ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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31.1.14
A “NOVA NORMALIDADE”
Alguns dos autores “fantasmas” da moção de Passos Coelho e que o aconselham pensam em inglês. Felizmente para a legibilidade de grande parte da moção ela não é de autoria de Passos Coelho, mas dos seus “anglo-americanos”, o que é habitual nestes casos em que o Primeiro Ministro tem mais que fazer.
Daí não vem nenhum mal ao mundo, bem pelo contrário, se escolhessem pensar, mesmo em inglês, no Portugal que existe e não numa abstracção ideológica, meio académica, meia ficcional. Os russos, depois da queda da URSS, importaram também alguns dos seus exilados nos EUA da “escola de Chicago” que trouxeram soluções by the book que foram um completo desastre e abriram caminho ao saque dos recursos naturais da Rússia, criando os actuais multi-milionários que são donos dos clubes de futebol, e, mais tarde, colocando a passadeira vermelha para Putin.
O problema é que o inglês em que pensam tem origem nalgumas das correntes mais conservadoras do pensamento anglo-saxónico, e que transportam consigo um programa que, na sua versão populista, deu o Tea Party nos EUA, e, na Europa, um “liberalismo económico” à outrance, que tem legitimado uma política de “refundação” social a favor dos sectores mais privilegiados da sociedade, em particular o sector financeiro, e em desfavor do trabalho e dos mais pobres. Nem vale a pena acrescentar que estas políticas nada têm a ver com a tradição política e ideológica do PSD.
Passos Coelho tem vindo por isso a usar alguma da terminologia deste discurso ideológico, que mistura com o “economês” da sua fala natural. É daí que vem o termo “nova normalidade” que funciona como encantação, ou se quisermos, como wishfull thinking ou puro desejo, de dar um novo status à vida dos portugueses que corresponda às ficções ideológicas dos seus mentores. É um programa subversivo, muito mais radical do que qualquer versão actual do maoismo ou do trotsquismo.
Na moção de Passos Coelho há uma série de frases iniciais em que o verbo central é “apreendemos”, o que encaixa com a ideia da “inevitabilidade”, ou seja a natureza das coisas é uma, assente na visão da economia e do Estado que alimenta estas fábulas, e qualquer desobediência a esse estado natural não pode senão dar maus resultados. A análise é a-histórica e a-política (não é nem uma coisa nem outra), mas pretende essencialmente ser “cientifica”, uma filosofia do comportamento dos homens em sociedade assente no livre-arbítrio económico, em que a “tradição” fornece a estratificação social e em que o lugar que cada um ocupa deriva da sua responsabilidade individual. A ideia que a pobreza era uma manifestação da preguiça e que podia ser superada pelo “trabalho honesto”, numa sociedade de oportunidades, foi recuperada de muitas ideias oitocentistas nos últimos quarenta anos e esteve na moda. O socialismo oitocentista de onde, entre outras genealogias, deriva a “social-democracia” de que falava Sá Carneiro, fez-se contra estas ideias.
Como o desvio da natureza para actos anti-naturais é, na sua própria essência, uma perversão, um pouco como no passado se via a homossexualidade, esta “nova normalidade” é um retorno aos bons costumes sociais e políticos. Não é preciso dizer que tal programa é necessariamente autoritário do ponto de vista político e que a legitimação desse autoritarismo é a “imoralidade” dos costumes sociais vigentes, em particular “os de baixo” e a nova versão dos “de baixo” que são os do “meio”, a classe média.
Existe um parágrafo particularmente significativo na moção que tem passado despercebido, mas resume muito bem o tom moralista arrogante da política que nos é proposta e o seu sentido social.
Nesse parágrafo protesta-se contra aquilo que os seus autores chamam de “ desestruturação da cidadania”. Percebe-se que os autores da moção estão a culpabilizar os portugueses (“a sociedade portuguesa”) por não terem bons costumes. E quais são esses maus costumes? Os “direitos sem deveres”, “a preferência pelo relativismo em detrimento dos valores perenes” (seria interessante saber quais), uma “cultura materialista e individualista” (esta é curiosa), a “deriva dos oportunismos à custa do aniquilamento da responsabilidade”, o “culto da gratificação imediata e da consideração de curto prazo em desfavor da reflexão prospectiva”, e, como cereja em cima do bolo, “a apropriação excessiva dos direitos das gerações futuras por parte das actuais gerações”.
