ABRUPTO

3.2.08


PORQUE É QUE "ÉTICA REPUBLICANA" É MUITO MAIS DO QUE A LEI


As declarações do bastonário da Ordem dos Advogados suscitaram um intenso debate sobre a corrupção na vida política, entre os defensores do "prove!" e os defensores do "é mais importante que denuncie e possa denunciar sem ter que provar". É um debate que nasceu torto, continua torto e vai morrer na praia, onde infelizmente morrem em Portugal os debates tortos e até os que o não são. E é pena, porque o que Marinho Pinto diz é verdade e os factos são graves demais para serem ofuscados pelo modo como o disse. E, pior ainda, há mais inocência nas palavras do bastonário do que nos "prove!" que lhe atiraram, vindos de quem sabe bem demais que ele está a suscitar um problema real, que nem sequer precisa de "prova" porque é do domínio da ética política das democracias, antes de ser do domínio do ilícito penal.

A questão é que existe a ideia de que estas matérias de corrupção são para os juristas, os advogados, os procuradores, os polícias e os tribunais, que naturalmente se pronunciam em termos de legalidade ou ilegalidade, de crime, de prova, de lei e de sanção. Mas o problema, se só ficar por aqui, não vai muito longe. E em Portugal é que não vai mesmo para lado nenhum. Nós somos especialistas em fazer as melhores leis do mundo e em arranjar maneira de nunca serem aplicadas. E somos também especialistas em deixar tudo na mesma enquanto, com enorme alarido, dizemos que vamos alterar. O modo como os grupos parlamentares do PS e PSD em uníssono se mostraram disponíveis para o que for preciso fazer para combater a corrupção, depois de terem congelado o pacote Cravinho e de, pelos seus representantes na comissão de Ética, cobrirem todos os deputados que flagrantemente abusaram do seu cargo, mostra bem que dali nada vai vir que não seja fogo de vista.
Se os deputados estiverem de boa fé na luta contra as práticas eticamente inaceitáveis no plano político, sabendo eu que há aqui uma fronteira que só se pode definir caso a caso, alterariam o actual modelo da Comissão de Ética, de modo a que casos como estes e este não possam acontecer sem sanção. O Diário de Notícias de ontem escrevia que eu defendia uma Comissão de Ética "extraparlamentar", que nunca me passou pela cabeça. O que eu defendo é uma Comissão de Ética com reais poderes de sanção (a começar pela censura pública), constituída por personalidades parlamentares, passadas (antigos Presidentes da Assembleia, antigos deputados) e presentes, sem uma lógica maioria-minoria a não ser muito mitigada, com mandatos longos numa lógica senatorial, e de cujas decisões se possa recorrer em plenário com exigência de maioria qualificada.
A questão é que se a corrupção ou o tráfico de influências são crimes, eles estão na ponta final de um longo processo de actos e procedimentos, que começa bem dentro da legalidade, mas já longe da moralidade pública. Eu acho péssimo que a moralidade seja metida ao barulho todos os dias, em particular como julgamento de carácter individual dos políticos. Mas já condeno a indiferença face a regras e procedimentos que, numa democracia, violam o princípio do "exemplo" na coisa pública e estão todos na antecâmara da ilegalidade. Por exemplo, a indiferença com que nos partidos políticos se reage ao conhecimento de pequenas falcatruas, truques e golpes na vida interna partidária parece-me meio caminho andado para o tráfico de influências e a corrupção. Parecem-me e são.
A questão da "ética republicana" aplica-se às aventuras projectistas do primeiro-ministro, que dava o seu nome, perante pagamento, a projectos que precisavam de um "engenheiro". Não é sequer um crime, dizem os especialistas, e poderia ser um pequeno pecado de um jovem no início da carreira, tentando sobreviver, se Sócrates dissesse claramente dito que foi isso mesmo. Ninguém lhe levaria muito a mal, tão generalizada está esta prática. Se há razão para levantar esta questão em termos políticos é exactamente a de saber porque é que esta pequena falcatrua existe e tem que ser feita com conhecimento de todos. Saber se há burocracia a mais, regras absurdas ou se, pelo contrário, são mesmo graves estas assinaturas de cruz. E, então, deveriam ser penalizadas.

