos a viver um breve momento de alguma acalmia, depois da votação do Orçamento, acalmia que é mais da ordem de nem tudo continuar, de dia para dia, a ficar pior, do que de estar a ficar melhor. O Natal ajuda, mesmo um Natal mais difícil. Mas preparemo-nos para o pior, que está para vir.
Apesar de, por todo o lado, parecer (e aparecer) que a pobreza cresce exponencialmente, ainda não é verdade, mas vai ser. Eu escrevi, para fúria de alguns, que se estava a gritar ao lobo quando ele está apenas nas margens do povoado, embora caminhe com muita certeza para o seu centro. O cardeal patriarca disse a mesma coisa há uma semana: cuidado porque ainda só estamos a entrar na crise social, porque ela estará no seu pleno em 2011. Pelos vistos não foi interpretado como estando a negar a realidade - não está, nem ele, nem eu, seu humilde e civil companheiro de dizer a mesma coisa -, mas o significado profundo de se avisar que estamos a fazer o barulho todo antes do tempo, em particular dirigido aos media, devia ser ponderado. Quando precisarmos de todos os esforços, de todos os recursos, de todos os alertas para defrontar o momento mais cruel de miséria, as palavras estarão gastas e os que podem dar já estão cansados de as ouvir. Todas as reportagens possíveis e imaginárias sobre a pobreza já estarão feitas e, para os media, o que não tem "novidade" já não existe. O tenebroso efeito mediático da masturbação da dor estará acabado, e nenhuma redacção irá repetir pela enésima vez reportagens sobre o Banco Alimentar, sobre os sem-abrigo, sobre o afluxo às instituições de solidariedade social, sobre a quebra de vendas no comércio. As entrevistas com os que conhecem a pobreza pela acção junto aos pobres sairão da agenda de qualquer telejornal, porque o tema é "chato" e toda a gente está "farta" dele. Ficaremos dependentes dos actos de desespero, quanto mais espectaculares melhor, porque se há coisa que se esgota com muita rapidez é a cobertura televisiva impressionista e ligeira sobre a crise social.
É 2011 o ano de todos os perigos, porque é em 2011 que andaremos violentamente para trás, deixando fora de vista na sua dramaticidade o recuo lento dos últimos anos, mesmo o recuo mais acelerado dos últimos dois anos. Começa, porque é só em Janeiro de 2011 que, primeiro para os círculos concêntricos à volta do Estado, para 700.000 portugueses, depois para 3 milhões e, por último, para todos, a vida vai começar a apertar. Salários e reformas, subsídios e apoios, tudo começará a diminuir, menos os preços, e, para aqueles que já vivem no limiar da pobreza, a queda será rápida. Apesar de a experiência mostrar que o Governo e o Ministério das Finanças não são particularmente capazes de controlar as despesas - são até manifestamente incapazes -, tenho poucas dúvidas de que, entalados como estão, vão passar do oito para o oitenta e haverá um enorme apertão em todo o Estado. Nem é preciso mais do que perceber o que está obsessivamente na mente do ministro das Finanças, que sabe que falhou em 2009 e em 2010, e quererá acertar em 2011. Os homens contam muito e este homem está muito ferido. Se não for a bem (e não vai ser), vai a mal, tudo raso à frente.
E depois, há as pessoas, a começar pelos reformados com pensões mínimas, a continuar pelos desempregados de longa duração, depois pelas famílias desconstruídas, seguindo-se os que já estão muito endividados, e prosseguindo em mil e uma categorias de risco, em que o corte mensal de vinte, cinquenta, cem euros para cima fará toda a diferença. A luz vai custar mais, os barcos que atravessam o Tejo vão custar mais, a água vai custar mais, as portagens vão custar mais, os comboios e os autocarros vão custar mais, a gasolina e o gasóleo vão custar mais, o gás vai custar mais, a vida mais comum e quotidiana vai custar mais. Haverá um vidro que vai continuar partido numa janela, uma lâmpada fundida num candeeiro que se deixou de utilizar, um telemóvel sem serviço, o condomínio mais um ano por pagar, um farol do carro por arranjar, um jornal que se deixou de comprar, um tapete estragado que continuará estragado, uma camisola gasta que se usa puída, uns sapatos velhos de mais, numa vida cansada de mais. Decisões muito complicadas vão ter que ser tomadas em meados de 2011 por muitas famílias: saber se continua a haver dinheiro para pagar a prestação da casa, as dívidas do cartão de crédito, o transporte para a escola, as propinas do filho ou da filha, os medicamentos mensais, as contas a que se reduziu a correspondência, os impostos. E podia continuar indefinidamente, porque há mil e uma atitudes que estão envolvidas nesta queda, a vida toda está envolvida. Estas enumerações são profundamente aborrecidas? São, poucas coisas são mais aborrecidas do que a pobreza. Nada nela brilha.
Em teoria, toda a gente sabe o que há-de fazer. Mas, mesmo que o façam na perfeição, só uma pequena minoria, mais capaz, com mais literacias, é capaz dessa perfeição: poupar, gastar racionalmente, minimizar despesas supérfluas, aguentar, prevenir-se, singrar nas águas agitadas, ter sorte. O resto levará com o tumulto em cima, um tumulto que afecta tanto fisicamente como psicologicamente. Vergonha, humilhação, medo, perda de dignidade, mais medo. Poderá protestar como nunca imaginou, com imensa raiva e violência. Poderá culpar tudo e todos, trucidar os políticos, os bancos, os vizinhos, os ladrões, os ciganos. Mas o mais provável é que sofra em silêncio, que perca os primeiros anos da sua vida adulta, os anos do meio e os anos do fim e o tempo da vida é a única coisa que nunca se recupera. 2011 é o ano da perda.
(Versão do Público de 18 de Dezembro de 2010.) (url)
© José Pacheco Pereira
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