É por isso que, quando os governantes dizem que é apenas porque são obrigados pela troika a tomar medidas como os cortes retrospectivos nas pensões e reformas, estão de facto a enganar-nos. Na verdade, é intencional e faz parte de um plano. É ali que atacam, não pelo peso dessas prestações sociais, (o mesmo se passa no processo paralelo do embaratecimento do valor do trabalho), mas sim porque isso é um elemento do seu plano. Podiam ter todo o ouro do mundo para pagar as dívidas, que não o usariam. Eles têm um alvo.
Por isso, tudo o que é pura ideologia da actual política governativa está aqui: a legitimação de uma sociedade em que não existem direitos sociais (a não ser os da propriedade), a classificação de “oportunismo” à defesa das condições de vida actuais, o alvo nos portugueses dos trinta aos cem anos, centrado na classe média e nos mais velhos, acusados de terem um “culto da gratificação imediata”, e de "apropriação excessiva dos direitos das gerações futuras”. Por isso não me venham dizer que muitas das políticas actuais são apenas transitórias e conjunturais, desprovidas de um plano moral e puritano. Não é verdade, vem na moção de Passos Coelho.
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NOVA ESCRAVATURA CIVILIZADA (NEC):
1. A Juventude Popular propôs numa moção ao Congresso do CDS a diminuição da escolaridade obrigatória do 12º ano para o 9º ano porque “a liberdade de aprender (…) é um direito fundamental de cada pessoa”. Cinco secretários de estado, que pertencem à distinta agremiação, subscreveram a moção, que exprime o direito inalienável à ignorância, como direito individual.(*) Isto escrito por membros de um partido que se diz “personalista”. Aliás há outras puras imbecilidades na moção, como seja a igualização do “autoritarismo do Estado Novo”, com “o autoritarismo do défice e da dívida”, uma “ideia” igualmente muito reveladora do que vai na cabeça dos candidatos a senhoritos do CDS, que, como se vê, nos governam.
2. Num processo de habituação e impregnação pelo veneno dos “argumentos” do poder a que vimos assistindo nos últimos anos, já não se reage a nada, nem sequer a perigosas enormidades, em que o próprio facto de terem sido enunciadas no âmbito do actual poder político já é de si muito preocupante. Há mais extremismo aqui do que no mais obscuro grupo anarquista ou maoista.
3. Vamos pois “explorar” a “ideia” da Juventude Popular e dos seus (nossos) secretários de estado. Comecemos pela “ideia” de que a escolaridade obrigatória até ao 12º ano, um requisito mínimo no actual débil mercado de trabalho, "limita a liberdade". Não custa perceber pela justificação que a mesma é valida para a educação obrigatória em geral. Ou seja, cada um, famílias e pessoas, são livres de escolherem o grau de escolaridade que pretendem ter, como se isto fosse de facto livre. Eu percebo-os, se precisam de marceneiros, trolhas, carpinteiros e electricistas, que dispêndio é terem que ter o 12º ano? Bastava a quarta classe, enquanto Harvard fica para a elite da elite. Aliás, educação e exigência, algumas vezes vão a par e por isso convém perceber que a educação é sempre perigosa para a “ordem social”.
4. Muito bem, mas vamos aprofundar o "conceito". Deixando de haver educação obrigatória, também não tem sentido impedir o trabalho infantil. De facto, que sentido tem a liberdade de não ir à escola sem a liberdade de se poder ir trabalhar? Os pais encontram nessa possibilidade uma maneira de combater as crises, colocando as suas filhas a gaspeadeiras com 14 anos e os rapazes nas obras aos 12. Para além disso, que adolescente gosta da escola? Por que razão não há-de ter a liberdade de ir berrar para uma claque de futebol em vez de ir para as aulas, ou de viver à custa dos pais até aos trinta anos?
5. Vamos ainda aprofundar mais. Na verdade, nós devemos ser senhores do nosso próprio corpo, apenas com a excepção das mulheres grávidas que queiram abortar, porque isso é um crime. Só assim a minha liberdade é plena, por que posso vendê-la, ou comprar a liberdade de alguém. Sendo assim, por que é não tenho a liberdade de me vender como escravo, digamos que por um período de dez ou vinte anos, para poder pagar uma dívida, salvar a casa da família, educar um filho? Quando digo escravo, é escravo mesmo, agora num novo conceito que agradará certamente ao pensamento dos blogues “liberais”, a que podemos chamar a Nova Escravatura Civilizada (NEC).
