ABRUPTO

31.5.14


 O DIA DA CENSURA

Hoje é o dia absurdo em que, mesmo que queira falar de certas coisas, não posso falar delas. Hoje é um dia em que há censura em nome do mesmo princípio com que houve censura durante quarenta e oito anos: proteger a paz dos espíritos dos portugueses para que eles se portem bem.

 É um absurdo em democracia e este absurdo soma-se a outros que começam a impregnar o tempo e o modo das campanhas eleitorais, acrescentando-se à já enorme decadência daquilo que foi uma das conquistas da democracia – a possibilidade de fazer livremente propaganda das suas ideias, programas e pessoas.

A culpa é de muita gente, do legislador em primeiro lugar, que podia mudar profundamente uma legislação eleitoral que já se revelou ultrapassada e perversa, e não o quer fazer porque isso prejudicaria os grandes partidos. É da Comissão Nacional de Eleições, que soma medidas contraditórias, algumas insensatas e caóticas, actuando pontualmente e sem nexo. É da comunicação social, que se revela muito tesa (e bem) para actuar em conjunto quando os seus interesses económicos estão em causa, e revela uma estranha complacência com esta forma de censura.

Significa que o faz por respeito pela lei? Nem isso, até porque a uma lei iníqua se pode responder com a desobediência cívica e custa-me a perceber por que razão a comunicação social recusa em conjunto esta forma de censura, que viola todos os critérios editoriais e jornalísticos, os únicos que deviam presidir à cobertura de uma campanha eleitoral. E faz ainda pior: responde às deliberações da CNE agravando ainda mais a já baixa qualidade da cobertura da campanha introduzindo critérios que favorecem as candidaturas dos grandes partidos, como já aconteceu nas autárquicas em detrimento das candidaturas independentes.

Não é possível tornar igual durante quinze dias o que é diferente durante anos, nem essa pseudo-igualdade dá qualquer vantagem aos pequenos partidos. Bem pelo contrário, acentua a sua pequenez e torna-os bizarros e folclóricos, que é também o modo de aproximação que favorece o incidentalismo da cobertura política dos nossos dias. Nem tem sentido que a igualdade nas campanhas – que deve ser assegurada por outros mecanismos, como seja, por exemplo, um efectivo controlo dos gastos em campanha, com uma severa limitação do seu montante, assim como dos financiamentos por debaixo da mesa – seja assente no abandono dos únicos critérios que devem presidir à reportagem política, o interesse editorial e jornalístico. Haveria assim uma competição pelo interesse e pela atenção dos media, que não evita desigualdades e injustiças, mas pode favorecer quem tenha alguma coisa para dizer. Nos países civilizados e democracias estabilizadas, ninguém espera que a cobertura do Labour inglês e dos Conservadores seja “equilibrada” com a do Monster Raving Loony Party, nem que haja silêncios pré-eleitorais obrigatórios.

