ABRUPTO

25.11.07


A EMERGÊNCIA DO PARTIDO-EMPRESA


Era tão inevitável como a revolução dos astros: a impregnação da política pela linguagem da economia em que o "economês" se junta ao "futebolês" no mesmo lugar do pensamento e do discurso, no léxico do "politiquês". Nos últimos anos a ascensão do "economês" na política e no jornalismo traduzem a crise do referente político-ideológico, por um lado, porque este se transformou num mundo estereotipado de metáforas mortas, desgastado comunicacionalmente; por outro, porque a iliteracia política também cresceu com a ascensão ao poder das "juventudes" partidárias, formadas num jargão utilitário muito reduzido no seu vocabulário e na sua instrumentação teórica. Futebol e economia, jornais desportivos e imprensa económica fornecem chavões e palavras de encher o ouvido, que todos entendem porque lêem e vêem o mesmo, logo funcionam como lubrificante do discurso. Quem é que não percebe quando se diz que "o PS meteu um golo na sua própria baliza", ou que no PSD há agora um CEO e um chairman, como repetiam à exaustão os jornalistas no último congresso do PSD? Passou-se pois assim do relvado e do mister para os players no mercado eleitoral, ou seja, o que antigamente chamávamos "o povo".

Convém, no entanto, não nos iludirmos muito com o brilho modernizador da linguagem acreditando que lá porque se fala "moderno" se pensa e se age "moderno". É evidente que há muita coisa que esta linguagem com funções propagandísticas esconde e que é muito mais terra-a-terra e bem fácil de classificar de modo antigo. Por exemplo, por detrás de uma "reorganização" e "qualificação" do "pessoal" (nos partidos nunca há um downsizing), trata-se de substituir um corpo de funcionários por outro, com base nos mesmos esquemas de patrocinato, clientela e obediência pessoal e de grupo com que se constituiu o anterior.

Motoristas, secretárias, funcionários diversos, nos partidos e nos grupos parlamentares, raras vezes chegaram a essa situação por mérito, mas, nos primeiros tempos, por militância, depois por cunhas e pagamentos de favores a nível nacional, ou regional. Havia quotas locais e regionais, quotas dos secretários-gerais e dos presidentes do partido, e assim se constitui uma burocracia que depois funciona pelas regras da própria burocracia, muito depois de passarem os líderes e os secretários-gerais. Em seguida, como é normal, depois de estarem "dentro", com o poder que isso significa (se há sítio onde os funcionários "sabem" de mais é nos partidos políticos), exercem o poder "de dentro", para chamarem famílias inteiras, maridos, mulheres, filhos, primos, namorados(a), etc., em pacote. Aqui, os partidos não são muito diferentes de muitas outras instituições portuguesas, mesmo muito "modernas", como foi a Gulbenkian, e não só, durante muitos anos.

Se a vida política não se tivesse degradado, seria normal, em particular quando os lugares têm uma componente política de confiança, que as pessoas saíssem com aqueles com quem entraram. Do mesmo modo que os novos ocupantes também saberiam que teriam de sair com os seus empregadores. Um partido não é uma burocracia com funcionários públicos, e a legislação permite, por exemplo, que um funcionário do grupo parlamentar seja "despedido" a qualquer momento por uma assinatura, exactamente porque se pretendeu salvaguardar a condição intangível da "confiança". Se fosse o retorno à dedicação cívica e política, à militância, como norma do trabalho dentro de um partido, que estivesse em causa nesta "modernização" de que se fala agora, eu seria o primeiro a aplaudir. Mas isso é certamente considerado caduco, pouco "moderno", ineficaz, antiquado, coisa de outros tempos, do pós-25 de Abril.

Não é pela utilização do "economês" reorganizativo que se esconde o facto de que o problema para a nova direcção é que eles não fazem parte da "casa", da "casa" de Lisboa, da "sede nacional" e que esta pouco tem a ver com o grupo de fiéis nortenhos (e os fiéis sulistas dos fiéis nortenhos) que querem trazer para ocupar os lugares já tomados pelos velhos habitantes da "casa". Por isso, por detrás de muito deste mambo-jambo "modernizador", há uma simples vontade de despedir aqueles em quem não se tem confiança e dar os lugares e os empregos aos amigos e próximos da nova liderança. É para pagar indemnizações e fazer novos contratos de pessoal que é necessário vender o património. Como escreve João Marques Santos numa análise lúcida do "PSD, SA":
"[Menezes ] quer ser o accionista número um da empresa PSD. Quer que a empresa trabalhe para o patrão, como todas as empresas que se prezam. E que dê lucros. Anseia por dividendos. Prefere, por isso, desdenhar militâncias e pagar a quem o sirva. Para melhor poder despedir quem não execute as suas ordens. Porque os militantes não se despedem, mas os trabalhadores da empresa sim."