6. Na NEC há algumas coisas que não se podem fazer a um escravo, como por exemplo, matá-lo, ou mutilá-lo, mas tudo o resto é livre. É por isso que é “civilizada”. Também não se pode marcar com um ferro em brasa, mas pode-se implantar um chip como se faz aos cães. O escravo é propriedade e é defendido pelas regras intangíveis da propriedade. Se fugir está a roubar o seu dono, pelo que pode e deve ser devolvido ao seu legítimo proprietário. Este pode prendê-lo, se quiser, em cárcere privado ou numa nova empresa que forneça serviços de cadeia. Pode fazê-lo trabalhar 18 horas por dia, pode alojá-lo numa casota, pode mandá-lo desactivar uma bomba, dormir com, servir à mesa vestido de libré, ou fazer salamaleques às visitas. Se for literato pode servir de négre do livro de receitas de Madame ou do manual de empreendedorismo do patrão, escrever umas crónicas engraçadas de caça ou touros e cantar o fado se tiver talento. Pode servir de guarda-costas, mordomo ou trabalhador rural, depende das propriedades e virtualidades do senhor. Pode deixá-lo de herança ou oferecê-lo como prenda de casamento. Mas, acima de tudo, pode comprá-lo e vende-lo num mercado regulado, pagando IVA pela transacção. No fundo, no fundo, não há já muitos escravos destes? Não seria melhor para eles a segurança da NEC, a “civilização” de um estatuto baseado na liberdade de cada um se vender por necessidade e de cada um comprar o que pode? Só sociedades socialistas é que podem atentar contra estas liberdades.
7. A minha sugestão à Juventude Popular é que não se acobarde, mas explore as muitas virtualidades do seu projecto. Seria interessante ver, num próximo Congresso do CDS, a bancada superior dos meninos a fazer de gentleman farmer (à portuguesa, claro), ou vestidos de lordes ingleses, e em baixo os seus escravos a distribuir comunicados de imprensa, com a caixa, a escova e graxa prontas para polir as botas de couro, e umas criaditas com a quarta classe, mas a quem as patroas deixam ler a Nova Gente da semana passada, a sussurrar inconfidências e prontas para lhes levar a muda de vestido. Isto sim é que era um Portugal a sério. Só é pena que os malvados do Tribunal Constitucional o impeçam.
(*) O CDS veio posteriormente negar que os Secretários de Estado tivessem assinado a moção e que isso se devia à forma como os seus nomes apareciam no documento e que permitia essa confusão.
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PANGLOSS EM LISBOA, 2014
Todas as vezes que começo estes artigos, a minha
certeza é: “Lá vou outra vez escrever o mesmo”. Olho à volta e vejo mil e
uma coisas mais interessantes para escrever. Por exemplo, sobre o Candide, de Voltaire, que estou a ler agora com outros olhos.
Mas a coisa está tão mal,
que mesmo com o aviso do meu Grilo Falante para deixar o presente e
falar de passarinhos e nuvenzinhas e de como é belo o nosso Portugal, eu
volto ao mesmo. O país está a “dar a volta”, e eu “perturbado”
“zangado”, “ressabiado”, “ignorado”, “velho”, ou “infantil” conforme a
idade do autor da classificação, não vejo os excelsos “sinais da retoma”
e o êxito à vista do “fim do resgate”.
E, por isso mesmo, Cândido e o seu jardim e Pangloss e a sua métaphysico-théologo-cosmolonigologie
acabam a desembocar nestes miseráveis dias de hoje, onde as pessoas de
bem não podem deixar de ficar zangadas com o exercício impante de
hipocrisia que por aí passa nos discursos oficiais, nos comentários
oficiais, no mundo político-mediático cheio de “responsabilidade” e
“inevitabilidade” e vazio. Nuns casos, só vazio, noutros, vazio
interessado e interesseiro. . É, Pangloss estaria bem nos dias de hoje,
contando-nos a “narrativa” “positiva”, “optimista”, “aberta para o
futuro”, “cheia de esperança nas virtudes excepcionais do povo
português”, da actual situação nacional.