O resultado conjugado de todos estes factores, que desaguam no mesmo pântano, é que é difícil ter uma campanha eleitoral pior do que a actual. Os candidatos e a campanha foram ao nível zero da política e encontraram na comunicação social o parceiro e o espelho ideais. Eles reduziram a campanha a encenações para a televisão e a televisão vai lá obediente cobrir aquilo que sabe que não tem nenhum valor informativo. E não venham agora hipocritamente queixar-se de que “ninguém discute a Europa”, quando nem candidatos nem jornalistas desejam a “chatice” desse debate quando há tanto incidente e anedota mais interessante! Porque é que hoje, no balanço da campanha, no “dia da reflexão”, eu não o posso dizer? Se eu quiser escrever que foi penoso ver a “rua” dos candidatos, em particular, os da maioria, será que o posso dizer? Será que posso dizer que a “rua” desses candidatos foi uma completa mistificação para obter imagens televisivas, daquilo que foi um dolo total, um não-acontecimento, feito de toca e foge, para não haver sarilhos, será que o posso dizer? Será que posso escrever que foi também penoso ver os líderes do PSD, chamados à campanha pelo mestre da coreografia mediática, numa pirueta do tipo das que os seus discípulos na comunicação social gostam muito, e totalmente vazia de significado político, e depois terem tanta vergonha dos candidatos e da campanha que chegaram às suas imediações pestíferas... para irem apoiar o candidato luxemburguês ou dizerem que “votem A ou B, o que conta é votarem”? Será que posso falar da indigência dos candidatos da maioria, a fazer campanha contra um primeiro-ministro do passado, como se agora o PS resolvesse fazer uma campanha contra Santana Lopes? Ou, do vai-não-vai de Mário Soares, à campanha do super-homem da Juventude Socialista de peito feito em que uma caneta inscreve a fogo ou a sangue uma cruz? Ou de como oselfie do PS é uma afronta aos direitos humanos da câmara fotográfica que teve de rebaixar a sua condição de telefone inteligente para minimizar o ar de parvos dos fotografados, que é o aspecto que os selfies dão às pessoas? Será que posso hoje falar em nome dos direitos da máquina, obrigada a estas violências? Será que posso escrever que a campanha de Marinho e Pinto, a única campanha dos pequenos partidos que, por puros critérios jornalísticos, devia ter uma muito maior cobertura, até porque o seu populismo é uma “fruta da época” que exige atenção, foi a mais prejudicada de todas por critérios que favorecem sempre PSD, CDS, e PS? Será que posso dizer que a campanha mais verdadeira, menos enganadora, aquela em que o que há é o que se viu, foi o retrato cruel da solidão política do POUS, no momento em que as televisões filmaram solitária, com a mesma faixa sempre reciclada, Carmelinda Pereira à porta de uma fábrica? Ou dizer aquilo que é evidente que a única campanha que não teve medo da “rua” foi a da CDU, porque é o que é, e a mais não se sente obrigada? E está hoje, como sempre, melhor entre os velhos de Serpa, do que a do PSD-CDS que nem sequer já tem o “cavaquistão”?

E a Europa? A Europa vai levar em cima com a enorme abstenção, que esse é o único voto que é sobre a Europa, sobre o estado actual da União e os seus mandantes, visto que todos os outros são contra ou a favor do Governo. Duvido que, com excepção da minha amiga Teresa de Sousa, haja alguém que vá lá votar por qualquer coisa vagamente europeia, a que nem a alma de Jean Monnet dá hoje vida.

Será que tudo isto se pode dizer? Um minuto antes da meia-noite sim, depois talvez não, porque pode perturbar a paz dos espíritos, agora até prolongada e protegida por um novo prazo a partir do qual se podem conhecer os resultados, não aquele em que as urnas fecham em Portugal, mas aquele em que os últimos eleitores de Reggio de Calábria vão votar. Trata-se de mais uma imposição, a da hora “europeia” de encerramento das urnas, que é aceite em Portugal sem lei, apenas pela obediência a uma ficção, a de que um eleitor de Limerick vai ficar muito impressionado pelos votos no senhor Seguro (logo no senhor Shultz) na ocidental praia lusitana. Claro que, como é óbvio, no momento em que escrevo este artigo, já sei alguns resultados de outros países, onde não se aceitam estas restrições sem sentido, destinadas a dar corpo a uma coisa que não existe: um eleitorado europeu com motivações europeias que unem o cidadão que vota em Arezzo com o que vota em Knokke-le-Zoute ou na Lourinhã. Basta aliás enumerar estes nomes de honestas terras europeias para perceber toda esta ficção. 

E será que posso falar disto hoje, quase como obrigação da consciência, ou não posso ter consciência neste “dia de reflexão”?

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ESPÍRITO DO TEMPO: HOJE
 


Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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22.5.14


   
 SAIBA-SE O QUE SE SOUBER, FICA TUDO NA MESMA


Havia uma fase no governo Sócrates em que tudo o que aparecia a público sobre o Primeiro-ministro, fosse qual fosse a sua gravidade, era respondido com um gigantesco silêncio e não havia follow-up jornalístico. Nunca percebi como tal era possível, visto que, por todos os critérios jornalísticos, as matérias que vinham a público, que podiam ser notícias, documentos, entrevistas de pessoas com conhecimento directo de factos e eventos, exigiam mais esclarecimento. Mas havia era silêncio, como se existissem duas agendas uma a oficial, outra a clandestina.

