ABRUPTO

28.12.13


O PS NÃO É CONFIÁVEL COMO PARTIDO DA OPOSIÇÃO


O Governo, o PSD e o CDS, e todos os apoiantes do “ajustamento” na versão troika-Gaspar-Passos, obtiveram uma importante vitória política ao levarem o PS a assinar um acordo a pretexto do IRC. Foi um dia grande. “Rejubilai”, dizem os anjos do “ajustamento”. Dizem bem.


Nesse mesmo dia, os professores contratados foram abandonados pelo PS, que apenas pediu uma pífia “suspensão” da prova, e os trabalhadores dos Estaleiros de Viana, que marcharam pelas ruas de Lisboa com as suas famílias, a caminho da miséria, não merecem nem um levantar de sobrancelhas dos doutos conselheiros económicos do “líder” Seguro. O PS, que tinha já enormes responsabilidades na situação actual de ambos os sectores profissionais, agora mostrou de novo por que razão não é confiável como partido de oposição, mas, pelo contrário, é confiável, pela mão de Seguro, para lá de muitas encenações, para os que mandam em Portugal, sempre os mesmos.


É que o acordo sobre o IRC não é sobre o IRC. O IRC, repito, foi o pretexto. Aliás, a pergunta mais simples a fazer, a óbvia, aquela que a comunicação social, se não estivesse subjugada à agenda e aos termos dessa agenda do poder político dominante, faria é esta: por que razão é que um acordo deste tipo não veio da Concertação Social, mas de conversações entre os dois partidos? Por que razão é que o Governo nunca esteve disposto a fazer este tipo de cedências diante da CCP ou da UGT, já para não dizer da CIP e da CGTP, mas está disposto a fazê-lo com o PS? Ou, dito de outra maneira, que vantagem tem o Governo em fazer este acordo com um partido da oposição e não com os parceiros sociais? Ou ainda melhor: o que é que o PSD e o CDS obtiveram do PS que justificou este remendo, aliás, pequeno e de pouca consequência, na sua política? É que, convém lembrar, o Governo não precisava do voto do PS para passar esta legislação, e é por isso que o único ganho de causa é o do Governo.


O acordo foi um acordo político de fundo que amarra o PS a sistemáticas pressões governamentais e outras, para que passe a ser parte do “consenso” que legitime a actual política. O que está em causa é algo que seria, se as classificações ideológicas tivessem alguma correspondência com a realidade, inaceitável por um partido socialista, como o é para um social-democrata, moderado que seja. O sentido de fundo do “ajustamento” está muito para além do resolver os problemas mais imediatos do défice ou da dívida, mas traduz-se numa significativa alteração das relações sociais a favor dos senhores da economia financeira, em detrimento daquilo que a maioria da população, classe média e trabalhadores, remediados e pobres, tinham conseguido nos últimos 40 anos.


O que marcará com um rastro profundo Portugal para muitos anos é acima de tudo essa transferência de poder, recursos e riqueza na sociedade. Ela faz-se pela mudança de fundo no terreno laboral, com a aquiescência do PS – recorde-se que aceitou sem críticas o acordo assinado pela UGT –, com a fragilização das relações entre trabalhadores, o elo mais fraco, e o patronato, o esmagamento da classe média pelo assalto à função pública, aos salários, reformas e pensões. A destruição unilateral dos “direitos adquiridos” destinou-se não apenas a garantir essa enorme transferência de recursos, mas acima de tudo a enfraquecer o poder social dos trabalhadores, dos funcionários públicos, dos detentores de direitos sociais.


 No passado podia haver pobres, estes tinham, porém, a possibilidade de ter uma dinâmica social e política para saírem da pobreza, uma capacidade de inverterem as relações sociais que lhes eram desfavoráveis. Eram pobres, mas não estavam condenados à pobreza. Era isso a que se chamava “a melhoria social”, num contexto de mobilidade e num contrato social que permitia haver adquiridos. Agora tudo isso aparece como um esbanjamento inaceitável, e o que hoje se pretende é que os pobres, cada vez mais engrossados pela antiga classe média, sejam condenados à sua condição de pobreza em nome de uma crítica moral ao facto de “viverem acima das suas posses”, perdendo ou tornando inútil os instrumentos que tinham para a sua ascensão social, a começar pela educação, pela casa própria, e a acabar nas manifestações e protestos cívicos, as greves e outras formas de resistência social. É um conflito de poder social que atravessa toda a sociedade e que se trava também nas ideias e nas palavras, em que a comunicação social é um palco determinante, com a manipulação das notícias, a substituição da informação pelo marketing e pela propaganda. E o PS escolheu estar ao lado dos “ajustadores”.