Ouvindo Pangloss, ouço-os
a eles: de como vivemos no melhor dos mundos possíveis, com os “sinais
positivos da economia” em cada esquina, com o fim do resgate a prazo, e a
reconquista “plena” da “nossa soberania”, com o estrangeiro, até há
pouco tempo perverso e desconfiado com os PIGS, agora cheio de admiração
pelas virtudes do “ajustamento” português, com o “admirável esforço dos
portugueses” e a capacidade excepcional das suas empresas “para dar a
volta”. Ou seja, estamos mesmo no “fim do caminho”, a “dar a volta”. Mas
a “dar a volta” a quê? “Dar a volta para onde? “Dar a volta” para quem?
É
por isso que não vejo muita diferença entre o que diz Portas, Passos
Coelho, e Cavaco Silva e é repetido pela voz do poder. Acresce que o PS
de Seguro não conta como oposição. Mesmo a esquerda, ao comportar-se
reactivamente como um reverso do espelho do poder, não faz outra coisa
senão reforçar o discurso dominante, aceitando falar a partir dele, a
partir do seu quadro interpretativo, a partir da sua forma mental. O
enorme deserto do pensamento dos nossos dias vive dessa dualidade em que
os temas, os modos e os tempos são definidos pelo poder e “recusados”
pela oposição, dentro da mesma linguagem e aceitando muitas vezes os
mesmos limites.
O discurso do poder hoje assenta num rito de
passagem. Estamos em 2014, o nosso ano da “libertação do resgate”, o
nosso 1640, o ano em que a troika se vai embora. Este é o
tempo, que culmina com um rito de passagem, porque o momento lustral de
recuperação da “soberania” tem data. Por isso, acentua-se o momento da
“passagem”, para festejar um resultado e anunciar uma nova aurora. É
tudo ficção, porque não há nenhuma mudança substancial a ocorrer em Maio
de 2014, vamos continuar presos àquilo a que já estamos presos, seja
pela troika, seja pelo direito de veto de Bruxelas aos
Orçamentos, seja pelo Pacto Orçamental, mas é uma ficção útil,
instrumental. Festejemos.
Para que é que serve este tempo até
Maio? Para nos dizer que até lá temos que aceitar tudo, em particular
esse Orçamento e as suas sucessivas revisões, cujo conteúdo
miraculosamente não entra no discurso oficial, a não ser como o
“instrumento necessário” para o fim do resgate, ou seja, uma coisa
neutra e menor. Discute-se e fala-se muito de uma coisa etérea, os
“sinais da retoma”, e quase nada sobre uma coisa dura e sólida, o
Orçamento que aumenta e muito a austeridade para 2014. Quando vejo
alguém centrar o seu discurso nos “sinais da retoma” já sei ao que vem, e
já sei aquilo de que não vai falar.
A natureza do Orçamento e o
que ele nos diz sobre o que se passou nestes últimos dois anos e o que
se vai passar neste ano de 2014 e no futuro são deixados em silêncio. E
silêncio porque não encaixa no tom congratulatório que tão útil vai ser
para as eleições europeias e as legislativas. Aliás, o silêncio sobre as
motivações eleitorais que já estão presentes na política do Governo é
uma das grandes debilidades da análise presa ao discurso do poder.
Passos e Portas e, de modo diferente, Cavaco pensam e muito nas eleições
de 2014 e 2015, primeiro para as desvalorizar e assegurar que vão ser
inócuas quanto ao “ajustamento”, ou seja, não servem para mudar
políticas, depois para favorecer os partidos mais fiáveis para esse
objectivo, o PSD e o CDS, e o PS de arreata. O discurso sobre o
“compromisso” tem igualmente o objectivo de levar o PS a coonestar a
interpretação governamental e presidencial do “ajustamento” e torná-lo
inócuo como factor de mudança em eleições.
Depois de Maio, o
discurso vai mudar. Vai-nos ser explicado, a todo o momento, “que a
austeridade” não pode acabar”. Findos os festejos, ver-se-á se há ou não
plano cautelar. A inexistência de uma discussão séria sobre um possível
plano cautelar, cujo conteúdo se ignora, é um bom exemplo de como não
há verdadeiro debate democrático no nosso espaço público. Se o plano
cautelar for para um ano, como disse Passos Coelho, ele terá a natureza
de uma continuidade da presença da troika por outra forma, e
atirará para quem governar em 2015 decisões que este Governo pretende
cuidadosamente evitar em ano eleitoral. Se for a mais longo prazo,
disfarçado ou às claras, há que exigir que vá a votos, coisa de que
ninguém fala ou quer e percebe-se porquê.