Foi o que aconteceu com as peripécias sobre a carreira académica de Sócrates, cujo cabal esclarecimento ficou sempre por fazer. Foi também o que aconteceu com a história da tentativa de controlo da comunicação social à volta da TVI, vinda directamente da sede do poder socialista, documentada e que desaguou nas célebres escutas que parecem indestrutíveis, embora houvesse ordem judicial superior para as destruir. A iniciativa de processar Sócrates por parte dos magistrados de Aveiro por abuso de poder, empancou também nas decisões do Supremo e o inquérito parlamentar foi travado nas suas conclusões pela tríade Branquinho – Relvas – Passos Coelho. A protecção que Relvas e Passos Coelho sempre deram a Sócrates nessas complicações é um facto que muitos hoje desejam esconder, mas foi real e efectiva. A história dá muitas voltas, mas compreende-se que assim tenha sido, até porque Relvas tinha também um estranho percurso escolar e havia a Tecnoforma. Eles sabiam que havia, nós não.

Os factos podiam vir a revelar-se falsos ou mal interpretados, – o que não se passou na maioria dos casos, - os testemunhos suspeitos ou enviesados – e serem mesmo assim relevantes do ponto de vista noticioso e a exigir seguimento e esclarecimentos. Mas o silêncio era a regra. Até um dia. Depois desse dia tudo o que tinha aparecido antes tornou-se verdade absoluta, indiscutível e uma avalanche de vozes soltaram-se. Na maioria dos casos, as que antes estavam silenciosas agora estavam na vanguarda do “mata e esfola”. Escrevi na altura que era uma coisa muito portuguesa: quando se cheira a morte do animal, neste caso do “animal feroz”, ou a pessoa começa a estar na mó de baixo, então vão lá todos bater um pouco.

O SILÊNCIO REPETE-SE


Uma coisa semelhante acontece nos nossos dias. Duas entrevistas publicadas aqui na Sábado, revelaram testemunhos em primeira mão com afirmações de gravidade sobre a actuação de membros do actual governo, particularmente Relvas e Passos Coelho, e de Vasco Rato, uma das nomeações mais absurdas e partidarizadas feita sem currículo e apenas por confiança política. Trata-se de revelações sobre matérias de indiscutível gravidade: serviços de informações, negócios privados usando o acesso ao poder político, “facilitação”, e dados sobre o funcionamento interno do círculo político mais próximo do actual poder, à volta de Relvas e Passos Coelho.

 A entrevista do antigo dirigente do SIED Silva Carvalho contém referências a factos, alguns dos quais em completa contradição com afirmações de governantes, inclusive feitas na Assembleia da República (*). Confirma o convite que lhe foi feito para dirigir o SIRP, e o papel de Relvas, Passos Coelho e Vasco Rato em vários contactos a respeito dos serviços. A permanente presença das relações maçónicas na Loja Mozart, e da Ongoing está em toda a descrição dos eventos assim como os mesmos nomes recorrentes, Vasco Rato, Miguel Relvas e Passos Coelho. A mera lista, já conhecida da Loja Mozart, e a contínua transumância entre a Ongoing, o círculo próximo de Passos Coelho, e todas estas peripécias não é novidade, mas deita fumo como uma fogueira de pneus.

Por seu lado, Fernando Madeira, o ex-sócio maioritário da Tecnoforma, faz um retrato exemplar do modo como certas actividades empresariais, por isso lucrativas, dependem estritamente do acesso ao poder político e de como é nessas empresas que fazem a sua carreira de “gestão” muitos dos actuais governantes que não tem outro currículo. O que eles trazem para o negócio não é qualquer experiência empresarial ou de gestão, mas sim a sua agenda telefónica, e as relações de pertença e proximidade, troca de favores com o poder político. São “facilitadores” e há muitos anos Ilídio Pinho disse numa entrevista sobre o mestre deles todos que valia um “milhão de contos”. Como diz Fernando Madeira, “desbloqueiam”: “o Pedro abria as portas todas”. Pode haver ajustes de contas nestas entrevistas, mas os factos nelas revelados permanecem por desmentir. Ambos são testemunhas privilegiadas das matérias sobre as quais falam e, quer num quer noutro caso, os seus depoimentos são consistentes com o que já era conhecido. Mas, para além disso acrescentam detalhes e é nos detalhes que se percebe muita coisa. São um retrato dos círculos negros do actual poder político-partidário em Portugal.

