Se há coisa que o Vasco Graça Moura detestaria,
seriam lamúrias pela sua morte. Como poeta conhecia a morte bem melhor
do que nós, mas sempre recusou o quotidiano de morrer.
Até ao seu último dia fez um enorme esforço para
manter aquilo que considerava a sua vida normal: escrever o artigo para o
Diário de Notícias, ir ao CCB exercer as suas funções,
despachar o que tinha de despachar, participar nas conferências e
debates que tinha aceite fazer, manter-se ele mesmo. O quotidiano da
doença não ajudava, mas o Vasco encontrava nessa aparente normalidade
uma força que o susteve até ao fim.
Uma vez, em Estrasburgo, vinha
ele divertido com mais uma votação burocrática e absurda no plenário,
fazendo poemas jocosos e repentistas a caminho de restaurante, e quando
nos sentámos eu pedi-lhe que confirmasse um verso que tinha fixado na
memória, para tomar nota. E disse-lhe: “O Vasco agora faz de Goethe e eu
de Eckermann.” Eckermann registou as suas “conversações” com Goethe
durante os últimos dez anos da vida do poeta, e o seu livro contendo
essas conversas é uma fonte importante para conhecer a obra de Goethe.
Mais tarde e várias vezes lhe repeti a frase, de que ele obviamente
gostava, rindo-se e acrescentando sempre alguma coisa para dar conteúdo
ao exercício da função. Vou cumpri-la na medida do possível e aqui ficam
algumas “conversações”, em particular com maior urgência aquelas que
tenho a certeza que o Vasco gostaria que fossem conhecidas.
O
Vasco gostava de honrarias, sempre gostou. Talvez lhe servissem de
lenitivo para a dureza das polémicas muitas vezes solitárias, algumas
vezes excessivas, em que se metia. Ele gostava de varrer o terreiro a
varapau, mas sabia que os feridos e os cobardes regressam a casa jurando
vingança pelo escuro. Ele era sobranceiro, mas conhecia na solidão o
preço dos seus combates e por isso encontrava nas honrarias que recebia
uma espécie de recompensa para compensar o que muitas vezes desejava
fazer e entendia que fazia bem, e os seus vários inimigos o impediam de
fazer. Nos últimos anos da sua vida, o seu combate contra o Acordo
Ortográfico teve custos e não foi por acaso que, na sua morte, a grande
ausência foi a universidade, Lisboa e Coimbra em particular.
Quando
começaram a circular as notícias de que estava muito doente, começou
aquele ciclo de homenagens em que o país é pródigo na hora da morte, com
sabor de póstumas, mas mesmo assim estimadas e desejadas pelo Vasco. No
entanto, ele sabia bem o que significavam e, fiel ao seu espírito
lutador, queria mais do que tudo aquelas que sabia serem mais difíceis.
Como bom clássico, até pela vetustez antiga do acto, desejava um
doutoramento honoris causa, que sabia ser mais do que merecido.
O activismo sem descanso da Maria e de um grupo de amigos próximos
moveu céu e terra para que o Vasco, já muito debilitado, pudesse ter
essa alegria e reconhecimento. Não foi fácil, houve recusas liminares,
mas a Universidade do Porto mostrou muito do seu mérito ao conceder-lha
esse último gosto que o homenageia a ele e a ela, Universitas no pleno sentido do termo, e à cidade, o Porto, que tinha mais do que tudo no seu coração.
E
aqui volto às minhas funções de Eckermann. Quando falámos do acto
académico, ele disse-me que pretendia fazer a sua intervenção em latim,
“para contrariar o desprezo que há pelas humanidades”. Eu disse-lhe:
“Como o Chris Patten”, porque tinha a certeza de onde vinha a ideia do
latim. Chris Patten, último governador de Hong Kong, conservador e
católico apostólico romano, era membro da Comissão Europeia e um dos
ingleses com que convivíamos nas nossas deambulações europeias, no
momento em que se estava a preparar para a função de chanceler da
Universidade de Oxford. Ora, o seu discurso inaugural seria, como é da
tradição, em latim. A ideia nunca mais abandonou o Vasco.
Mas uma
coisa era tentá-lo, outra fazê-lo. O Vasco tivera sempre uma enorme
atracção pelo latim, homem antigo como era, mas nunca conseguira fazer
uma tradução “decente”, nas suas palavras, do latim. Tentara traduzir
Ovídio, e nos seus papéis devem existir traços dessas tentativas, mas
confessou-me que não conseguira. Para traduzir ele precisava de um
mínimo fluir da língua, uma melodia que o verso domesticava, mas que,
mesmo assim, avançava correndo, nas línguas latinas em que traduzia
habitualmente, no francês ou no italiano. No caso do alemão, o que o
atraía era a densidade poética, muitas vezes “puramente
incompreensível”, como era o caso de Rilke. No latim ele encontrava uma
enorme beleza formal, que o atraía muito, mas que não conseguia verter
para português com os mesmos exigentes e difíceis critérios de tradução
que usou em Dante ou em Racine.
Quando começou a preparar a sua
oração latina, o seu estado de cansaço já era grande e rapidamente
chegou à conclusão de que não o conseguiria fazer. Falou-me e ao Martim
Albuquerque de que talvez o seu latim “não chegasse”, mas mesmo assim
tentou. Chegou-me a dizer de cor o início do texto, que não sei se
escreveu, começando pela forma ritual como se dirigiria aos seus pares.
Eu disse-lhe que me parecia “muito papal”, parecia um consistório,
recordados que estávamos da despedida em latim do papa Bento XVI, um
papa pelo qual tinha um grande respeito intelectual. De facto, de Chris
Patten a Bento XVI, os caminhos da memória são talvez o mais
interiormente biográfico dos processos.
Desistiu, certamente com
pena. Fez, no entanto, uma grande citação em latim na sua pequena
intervenção, dita de pé no limite das suas forças, mas, mesmo assim,
valente e contente. Fica a sua intenção, aliás explicitada no seu texto
final, de defesa das humanidades, do mundo clássico e antigo, sem o qual
somos pouco mais do que ignorantes deslumbrados. De novo, a língua
portuguesa, a sua fonte clássica, a sua integridade para criarmos ou
pura e simplesmente falarmos, foi a essência dessa defesa intransigente
de um mundo do saber e da cultura. Foi mais uma mostra do melhor da
arrogância natural de quem sabe, uma atitude que o Vasco prezava e que
vinha dessa enorme força interior de quem está a falar em nome de Dante,
Villon, Corneille, Shakespeare, Rilke e Racine, e com o gigantesco
nariz de Cyrano devidamente empunhado como arma contra uma fauna cortesã
e menor.
Foi assim o Vasco no fim, até ao fim.