(Correio da Manhã)
Um problema complementar tem a ver com aquilo de que uma direcção política (nome que, como antiquado que sou, prefiro a liderança) precisa do aparelho partidário. E aqui também a linguagem do "economês" e o pensamento do partido-empresa é, para além de uma moda, uma ocultação da questão de fundo. É verdade que os recursos do partido estavam erradamente distribuídos (como os do PS aliás, embora um partido no poder compre esses "serviços" a partir do governo), não sobrando meios para apoiar um trabalho de qualificação da acção partidária que deve centrar-se nos governo-sombra e think tanks, organizados dentro e fora do "movimento" partidário. É verdade que sobram motoristas, secretárias e funcionários sem qualificação e faltam economistas, juristas e "estrategos da comunicação" (curioso sinal dos tempos, ninguém fala dos seguranças que parece terem-se tornado mais necessários...), mas o lugar da falta não é o mesmo.

É interessante notar que a nova direcção do PSD, que entende fazer concursos dentro do partido para os lugares de assessores, nunca lhe passou pela cabeça deixar de contratar agências de comunicação profissionais, certamente porque estas lhe fornecem uma ponte para os órgãos de comunicação social já previamente existente e que os assessores que vão contratar não lhe podem dar. Eu, se fosse jornalista, preocupava-me muito com o facto de o aconselhamento económico, jurídico, técnico em geral poder ser dado por assessorias ad hoc e que a "estratégia de comunicação", ou seja, a propaganda moderna, só possa ser feita por agências profissionais.
A sucessão de notícias sobre a "reorganização" do PSD em jornais como o Expresso e o Público revela o novo funcionamento das "fontes" denunciado por Alcides Vieira e comentado por mim aqui. É muito interessante ver como as notícias controladas e as mensagens que intencionalmente são divulgadas, o spin, sobre esta matéria, resultam em notícias favoráveis em termos de propaganda, acríticas e assépticas. São o equivalente das sessões que o Primeiro-ministro organiza com casting de meninos da escola, powerpoint e filmes com animações de computador. Governo e PSD tem hoje as relações com os jornalistas muito profissionalizadas, em detrimento da qualidade da informação e da sua independência crítica. Cada vez mais há "papinha feita", é só comer.
A questão de fundo é que também este tipo de aconselhamento especializado está longe de ser administrativo ou burocrático, mas sim um problema político, porque o que rompeu a ligação do partido à sociedade, aos grupos profissionais, de onde viria toda a informação e aconselhamento necessário foi a crise de credibilidade partidária agravada pela última experiência governativa do PSD. Para além disso, não há aconselhamento, por capaz que ele seja, que supere as deficiências da produção de políticas pelos órgãos próprios (comissão política e permanente) e da sua "locução", por exemplo, no Parlamento, onde escasseiam competências em muitas áreas cruciais do debate público, como se pôde ver na recente discussão parlamentar.

Não são assessores que fornecem um conselho político, sob forma "profissional", quer dizer assalariada, que podem remendar uma crise de credibilidade que rompeu a relação do PSD com os sectores mais dinâmicos da sociedade e dos grupos profissionais, como não são cibercafés que dão um toque tecnológico às sedes do PSD, nem carros pretos que dão a imagem de Estado.
O Expresso de 17 de Novembro explica que dentro de um plano de gestão de imagem, Menezes vai passar a andar sempre em classe executiva nos aviões e a deslocar-se pelo país com staff , em " dois ou três carros escuros" (ipsis verbis). O artigo é consituído por declarações de Ribau Esteves, de um "especialista" da agéncia de comunicação Cunha e Vaz e Associados e por várias frases de fontes anónimas, não se percebe bem porquê. A conclusão assinada por Ângela Silva é esta : "para quem leva dois meses de líder, nada mau!", com ponto de exclamação e tudo.
Não é às fábricas de aparências, cor-de-rosa ou cinzentas, que se deve ir buscar inspiração, nem aos mitos do "futebolês" e do "economês", mas ao conhecimento da sociedade, às virtudes cívicas e à política ao serviço do "bem comum". Seria mais útil lerem, por exemplo, Sá Carneiro, esse político antiquado e pouco "moderno".
Uma "resposta" a este artigo e a outro de teor semelhante de Vasco Pulido Valente encontra-se no blogue de Pedro Santana Lopes.
(No Público de 24 de Novembro de 2007.)

Etiquetas:


(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]