Depois, tudo o que não
encaixa neste tempo e nesta “narrativa” ou é meramente enunciado por
obrigação, ou não tem papel na interpretação. Aqui Portas, Coelho e
Cavaco falam do mesmo modo. Diz-se umas coisas sobre o sofrimento
social, mas apresenta-se como um dano colateral inevitável. Acima de
tudo, não pode servir como elemento de uma política, apenas como
constatação de um efeito. O verdadeiro sujeito do discurso são sempre
“as empresas”.
Os “mais pobres” são protegidos pela assistência do
Estado e pela caridade, como argumento para atacar os rendimentos dos
que não são tão pobres, aqueles que “ainda têm alguma coisa”, que, esses
sim, são os alvos da política governamental, no assalto àquilo a que se
chamava “classe média”. Claro que não se diz aos mais pobres dos
pobres, cujo papel retórico é importante na legitimação da política
governamental, que assim fica garantido que nunca mais sairão dessa
pobreza. E fica também garantido que muito outros se lhes juntarão.
O
reverso deste discurso é a propaganda, em que muitos órgãos de
comunicação participam, por folclore da “novidade” e ignorância, dos
“sucessos empresariais” dos que “dão a volta”, e fazem compotas em casa
ou móveis com lixo, ou vão fazer agricultura biológica. Para além de
nunca se voltar mais tarde, nem que seja um ano depois, para ver o
“sucesso” dessas microempresas, não se diz que pura e simplesmente,
mesmo que algumas tenham sucesso, são uma gota de água na desgraça geral
e acima de tudo que não são o caminho alternativo às fábricas que
fecham ou aos milhares de funcionários públicos que vão para a rua, nem
ao desemprego eufemisticamente designado como “de longa duração”.
Em
“colóquios” e “congressos”, em mensagens televisivas, e nos repetidores
habituais, este é o discurso do poder para 2014. Nada de importante é
enunciado, muito menos discutido, ou vai a votos, tudo está pactuado
dentro do círculo do poder estabelecido. E nós somos apenas paisagem. Na
verdade, diria Pangloss, “está demonstrado que as coisas não podiam ser de outra maneira”. “Tudo foi feito para um objectivo”: “os narizes foram feitos para segurar os óculos, e por isso temos óculos”, “as pedras foram formadas para serem talhadas e para fazer castelos, e por isso Monsenhor tem um belo castelo”, e os “porcos foram feitos para serem comidos”, por consequência, “aqueles que dizem que tudo está bem dizem uma asneira, é preciso dizer que tudo está ainda melhor do que eles imaginam”.
Vou ver se consigo para a semana falar de outra coisa. “Cela est bien dit, mais il faut cultiver notre jardin.” Pangloss não me ajuda.
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2014, O COMBATE PELAS PALAVRAS
2014 será um ano de completo, devastador, cruel, sem
tréguas, combate pelas palavras. Dizendo palavras digo também ideias e
fragmentos de ideias, mensagens virais e manipulações circulantes,
explicações e mistificações, estatísticas, estatísticas torturadas, soundbites e frases assassinas.
Propaganda e razão vão
estar de lados opostos, manipulação e vontade de verdade (concessão aos
que a palavra verdade de per si ofende) vão-se defrontar, como sempre,
de forma imperfeita e desigual. Do lado do poder todos os recursos serão
utilizados, “comunicação política”, agências de comunicação,
assessores, briefings e ministros da propaganda, marketing e “eventos” (tenho a certeza que Portas já pensa num “evento” grandioso e patriótico para festejar a “saída” da troika, por singular coincidência a dias das eleições europeias…).
Esse
combate irá travar-se numa parte decisiva na comunicação social, em
primeiro lugar na televisão, depois nas “redes sociais” e nos blogues e
por fim na imprensa escrita. Alguns jornalistas ficam muito irritados
quando afirmo (e vou repetir) que um dos problemas dos dias de hoje na
vida pública em Portugal é a facilidade com que a comunicação social
absorve a linguagem do poder e a reproduz como sendo sua, assim
legitimando-a porque lhe dá um sujeito neutro, tornando-a uma verdade
universal. Este processo não é simples, não se trata de estar “a favor”
ou “contra” o Governo, nem sequer de actuar em função de preferências ou
hostilidade partidárias, porque se fosse assim seria mais fácil
identificar o que se passa.