Pode-se argumentar que a “cedência” do PS permitiu algum alívio às pequenas e médias empresas, e que por isso há um ganho de causa. Talvez, e isso seria bom, se fosse apenas isso. Mas o que o PS cedeu é muito mais do que isso: é um contributo decisivo para manter a actual política em tudo o que é fundamental, a começar pela prioridade do alívio às empresas e aos negócios em detrimento das pessoas e do consumo. O PS enfileirou no núcleo duro do discurso governamental, mais sensível às empresas do que às pessoas, aceitando que, a haver abaixamento dos impostos, ele deve começar pelas empresas e não pelos indivíduos e as famílias, pelo IRC e não pelo IRS e pelo IVA.
Eu conheço a lengalenga de que os benefícios às empresas, à “economia”, são a melhor maneira de beneficiar as pessoas, e que é a “vitalidade” da economia que pode permitir todos saírem da crise. Em abstracto, poderia ser assim, no nosso concreto, não é. Chamo-lhe "lengalenga" porque no actual contexto a inversão muito significativa dos poderes sociais torna muito desigual a distribuição de benesses oriundas deste tipo de medidas, reforça os mais fortes como um rio caudaloso e chega tardiamente e sem mudar nada, como um fio de água, aos que mais precisam. E a outra verdade que tem que ser dita é que este tipo de acordo no IRC vai tornar mais difícil que haja uma diminuição significativa do IRS ou do IVA, ou seja, quem vai pagar os benefícios a algumas empresas são outras empresas mais em risco e as pessoas e as famílias.


Numa altura em que a campanha eleitoral para as europeias e a, mais distante, das legislativas são já um elemento central das preocupações partidárias do PSD e do CDS, o PS deu-lhes um importante trunfo político, e um sinal de que não confia nas suas próprias forças para ganhar as eleições e muito menos governar sozinho. Um acordo PS-PSD feito pela fraqueza e assente na continuidade da política actual prenuncia apenas que, seja o PS, seja o PSD, a governarem em 2015, cada um procurará no outro um seu aliado natural, não para uma política de reformas, mas para garantir a política que interessa ao sector financeiro, que capturou de há muito a decisão política em Portugal.  


O PS de Seguro mostrou que não é confiável como partido da oposição e que ou não percebe o sentido de fundo da actual política de “ajustamento”, de que este abaixamento do IRC é um mero epifenómeno, ou, pelo contrário, percebe bem de mais e quer ser parte dela. Inclino-me, há muito, para a segunda versão. Seguro e os seus criaditos diligentes estão ali para servirem as refeições aos que mandam, convencidos que as librés que vestem são fardas de gala num palanque imaginário. Vão ter muitas palmas e responder com muitos salamaleques.


Estamos assim.

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EARLY MORNING BLOGS


"Há épocas de tal corrupção, que, durante elas, talvez só o excesso do fanatismo possa, no meio da imoralidade triunfante, servir de escudo à nobreza e à dignidade das almas rijamente temperadas." 

(Alexandre Herculano)

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25.12.13


DESEJAMOS A TODOS BOM NATAL E BOM ANO, 
MAS COMO É QUE SE VIVE NUM PAÍS SEM FUTURO? 

 (Bansky)

Mais uma vez foi anunciado um prazo para a “austeridade”. Quinze anos, pelo menos. Se tomarmos à letra o “programa” vindo das várias troikas, FMI-UE-BCE, ou Passos-Maria Luís-Moedas, ou Neves-Lourenço-Bento, ou qualquer das suas variantes, serão precisas décadas. Se tomarmos à letra as promessas de manter a “austeridade” pelos anos necessários para “resolver” o problema do défice e da dívida, como política “inevitável”, é de décadas que falamos.