 Não sei se algum dos factos que referi têm incidência criminal e espero que as investigações em curso cheguem a bom termo. Talvez não tenham, embora a história da Tecnoforma é idêntica à de muitas outras empresas criadas em círculos do PSD e PS para usar o acesso ao poder político nacional e local para fazer negócios, e sei também que muita gente enriqueceu nesse processo. Sem esse acesso ao poder político essas empresas não valiam nada, até porque não eram verdadeiramente empresas. No caso dos serviços de informações, a perigosidade da sua politização, para além da que já existiu e da que ainda existe, é um risco para a democracia. As eminências pardas do PSD, as maiores e mais sabidas e os aprendizes de feiticeiro, são nomes que aparecem sempre, tocam e voam para longe quando as coisas começam a apertar.

Repito: não sei se existiram crimes ou não. Mas sei que existiram comportamentos inaceitáveis do ponto de vista político e ético. Nos países de mínima civilização, seriam um escândalo público. Aqui puff… Mas alguém quer saber disso? O silêncio e o encolher de ombros do “fazem todos o mesmo”, explica por que razão podem haver as maiores “revelações”, que fica tudo na mesma.

(*) Posteriormente a este artigo ter sido escrito, e muito tempo depois da entrevista citada, o gabinete do Primeiro-ministro veio negar ter havido um convite formal.

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12.5.14


ABRUPTO COMPLETADO...

...lá para trás, com a colocação de artigos e notas que deveriam já ter sido reproduzidos e não foram.  Por exemplo, os OS PIU-PIU DE MAÇÃES e outros artigos do Público já estão no sítio próprio. As obras continuarão.


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O VASCO PERTO DO FIM


 Se há coisa que o Vasco Graça Moura detestaria, seriam lamúrias pela sua morte. Como poeta conhecia a morte bem melhor do que nós, mas sempre recusou o quotidiano de morrer.

 Até ao seu último dia fez um enorme esforço para manter aquilo que considerava a sua vida normal: escrever o artigo para o Diário de Notícias, ir ao CCB exercer as suas funções, despachar o que tinha de despachar, participar nas conferências e debates que tinha aceite fazer, manter-se ele mesmo. O quotidiano da doença não ajudava, mas o Vasco encontrava nessa aparente normalidade uma força que o susteve até ao fim.

Uma vez, em Estrasburgo, vinha ele divertido com mais uma votação burocrática e absurda no plenário, fazendo poemas jocosos e repentistas a caminho de restaurante, e quando nos sentámos eu pedi-lhe que confirmasse um verso que tinha fixado na memória, para tomar nota. E disse-lhe: “O Vasco agora faz de Goethe e eu de Eckermann.” Eckermann registou as suas “conversações” com Goethe durante os últimos dez anos da vida do poeta, e o seu livro contendo essas conversas é uma fonte importante para conhecer a obra de Goethe. Mais tarde e várias vezes lhe repeti a frase, de que ele obviamente gostava, rindo-se e acrescentando sempre alguma coisa para dar conteúdo ao exercício da função. Vou cumpri-la na medida do possível e aqui ficam algumas “conversações”, em particular com maior urgência aquelas que tenho a certeza que o Vasco gostaria que fossem conhecidas.

O Vasco gostava de honrarias, sempre gostou. Talvez lhe servissem de lenitivo para a dureza das polémicas muitas vezes solitárias, algumas vezes excessivas, em que se metia. Ele gostava de varrer o terreiro a varapau, mas sabia que os feridos e os cobardes regressam a casa jurando vingança pelo escuro. Ele era sobranceiro, mas conhecia na solidão o preço dos seus combates e por isso encontrava nas honrarias que recebia uma espécie de recompensa para compensar o que muitas vezes desejava fazer e entendia que fazia bem, e os seus vários inimigos o impediam de fazer. Nos últimos anos da sua vida, o seu combate contra o Acordo Ortográfico teve custos e não foi por acaso que, na sua morte, a grande ausência foi a universidade, Lisboa e Coimbra em particular.