Há um papel importante para os gostos e
os ódios pessoais, mas isso faz parte do meio jornalístico desde
sempre. O hábito é ajustar contas em função das simpatias ou antipatias
pessoais entre jornalistas, políticos e outras personagens do espaço
público, muito mais eficaz como explicação do que as simpatias
partidárias. A promiscuidade entre jornalistas e “fontes”, a troca de
favores e cumplicidades, as amizades e os amores, as vinganças e elogios
interessados passam-se de modo subterrâneo, mas explicam muito da
atitude de jornalistas face aos detentores do poder político, actual ou
passado. Ora pouca gente cultiva mais a sua relação com os jornalistas
do que os grupos dirigentes das “jotas” dos partidos, seja do PS ou do
PSD, cuja proximidade social, cultural, de mentalidade e modo de vida, é
quase total, e cuja partilha geracional de vocabulário (escasso),
fragmentos de ideias, mitos e (in)experiências é igualmente comum.
Muitas
vezes estas empatias têm a ver com o bem escasso da “influência” e os
conflitos pela capacidade de a ter, outras vezes é inveja por ganhos e
recursos. O problema é que, sendo esta uma explicação importante para
muito do que se publica e se diz, ainda por cima em meios muito
pequenos, que comunicam entre si, e onde está sempre alguém no lugar
pretendido por outrem, ela é invisível para a comunidade dos
consumidores dos media, que desconhecem muitos dos meandros que
estão atrás dos bastidores. Explicava muita coisa, como se percebeu
quando do “caso Relvas”, mas é na maioria dos casos impossível de usar.
Há
cada vez mais jornalistas e jornalistas-comentadores mais próximos do
poder, partilhando do mesmo pensamento de fundo associado ao
“ajustamento”, embora possam discordar e algumas vezes serem até
agressivos na crítica a aspectos de detalhe da governação. O problema é
que a concordância de fundo é muito mais importante do que a
discordância no detalhe e o núcleo central de legitimação do poder
permanece intocável.
A mentalidade adversarial da comunicação
social, já em si mesmo uma fragilidade, deu lugar a uma enorme
complacência com o poder. Uma das razões desta proximidade de fundo tem a
ver com o papel cada vez mais destacado da imprensa económica em tempos
em que a “crise” é dominantemente explicada apenas pelas suas variantes
económicas. O predomínio da economia levou a um avolumar do “economês”,
uma variante degradada quer da economia, quer da política. E esse
“economês” favorece os argumentos de “divisão” que têm tido muito
sucesso no discurso público, fragilizando, no conflito social, umas
partes contra as outras. Este discurso da divisão é uma novidade desta
crise e uma das principais vantagens da linguagem do poder.
Colocar
novos contra velhos, empregados contra desempregados, trabalhadores
privados contra funcionários públicos, reformados da Segurança Social
contra pensionistas da CGA, sindicalizados contra “trabalhadores”,
grevistas contra a “população”, e muitas outras variantes das mesmas
dicotomias, tem tido um papel central no discurso governamental, que
encontra na “equidade” um dos mais fortes elementos de legitimação. Se
se parar para pensar, fora dos quadros das “evidências” interessadas,
verifica-se até que ponto uma espécie de neomalthusianismo grosseiro
reduz todas estas dicotomias a inevitabilidades a projecções sobre o
“futuro” muito simplistas e reducionistas e que recusam muitos outros
factores que deviam entrar na avaliação dessa coisa mais que improvável
que é o “futuro”. À substituição da política em democracia, com o seu
complexo processo de expectativas e avaliações, traduzidas pelo voto,
ameaçando, como dizem os “ajustadores”, pela “politiquice”, ou seja, as
eleições, a “sustentabilidade” das soluções perfeitas de 15 ou 20 anos
de “austeridade”, soma-se a completa falta de pensamento sobre o modo
como as sociedades funcionam, que o “economês”, que é má economia, não
compreende.
A redução das análises correntes a este “economês”,
sem política democrática, nem sociedade, revela-se num fenómeno recente
que é a proliferação de livros de jornalistas com as receitas para
salvar o país, quase todos sucessos editoriais. Eles mostram a
interiorização profunda, em muitos casos prosélita, noutros mais
moderada, da linguagem, explicações, legitimações, amigos e adversários,
proto-história e factos seleccionados, do discurso do poder sobre a
crise. A isso acrescentam propostas em muitos casos inviáveis em
democracia e num Estado de direito, e cuja eficácia, mesmo nos seus
termos, está por demonstrar.
