ABRUPTO

1.4.05


O ENXOFRE É BOM PARA AS RÃS?

No Inferno há muito enxofre, mas que me lembre não há rãs. Há umas nos quadros de Bosch, mas ele meteu lá tudo e por isso não conta. No interior da cratera, das paredes e do chão, sai fumo, fumo de enxofre a julgar pelo cheiro e pela cor amarela e avermelhada da terra à volta. Mas, mesmo lá no meio, a chuva há muito tempo fez uma lagoa, cheia de ervas e vida. A julgar pelo festival de som e pelo intenso movimento à superfície, as rãs não se dão mal no Inferno.

*



















"Envio-lhe uma fotografia que tirei no Japão, mais concretamente num dos vulcões do Parque Nacional de Shikotsu-Toya, na ilha de Hokkaido. Pude por lá respirar muito enxofre."


(Pedro Matos Soares)


*

Fernando Pessoa sobre as rãs, lembrado por RM:

Todas as cousas que há neste mundo
Têm uma história,
Excepto estas rãs que coaxam no fundo
Da minha memória.
Qualquer lugar neste mundo tem
Um onde estar,
Salvo este charco de onde me vem
Esse coaxar.

Ergue-se em mim uma lua falsa
Sobre juncais,
E o charco emerge, que o luar realça
Menos e mais.

Onde, em que vida, de que maneira
Fui o que lembro
Por este coaxar das rãs na esteira
Do que deslembro?

Nada. Um silêncio entre juncos dorme.
Coaxam ao fim
De uma alma antiga que tenho enorme
As rãs sem mim

(url)


O VULCÃO QUE JULGAVA QUE ERA UMA BALEIA



Na estação de vigia às baleias - uma barraca de madeira e dois bancos para os homens - viu-se o mar a agitar-se. Baleia de certeza. Os homens deitaram o foguete de aviso e correram para o pequeno porto em baixo, uma fractura entre dois rochedos de basalto que permitia deitar os barcos ao mar. Os barcos sairam atrás da espuma. Quando lá chegaram viram o "mar a ferver" e não havia baleia nenhuma. Fugiram. Era o início de um vulcão. Foi assim.

(url)

31.3.05


NO MEIO

de milhares de quilómetros de mar para todo o lado, em cima de uma rocha de lava, aberto a um vento pouco ameno, é nestes dias escrito o Abrupto. Amanhã descerei a uma cratera, depois de amanhã sentirei o enxofre noutra, depois de depois de amanhã apanharei uma pedrinha de basalto como sinal de que não me esqueço. A obra ao negro.

(url)

29.3.05


AR PURO


C. Monet

(url)


EARLY MORNING BLOGS 461

Brumes et pluies

Ô fins d'automne, hivers, printemps trempés de boue,
Endormeuses saisons ! je vous aime et vous loue
D'envelopper ainsi mon coeur et mon cerveau
D'un linceul vaporeux et d'un vague tombeau.

Dans cette grande plaine où l'autan froid se joue,
Où par les longues nuits la girouette s'enroue,
Mon âme mieux qu'au temps du tiède renouveau
Ouvrira largement ses ailes de corbeau.

Rien n'est plus doux au coeur plein de choses funèbres,
Et sur qui dès longtemps descendent les frimas,
Ô blafardes saisons, reines de nos climats,

Que l'aspect permanent de vos pâles ténèbres,
- Si ce n'est, par un soir sans lune, deux à deux,
D'endormir la douleur sur un lit hasardeux.

(Baudelaire)

*

Bom dia!

(url)

28.3.05


PREPARANDO-ME DE NOVO

para os caminhos de basalto, para onde o ar, a terra e o mar são turbulentos, fervem por dentro, crescem e baixam, porque a terra é viva. Cada um escolhe a chuva com que se molha. Haverá notícias vulcânicas, em breve.

(url)


AR PURO


C. Monet

(url)


EARLY MORNING BLOGS 460


Ma chaumière


Ma chaumière aurait, l'été, la feuillée des bois pour
parasol, et l'automne, pour jardin, au bord de la fenêtre,
quelque mousse qui enchâsse les perles de la pluie, et
quelque giroflée qui fleure l'amande.

Mais l'hiver, - quel plaisir, quand le matin aurait secoué
ses bouquets de givre sur mes vitres gelées, d'apercevoir
bien loin, à la lisière de la forêt, un voyageur qui va
toujours s'amoindrissant, lui et sa monture, dans la neige
et la brume !

Quel plaisir, le soir, de feuilleter, sous le manteau de
la cheminée flambante et parfumée d'une bourrée de geniè-
vre, les preux et les moines des chroniques, si merveil-
leusement portraits qu'ils semblent, les uns jouter, les
autres prier encore !

Et quel plaisir, la nuit, à l'heure douteuse et pâle, qui
précède le point du jour, d'entendre mon coq s'égosiller
dans le gelinier et le coq d'une ferme lui répondre faible-
ment, sentinelle juchée aux avant-postes du village endormi.,

Ah ! si le roi nous lisait dans son Louvre, - ô ma muse
inabritée contre les orages de la vie ! - le seigneur
suzerain de tant de fiefs qu'il ignore le nombre de ses
châteaux ne nous marchanderait pas une chaumine !


(Aloysius Bertrand)


*

Bom dia!

(url)


UMA FORMA PARTICULAR DE DESERTO

cresce nestes dias. A normalidade? O fim dos problemas? O governo finalmente ideal? A graça do estado de graça? Os noticiários televisivos dedicam-se às doenças, entre o alarmismo e o caso humano. Uma lontra nasce em directo. Volta-se ao circo, agora a sério, pelo pitoresco. Os ecologistas assumem o primeiro plano dos grandes problemas nacionais: os animais do circo são maltratados? Três golfinhos apareceram mortos numa praia. Crime ou petróleo? Lá para o Norte fazem-se os folares, lá para o Sul a chuva acabou com a seca. O futebol continua sempre com o mesmo interesse, parece que também normalizado.

Pobres daqueles que duvidam de tanta fartura. Deviam era estar contentes e fazer férias longe, esquecer o fim do Pacto de Estabilidade, esquecer a "tenebrosa" directiva Bolkestein, esquecer as estranhas manobras à volta da Alta Autoridade para a Comunicação Social acerca da compra do grupo Lusomundo, entregar o país ao humor e às “celebridades”. O reino do bem voltou. Mostrem-se agradecidos e dediquem-se às lontras bebés.

(url)

27.3.05


COISAS SIMPLES


Kuzma Petrov-Vodkin

(url)


EARLY MORNING BLOGS 459

E eu te encontrei, num alcantil agreste,
Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas
Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua
Detrás do calvo cerro. A soledade
Não te pôde valer contra a mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!
A tua sombra estampa-se no solo,
Como a sombra de antigo monumento,
Que o tempo quase derrocou, truncada.
No pedestal musgoso, em que te ergueram
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava
O sino os simples sons pelas quebradas
Da cordilheira, anunciando o instante
Da ave-maria; da oração singela,
Mas solene, mas santa, em que a voz do homem
Se mistura nos cânticos saudosos,
Que a natureza envia ao Céu no extremo
Raio de sol, pasmado fugitivo
Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja
Até, na solidão, o esquecimento!


(Alexandre Herculano)

*

Bom dia!

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]