Quando começaram a circular as notícias de que estava muito doente, começou aquele ciclo de homenagens em que o país é pródigo na hora da morte, com sabor de póstumas, mas mesmo assim estimadas e desejadas pelo Vasco. No entanto, ele sabia bem o que significavam e, fiel ao seu espírito lutador, queria mais do que tudo aquelas que sabia serem mais difíceis. Como bom clássico, até pela vetustez antiga do acto, desejava um doutoramento honoris causa, que sabia ser mais do que merecido. O activismo sem descanso da Maria e de um grupo de amigos próximos moveu céu e terra para que o Vasco, já muito debilitado, pudesse ter essa alegria e reconhecimento. Não foi fácil, houve recusas liminares, mas a Universidade do Porto mostrou muito do seu mérito ao conceder-lha esse último gosto que o homenageia a ele e a ela, Universitas no pleno sentido do termo, e à cidade, o Porto, que tinha mais do que tudo no seu coração.

E aqui volto às minhas funções de Eckermann. Quando falámos do acto académico, ele disse-me que pretendia fazer a sua intervenção em latim, “para contrariar o desprezo que há pelas humanidades”. Eu disse-lhe: “Como o Chris Patten”, porque tinha a certeza de onde vinha a ideia do latim. Chris Patten, último governador de Hong Kong, conservador e católico apostólico romano, era membro da Comissão Europeia e um dos ingleses com que convivíamos nas nossas deambulações europeias, no momento em que se estava a preparar para a função de chanceler da Universidade de Oxford. Ora, o seu discurso inaugural seria, como é da tradição, em latim. A ideia nunca mais abandonou o Vasco.

 Mas uma coisa era tentá-lo, outra fazê-lo. O Vasco tivera sempre uma enorme atracção pelo latim, homem antigo como era, mas nunca conseguira fazer uma tradução “decente”, nas suas palavras, do latim. Tentara traduzir Ovídio, e nos seus papéis devem existir traços dessas tentativas, mas confessou-me que não conseguira. Para traduzir ele precisava de um mínimo fluir da língua, uma melodia que o verso domesticava, mas que, mesmo assim, avançava correndo, nas línguas latinas em que traduzia habitualmente, no francês ou no italiano. No caso do alemão, o que o atraía era a densidade poética, muitas vezes “puramente incompreensível”, como era o caso de Rilke. No latim ele encontrava uma enorme beleza formal, que o atraía muito, mas que não conseguia verter para português com os mesmos exigentes e difíceis critérios de tradução que usou em Dante ou em Racine.

Quando começou a preparar a sua oração latina, o seu estado de cansaço já era grande e rapidamente chegou à conclusão de que não o conseguiria fazer. Falou-me e ao Martim Albuquerque de que talvez o seu latim “não chegasse”, mas mesmo assim tentou. Chegou-me a dizer de cor o início do texto, que não sei se escreveu, começando pela forma ritual como se dirigiria aos seus pares. Eu disse-lhe que me parecia “muito papal”, parecia um consistório, recordados que estávamos da despedida em latim do papa Bento XVI, um papa pelo qual tinha um grande respeito intelectual. De facto, de Chris Patten a Bento XVI, os caminhos da memória são talvez o mais interiormente biográfico dos processos.

Desistiu, certamente com pena. Fez, no entanto, uma grande citação em latim na sua pequena intervenção, dita de pé no limite das suas forças, mas, mesmo assim, valente e contente. Fica a sua intenção, aliás explicitada no seu texto final, de defesa das humanidades, do mundo clássico e antigo, sem o qual somos pouco mais do que ignorantes deslumbrados. De novo, a língua portuguesa, a sua fonte clássica, a sua integridade para criarmos ou pura e simplesmente falarmos, foi a essência dessa defesa intransigente de um mundo do saber e da cultura. Foi mais uma mostra do melhor da arrogância natural de quem sabe, uma atitude que o Vasco prezava e que vinha dessa enorme força interior de quem está a falar em nome de Dante, Villon, Corneille, Shakespeare, Rilke e Racine, e com o gigantesco nariz de Cyrano devidamente empunhado como arma contra uma fauna cortesã e menor.

Foi assim o Vasco no fim, até ao fim.

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 O OPTIMISMO TECNOLÓGICO 


Uma das ideias feitas do nosso tempo é que as tecnologias permitem saber tudo. As tecnologias permitem saber muito, mas não permitem saber tudo, como se vê com o caso do avião malaio. Como pode ter voado tanto tempo sem ser detectado por radares e satélites? Como pode desaparecer tragado pelo oceano? O que é que aconteceu para virar de rumo de forma tão clara? Como interpretamos dados que parecem indicar decisões humanas e ao mesmo tempo ser difícil imaginar qual a sua racionalidade, mesmo terrorista, ou suicida, que são a seu modo formas de racionalidade? 