Esses livros favorecem a ideia de que
o “vale-tudo” que está por detrás da continuada sucessão de legislação
inconstitucional do Governo poderia ser a solução ideal “para Portugal”,
que infelizmente é “proibida” ou pela “resistência corporativa” dos
interesses ou por entidades como o Tribunal Constitucional, ou mesmo
pela “ignorância” e impreparação da opinião pública. Escreve-se como se
não houvesse interesses legítimos que o Estado de direito acautela, ou
práticas brutais de transferência de rendimentos e recursos, que tem
sempre quem ganha e quem perde, cujos efeitos na conflitualidade social
tornam por si próprio insustentável a sua manutenção. São de um modo
geral muito complacentes com os de “cima” e muito críticos dos de
“baixo”, e dão pouca importância aos efeitos de exclusão e diferenciação
social que as suas políticas propõem, mas, acima de tudo, ignoram
sistematicamente que elas falham no essencial, ou seja, que são
ineficazes para os objectivos pretendidos.
A solução é, em vez de
mudar as políticas, acrescentar-lhes mais tempo e é por isso que o coro
da “austeridade” para décadas é cada vez maior e será ruidoso depois da troika mandar
aterrando cá, para mandar a partir de Bruxelas. Aliás, será um
interessante exercício ver o que nos diziam em 2011, sobre os resultados
que já se deveriam ver em 2012, e o milagre de uma economia pujante
“libertada do Estado”, já em 2013, e que agora é de novo prometida em
2014. Se diminuíssemos a dívida e défice em função das “intenções
proclamadas” para o ano seguinte, já estávamos a cumprir o Pacto
Orçamental.
Alguns jornalistas sabem que é assim, que a linguagem
do poder se estabeleceu de forma acrítica na comunicação social, e aqui e
ali tentam funcionar a contracorrente. Mas as redacções estão muito
degradadas, com meios muito escassos, o trabalho precário, barato ou
quase gratuito, pouco qualificado, prolifera e o emprego está sempre em
risco, pelo que a prudência exige muita contenção. Por outro lado, o
papel crescente da “comunicação” profissionalizada, a que Governo e
empresa, recorrem cada vez mais, exerce uma pressão considerável no
produto final da comunicação social, em particular na informação
económica. A isto se junta o proselitismo na Rede, nos blogues e no
Facebook, nos comentários anónimos, às claras ou em operações “negras”
de assessores militantes e amigos dos partidos do Governo, à procura de
um lugar ao sol, ao exemplo do que um destes operacionais revelou
recentemente numa entrevista à Visão.
Por isso, neste
combate pelas palavras de 2014, o Governo parte em vantagem, não porque
tenha razão, mas porque tem mais meios e, pior ainda, conta com a força
que num país pequeno, fragilizado, com uma classe média empobrecida, com
uma opinião pública débil, tem o discurso que vem do lado do poder. Já
acontecia com Sócrates, acontece com Passos Coelho.
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EUSÉBIO E A ILUSÃO DOS NOSSOS EXCESSOS (1)
Este número da Sábado é dedicado a Eusébio e muitas outras iniciativas por estes dias homenageiam a figura do jogador. Direi apenas que o louvor e a memória são mais que justificáveis por um homem que foi um grande jogador de futebol, que soube, pela combinação da sua capacidade como jogador e pelo seu “trato”, tornar-se um herói popular dos anos sessenta para a frente. Todas as dificuldades lhe foram postas à frente, do racismo à pequenez nacional que o transformou numa espécie de fetiche de um clube que o passeava como a águia Vitória. Mas o homem era bom, tinha uma memória muito viva do que era a miséria de onde tinha vindo, gostava de companhia e como aqueles velhos boxeurs dos filmes americanos, dava-se bem no ambiente dos ringues, onde antes fora o primeiro combatente e agora estava lá sentado num banco a ver.
Havia uma tristeza em tudo aquilo, mas admito que seja nos nossos olhos e não nos dele. Estamos para Eusébio como os argentinos estavam para Maradona, e não é por acaso que escolhi Maradona e não outro jogador argentino menos controverso e mais “limpo”. É que em ambos, há essa fragilidade humana que os torna ainda mais “nossos” por boas e más razões. Que tenha boa memória e terra leve.
