ABRUPTO

31.1.14


 
A “NOVA NORMALIDADE” 

Alguns dos autores “fantasmas” da moção de Passos Coelho e que o aconselham pensam em inglês. Felizmente para a legibilidade de grande parte da moção ela não é de autoria de Passos Coelho, mas dos seus “anglo-americanos”, o que é habitual nestes casos em que o Primeiro Ministro tem mais que fazer. Daí não vem nenhum mal ao mundo, bem pelo contrário, se escolhessem pensar, mesmo em inglês, no Portugal que existe e não numa abstracção ideológica, meio académica, meia ficcional. Os russos, depois da queda da URSS, importaram também alguns dos seus exilados nos EUA da “escola de Chicago” que trouxeram soluções by the book que foram um completo desastre e abriram caminho ao saque dos recursos naturais da Rússia, criando os actuais multi-milionários que são donos dos clubes de futebol, e, mais tarde, colocando a passadeira vermelha para Putin. 

 O problema é que o inglês em que pensam tem origem nalgumas das correntes mais conservadoras do pensamento anglo-saxónico, e que transportam consigo um programa que, na sua versão populista, deu o Tea Party nos EUA, e, na Europa, um “liberalismo económico” à outrance, que tem legitimado uma política de “refundação” social a favor dos sectores mais privilegiados da sociedade, em particular o sector financeiro, e em desfavor do trabalho e dos mais pobres. Nem vale a pena acrescentar que estas políticas nada têm a ver com a tradição política e ideológica do PSD. 

Passos Coelho tem vindo por isso a usar alguma da terminologia deste discurso ideológico, que mistura com o “economês” da sua fala natural. É daí que vem o termo “nova normalidade” que funciona como encantação, ou se quisermos, como wishfull thinking ou puro desejo, de dar um novo status à vida dos portugueses que corresponda às ficções ideológicas dos seus mentores. É um programa subversivo, muito mais radical do que qualquer versão actual do maoismo ou do trotsquismo. 

Na moção de Passos Coelho há uma série de frases iniciais em que o verbo central é “apreendemos”, o que encaixa com a ideia da “inevitabilidade”, ou seja a natureza das coisas é uma, assente na visão da economia e do Estado que alimenta estas fábulas, e qualquer desobediência a esse estado natural não pode senão dar maus resultados. A análise é a-histórica e a-política (não é nem uma coisa nem outra), mas pretende essencialmente ser “cientifica”, uma filosofia do comportamento dos homens em sociedade assente no livre-arbítrio económico, em que a “tradição” fornece a estratificação social e em que o lugar que cada um ocupa deriva da sua responsabilidade individual. A ideia que a pobreza era uma manifestação da preguiça e que podia ser superada pelo “trabalho honesto”, numa sociedade de oportunidades, foi recuperada de muitas ideias oitocentistas nos últimos quarenta anos e esteve na moda. O socialismo oitocentista de onde, entre outras genealogias, deriva a “social-democracia” de que falava Sá Carneiro, fez-se contra estas ideias. 

Como o desvio da natureza para actos anti-naturais é, na sua própria essência, uma perversão, um pouco como no passado se via a homossexualidade, esta “nova normalidade” é um retorno aos bons costumes sociais e políticos. Não é preciso dizer que tal programa é necessariamente autoritário do ponto de vista político e que a legitimação desse autoritarismo é a “imoralidade” dos costumes sociais vigentes, em particular “os de baixo” e a nova versão dos “de baixo” que são os do “meio”, a classe média. Existe um parágrafo particularmente significativo na moção que tem passado despercebido, mas resume muito bem o tom moralista arrogante da política que nos é proposta e o seu sentido social. 

Nesse parágrafo protesta-se contra aquilo que os seus autores chamam de “ desestruturação da cidadania”. Percebe-se que os autores da moção estão a culpabilizar os portugueses (“a sociedade portuguesa”) por não terem bons costumes. E quais são esses maus costumes? Os “direitos sem deveres”, “a preferência pelo relativismo em detrimento dos valores perenes” (seria interessante saber quais), uma “cultura materialista e individualista” (esta é curiosa), a “deriva dos oportunismos à custa do aniquilamento da responsabilidade”, o “culto da gratificação imediata e da consideração de curto prazo em desfavor da reflexão prospectiva”, e, como cereja em cima do bolo, “a apropriação excessiva dos direitos das gerações futuras por parte das actuais gerações”. 

É por isso que, quando os governantes dizem que é apenas porque são obrigados pela troika a tomar medidas como os cortes retrospectivos nas pensões e reformas, estão de facto a enganar-nos. Na verdade, é intencional e faz parte de um plano. É ali que atacam, não pelo peso dessas prestações sociais, (o mesmo se passa no processo paralelo do embaratecimento do valor do trabalho), mas sim porque isso é um elemento do seu plano. Podiam ter todo o ouro do mundo para pagar as dívidas, que não o usariam. Eles têm um alvo. 

Por isso, tudo o que é pura ideologia da actual política governativa está aqui: a legitimação de uma sociedade em que não existem direitos sociais (a não ser os da propriedade), a classificação de “oportunismo” à defesa das condições de vida actuais, o alvo nos portugueses dos trinta aos cem anos, centrado na classe média e nos mais velhos, acusados de terem um “culto da gratificação imediata”, e de "apropriação excessiva dos direitos das gerações futuras”. Por isso não me venham dizer que muitas das políticas actuais são apenas transitórias e conjunturais, desprovidas de um plano moral e puritano. Não é verdade, vem na moção de Passos Coelho.

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© José Pacheco Pereira
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