Como aconteceu com a saga do diploma - que me parece mais grave porque há documentos que continuam a não ter explicação cabal, como o currículo corrigido na Assembleia -, Sócrates podia ter simplesmente dito que de facto usou um título que formalmente não tinha, até porque isso era uma reivindicação dele e dos seus colegas quanto à equiparação, ou então, que tinha sido pouco cuidadoso nos papéis. E ponto final, ninguém passaria disso, ninguém lhe iria pedir mais contas. Nós percebíamos tudo e, como pessoas sensatas, sabemos que a vida tem destas coisas e querer que toda a gente seja tão bacteriologicamente pura como as cozinhas de sonho da ASAE, é absurdo.

Mas Sócrates torna os seus pecadilhos em algo de mais grave. Torna-os em virtudes e, com arrogância, atribui-se comportamentos exemplares que não teve. E acresce a isso um autoritarismo que tenta sequer impedir que se discutam, e isso sim, lança uma luz perigosa sobre o seu exercício de funções.
Por isso me preocupa o facto de existir gente que acha normal falsificar assinaturas em delegações de voto para uma assembleia distrital, ou condicionar processos eleitorais com pagamentos em massa de quotas a desoras, ou manipular urnas de votos, ou viajar com a família para uma estância turística por conta do Parlamento ou, pior ainda, de haver gente que fazia tráfico de influências antes de a prática ser criminalizada e que só isso impediu de ir a tribunal, e, ainda assim, prosseguir, impune e serena, uma pequena e média carreira política como se nada fosse, com a aprovação e a indiferença dos seus pares.
Sobre a tentativa de Marques Mendes de introduzir critérios de ética política para além da legalidade / ilegalidade verificada em Tribunal.
Num certo sentido, o problema é ainda pior, porque a indiferença que ocorre no interior dos partidos tem raízes fora, na atitude de muitos portugueses que não se importaram de eleger, por exemplo, Fátima Felgueiras, que pelo menos uma coisa fez que deveria exigir sanção antes sequer de qualquer tribunal a julgar: fugiu à justiça. Num país mergulhado na clientela, na cunha, no patrocinato, em que quase por obrigação e sobrevivência é necessário ser criativo com a lei, é difícil encontrar um impulso e uma motivação forte para a luta contra a ilegalidade e a corrupção.
Outro exemplo do que não se deve fazer nestas matérias encontra-se na desvalorização do processo que o Tribunal de Contas tem aberto contra a nova ministra da Saúde. É um processo que em nada afecta a sua honorabilidade pessoal e em que não está em causa qualquer benefício próprio, mas que não pode ser desvalorizado por governantes e políticos como o está a ser, porque remete para o bom uso dos dinheiros públicos, algo que não pode ser desvalorizado como irrelevante sem apoucar o Tribunal de Contas e sem dar um sinal de indiferença perante um eventual mau uso dos dinheiros públicos.
Insisto por isso num ponto que tem a ver com a frase de Pina Moura quando disse que para ele "a ética da República é a ética da lei" e não podia haver nenhuma questão de ética que não tivesse como fundamento a ilegalidade. Havia e grave: a óbvia incompatibilidade de funções entre ser deputado da Assembleia da República portuguesa, tendo assim acesso a informação privilegiada e podendo moldar a legislação e as políticas no mesmo sector em que a empresa espanhola de que era presidente competia com as nacionais, num mercado cujas regras ele ajudava a definir como deputado português e não como deputado no Congresso dos Deputados, reunindo no Palácio das Cortes em Madrid.

A própria expressão "ética republicana" é aqui abastardada do seu sentido original. Importada pelos socialistas portugueses do PS francês, importada pelo PS francês do jacobinismo, importada pelo jacobinismo do que o jacobinismo pensava ser a "virtude" da república romana que Catão e Cícero defendiam, a ideia de uma "ética" republicana, universal e comum, face à defesa de interesses particulares, de grupo, casta ou facção, está longe de se restringir à lei, mas remete directamente para os "costumes públicos" que dividiam os senadores virtuosos dos que o não eram.

Por tudo isto, e voltando às declarações do bastonário, ou a condenação dos caminhos para a ilegalidade começa cedo no espaço público, dentro dos partidos e dentro do Estado, ou apenas esperar pelo crime e a sanção nunca cortará o caminho aos corruptos. Insisto: há muita coisa que depende apenas da pura vontade dos responsáveis, e o que se verifica é que ela pura e simplesmente não existe. O problema começa aí.

(Versão do Público de 2 de Fevereiro de 2008)

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© José Pacheco Pereira
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