EUSÉBIO E A ILUSÃO DOS NOSSOS EXCESSOS (2)
Mas uma coisa é homenagear Eusébio, outra essa histeria colectiva patrocinada pelos órgãos de comunicação social, que durante vários dias reduz o mundo todo a uma espécie de comoção nacional generalizada, dramatizada até aos limites, envolvendo tudo e todos num happening de dor encenada, porque a real passa-se sempre fora dos ecrãs. Há algo de pouco sadio em todos estes excessos, algo do mal português que facilmente se identifica como a consciência envergonhada da fraqueza transformada em vanglória. Há uma mistura de nacionalismo, de vontade que os outros nos respeitem, apesar de não nos respeitarem, uma vontade de ser alguma coisa no mundo, que efectivamente não somos, e que nunca seremos se nos ficarmos apenas pelas “glórias” do futebol, seja Eusébio, seja Cristiano Ronaldo.
Houve quem propusesse que Eusébio fosse enterrado no Panteão, ao lado das glórias da pátria. Da maneira que as coisas estão, é-me bastante indiferente. Mas com este tipo de critérios, nascido da histeria destes dias e da nossa confusão colectiva, a prazo iremos ter o Panteão só com jogadores de futebol, e isso sim é um retrato do país muito preocupante, mas se calhar realista.
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UM BOM LIVRO PARA LER ESTES DIAS
A tradução portuguesa da síntese histórica que Antony Beevor fez da segunda guerra mundial recomenda-se para quem não é especialista da matéria, mas quer conhecer um dos acontecimentos decisivos da história que ainda nos faz. Sequência natural da guerra civil europeia que desde o fim da primeira grande guerra, desde 1917- 1918, marca a história do século XX, a guerra de 1939-1945, acabou apenas com a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS. Muita coisa continua viva, debaixo do tapete da União Europeia, dos Decretos Benes sobre a propriedade alemã nos Sudetas, até ao enclave de Kalininegrado, e, para a perceber, é importante a história da guerra. Milhares de livros já foram publicados sobre esta matéria, mas Beevor, que já tinha sido autor de vários estudos sobre a guerra, faz aqui uma síntese narrativa muito consistente.
Começa, e bem, por onde não é habitual começar, pela guerra entre o Japão e a China nos anos trinta, um conflito devastador e cruel, que faz parte, como a guerra civil espanhola, de um ciclo que desemboca na primeira verdadeira guerra mundial, que conhecemos como sendo a segunda. Na verdade, a guerra de 1914- 18 travou-se em vários continentes, em África, na Ásia, na Oceânia, para além da Europa, envolveu os EUA e a Turquia, mas não teve a dimensão mundial dos grandes combates asiáticos e no Pacífico, da segunda guerra de 1939-45. Vale por isso a pena ler este livro, grande em número de páginas, mas de fácil leitura.
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VAMOS COLOCAR UM NOVO RELÓGIO…
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ANO NOVO?
Será que vamos ter mesmo um ano “novo”? No plano político três coisas vão defini-lo: se haverá ou não resgate ou plano cautelar; quem e como vão ser ganhas as eleições europeias, e qual o grau do “consenso” entre PSD e PS. Cada uma delas actuará sobre o contexto actual, os protagonistas actuais, os partidos como eles estão e por isso serão conjunturais, mais do que estruturais. Se se combinarem para gerar uma “tempestade perfeita”, - como pode acontecer se for necessário um novo resgate, ou as condições “cautelares” forem muito pesadas, ou o PSD-CDS se sair bem das europeias, - por muita inércia que o sistema tenha, então a mudança pode ser de natureza estrutural e implicar um novo ciclo. Só eleições podem permitir e potenciar essa saída e por isso a possibilidade de eleições, indesejadas até ao limite pelo establishment, permanece em aberto.
È também por isso que grandes manobras eleitorais são de prever, até porque PSD, CDS e o governo já estão em modo eleitoral.
No plano económico, os dados estão lançados e não haverá grandes surpresas. Algumas estatísticas vão melhorar dentro de uma mediocridade geral de resultados. Outras vão piorar, e o governo fará sobre elas o silêncio total, para não estragar os “sinais”. Mas uma coisa não acontecerá, como aliás não aconteceu, nem haverá transformação estrutural da nossa economia, nem “milagre económico”.
No plano social, não haverá ano “novo”. Será a mesma coisa, agravada pela passagem do tempo, ou seja, empobrecimento dinâmico. Desta situação social pode resultar uma subida de tom da conflitualidade, e não é possível saber se qualquer “centelha” incendeia a planície. O governo teme isso mais do que o admite em público, e tem razão em ter medo.
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© José Pacheco Pereira
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