Podemos vir a saber tudo isto, talvez entre o momento em que o escrevo e a saída da Sábado, mas também podemos ficar sempre na ignorância do que se passou. Então, a mesma forma de optimismo tecnológico, evoluirá para as teorias da conspiração: há quem saiba mas não o diz. As teorias da conspiração são uma forma mutante de continuarmos a acreditar que tudo se pode explicar, às claras ou às escuras. O acaso, uma sucessão de acasos, um muito improvável evento, tudo isso permanecerá de fora porque não serve para “explicar”. 

E uma “explicação” é um enorme conforto psicológico.

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 O FUTEBOL COMO VÍRUS 

Falo com interesse próprio, visto que os programas de televisão em que participo regularmente, deixaram, devido ao futebol, de ter qualquer regularidade. Passam quando passam, chegam quando chegam, partem quando partem. À mesma hora, RTP, SIC, TVI, SICN, TVI24, RTP Informação, falam do mesmo: futebol. A televisão generalista e os canais de notícias tornam-se sem escolha. São o mesmo, falam do mesmo, discutem numa logomaquia infindável, o mesmo. Eu sei… as audiências. 

Porém, pensava eu, que a diferenciação dos canais no cabo entre canais noticiosos e canais desportivos, permitia que os noticiosos, dessem naturalmente as notícias do desporto e depois dessem notícias do resto do mundo. E garanto-vos que há muito mundo fora do futebol, mesmo depois de um jogo entre o Benfica e o Porto. 

A curto prazo, numa situação de quebra de receitas publicitárias, pode parecer vantajoso não perder um único telespectador com a dopagem obsessiva do futebol, mas, a prazo, a descaracterização dos canais noticiosos trará outros perigos. Eles podem competir entre si com o futebol, ou competir com os canais desportivos, numa gigantesca emissão em várias vozes sobre as escolhas dos treinadores, mas a evolução tecnológica acabará por favorecer a liberdade de quem vê televisão, que é o que está em causa com esta lavagem ao cérebro. É que nessas alturas até o Canal Panda ou a TPA, ou uma voz em gujarati ou em ucraniano, são escolhas de respiração.

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TENTEM PERCEBER 


 Entre a torrente de fugas de informação orientadas, como as de Marques Mendes, as fugas de informação resultado da incompetência funcional dos ministérios, as fugas de informações deliberadas destinadas a “preparar” a opinião pública, as fugas de informação intencionais de membro de governo contra outro membro do governo, do CDS contra o PSD e vice-versa, das informações que são de “relatórios técnicos”, cuja autoria se confirma ou não, de “portarias” que pelos vistos são “indicativas”, as contradições entre declarações de governantes portugueses entre si, entre si e a troika, entre si e o FMI, entre versões do mesmo documento, umas preliminares, outras não aprovadas, outras que eram para ser aprovadas e acabaram por não ser quando o assunto veio a público, e mais mil e uma versões de medidas, medidas fantasmas, medidas ad terrorem, medidas para as quais se está a tentar arranjar um nome inócuo, medidas com altifalante e medidas com segredo, - tentem perceber. 

Ele percebe-se. Há muita incompetência e muito engano, mas acaba por perceber-se. Os portugueses acabam por ser geniais e usar uma lanterna poderosa sobre a nuvem confusa. Os portugueses percebem-nas aplicando uma regra simples: se a medida é má para o seu bolso tem alta probabilidade de ser verdadeira.

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11.5.14


PONTO / CONTRAPONTO: NOVO HORÁRIO DA NOVA SÉRIE
  aos domingos às 20 horas na SICN.
  Se o caos do futebol não lhe alterar mais uma vez o horário

HOJE: as setinhas.

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4.5.14


PONTO / CONTRAPONTO: NOVO HORÁRIO DA NOVA SÉRIE
  aos domingos às 20 horas na SICN.
  Se o caos do futebol não lhe alterar mais uma vez o horário

HOJE: Maio.

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3.5.14


ESPÍRITO DO TEMPO
 

Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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© José Pacheco Pereira
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