ABRUPTO

23.1.14


 
 NOVA ESCRAVATURA CIVILIZADA (NEC): 
UM OUTRO CONCEITO DE LIBERDADE INDIVIDUAL 

1. A Juventude Popular propôs numa moção ao Congresso do CDS a diminuição da escolaridade obrigatória do 12º ano para o 9º ano porque “a liberdade de aprender (…) é um direito fundamental de cada pessoa”. Cinco secretários de estado, que pertencem à distinta agremiação, subscreveram a moção, que exprime o direito inalienável à ignorância, como direito individual.(*) Isto escrito por membros de um partido que se diz “personalista”. Aliás há outras puras imbecilidades na moção, como seja a igualização do “autoritarismo do Estado Novo”, com “o autoritarismo do défice e da dívida”, uma “ideia” igualmente muito reveladora do que vai na cabeça dos candidatos a senhoritos do CDS, que, como se vê, nos governam. 

2. Num processo de habituação e impregnação pelo veneno dos “argumentos” do poder a que vimos assistindo nos últimos anos, já não se reage a nada, nem sequer a perigosas enormidades, em que o próprio facto de terem sido enunciadas no âmbito do actual poder político já é de si muito preocupante. Há mais extremismo aqui do que no mais obscuro grupo anarquista ou maoista. 

 3. Vamos pois “explorar” a “ideia” da Juventude Popular e dos seus (nossos) secretários de estado. Comecemos pela “ideia” de que a escolaridade obrigatória até ao 12º ano, um requisito mínimo no actual débil mercado de trabalho, "limita a liberdade". Não custa perceber pela justificação que a mesma é valida para a educação obrigatória em geral. Ou seja, cada um, famílias e pessoas, são livres de escolherem o grau de escolaridade que pretendem ter, como se isto fosse de facto livre. Eu percebo-os, se precisam de marceneiros, trolhas, carpinteiros e electricistas, que dispêndio é terem que ter o 12º ano? Bastava a quarta classe, enquanto Harvard fica para a elite da elite. Aliás, educação e exigência, algumas vezes vão a par e por isso convém perceber que a educação é sempre perigosa para a “ordem social”. 

 4. Muito bem, mas vamos aprofundar o "conceito". Deixando de haver educação obrigatória, também não tem sentido impedir o trabalho infantil. De facto, que sentido tem a liberdade de não ir à escola sem a liberdade de se poder ir trabalhar? Os pais encontram nessa possibilidade uma maneira de combater as crises, colocando as suas filhas a gaspeadeiras com 14 anos e os rapazes nas obras aos 12. Para além disso, que adolescente gosta da escola? Por que razão não há-de ter a liberdade de ir berrar para uma claque de futebol em vez de ir para as aulas, ou de viver à custa dos pais até aos trinta anos? 

5. Vamos ainda aprofundar mais. Na verdade, nós devemos ser senhores do nosso próprio corpo, apenas com a excepção das mulheres grávidas que queiram abortar, porque isso é um crime. Só assim a minha liberdade é plena, por que posso vendê-la, ou comprar a liberdade de alguém. Sendo assim, por que é não tenho a liberdade de me vender como escravo, digamos que por um período de dez ou vinte anos, para poder pagar uma dívida, salvar a casa da família, educar um filho? Quando digo escravo, é escravo mesmo, agora num novo conceito que agradará certamente ao pensamento dos blogues “liberais”, a que podemos chamar a Nova Escravatura Civilizada (NEC). 

 6. Na NEC há algumas coisas que não se podem fazer a um escravo, como por exemplo, matá-lo, ou mutilá-lo, mas tudo o resto é livre. É por isso que é “civilizada”. Também não se pode marcar com um ferro em brasa, mas pode-se implantar um chip como se faz aos cães. O escravo é propriedade e é defendido pelas regras intangíveis da propriedade. Se fugir está a roubar o seu dono, pelo que pode e deve ser devolvido ao seu legítimo proprietário. Este pode prendê-lo, se quiser, em cárcere privado ou numa nova empresa que forneça serviços de cadeia. Pode fazê-lo trabalhar 18 horas por dia, pode alojá-lo numa casota, pode mandá-lo desactivar uma bomba, dormir com, servir à mesa vestido de libré, ou fazer salamaleques às visitas. Se for literato pode servir de négre do livro de receitas de Madame ou do manual de empreendedorismo do patrão, escrever umas crónicas engraçadas de caça ou touros e cantar o fado se tiver talento. Pode servir de guarda-costas, mordomo ou trabalhador rural, depende das propriedades e virtualidades do senhor. Pode deixá-lo de herança ou oferecê-lo como prenda de casamento. Mas, acima de tudo, pode comprá-lo e vende-lo num mercado regulado, pagando IVA pela transacção. No fundo, no fundo, não há já muitos escravos destes? Não seria melhor para eles a segurança da NEC, a “civilização” de um estatuto baseado na liberdade de cada um se vender por necessidade e de cada um comprar o que pode? Só sociedades socialistas é que podem atentar contra estas liberdades. 

7. A minha sugestão à Juventude Popular é que não se acobarde, mas explore as muitas virtualidades do seu projecto. Seria interessante ver, num próximo Congresso do CDS, a bancada superior dos meninos a fazer de gentleman farmer (à portuguesa, claro), ou vestidos de lordes ingleses, e em baixo os seus escravos a distribuir comunicados de imprensa, com a caixa, a escova e graxa prontas para polir as botas de couro, e umas criaditas com a quarta classe, mas a quem as patroas deixam ler a Nova Gente da semana passada, a sussurrar inconfidências e prontas para lhes levar a muda de vestido. Isto sim é que era um Portugal a sério. Só é pena que os malvados do Tribunal Constitucional o impeçam. 

(*) O CDS veio posteriormente negar que os Secretários de Estado tivessem assinado a moção e que isso se devia à forma como os seus nomes apareciam no documento e que permitia essa confusão.

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© José Pacheco Pereira
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