Como é que se vivem décadas de “austeridade”? Não se vivem. Com troika ou sem ela, com plano cautelar ou sem ele, o que nos dizem os governantes é que a “austeridade” é para ficar como o novo modo de vida “ajustado” dos portugueses. Esta perspetiva de “vida” é impossível em democracia, só em ditadura. Só com ditadura ou com guerra civil é que é possível esse “ajustamento”. Se continuarmos a viver em democracia, é impossível. Mais, é economicamente autodestrutivo, ou seja, os efeitos que gera este longo “ajustamento”, se se viesse a verificar, tornam-no insustentável, logo ineficaz, logo errado. 

Começa por que, para muitos, não é sequer uma perspetiva de “vida” viável. Para uma parte importante dos portugueses com mais de 60 anos, tira-lhes qualquer hipótese de, na sua vida terrestre, conhecerem qualquer melhoria, bem pelo contrário. Depois para muitos adultos com quarenta anos, por exemplo, para os chamados “desempregados de longa duração”, é igualmente um beco sem saída, cujo agravamento se acentuará com a passagem do tempo. Impossível de “viver” a não ser com legiões de pobres na rua, como na Grande Depressão americana. E não há nenhum “New Deal” á espera. 

Exagero? Só é exagero porque não irá acontecer, porque, a prazo mais curto do que pensam os seus proponentes, que também não tem muita confiança na possibilidade das suas políticas serem sustentáveis, - pelo efeito do “politiquice” eleitoral, dizem com desprezo, - haverá mudanças de política, quer sejam feitas a bem ou a mal. Suspeito que a mal, mas isso é outra questão. 

Um poderoso acelerador do fim desta política é o crescimento da desigualdade. Como é que se vivem décadas de “austeridade” desigualmente distribuída? Não se vivem sem revolta. Por aqui me fico. Bom Natal. No fim de contas o Pai Natal também veste de vermelho e é velho, duas sinistras condições para a revolta nestes dias.

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PASSOS COELHO NO FIM DO ÚLTIMO CONSELHO EUROPEU 

Do ponto de vista da observação da “literacia” governativa, as declarações de Passos Coelho no final do último Conselho Europeu são muito interessantes de analisar. Refiro-me ao conjunto das declarações e não apenas à leitura de um texto preparado sobre a decisão do Tribunal Constitucional. Dou um prémio a quem for capaz de entender as primeiras declarações sobre o próprio Conselho Europeu e as suas decisões sobre a União Bancária, O site do governo ajuda porque está inacessível com um “erro 404” na página que devia ter estas declarações. Compreendo que nem o computador as queira colocar em linha, porque foram tão entarameladas, tão confusas, tão desprovidas de lógica e de rigor vocabular, que era penoso ouvi-las. O Sol tentou, com um gigantesco esforço, dar-lhe algum nexo e ficou assim: 

Pedro Passos Coelho, congratulou-se hoje com os avanços alcançados para a união bancária, mas defendeu que a União Europeia deve procurar "um compromisso mais alargado" e reforçar o novo fundo de resolução de bancos (…) Passos Coelho considerou importante a aprovação do Sistema de Garantia de Depósitos e do Mecanismo de Resolução Bancária, mas sublinhou que nesta segunda componente da união bancária (…) queria "um compromisso mais alargado, que permitisse não deixar dúvidas aos mercados". "É verdade que os esforços que foram realizados de aproximação entre os Estados-membros foram importantes e foi possível chegar a uma solução, mas não era a solução que nós desejávamos (?) a verdade é que julgamos que esse acordo [para a união bancária] precisa de ser melhorado na discussão que agora se vai travar com o Parlamento Europeu. Esperamos que alguns dos defeitos que ainda encontramos na solução que foi desenhada possam ser superados" (…)O primeiro-ministro afirmou contudo que, com estas medidas, a União Europeia está mais "robusta" e melhor preparada para responder a eventuais crises. 

 O vocabulário é conhecido: “alavancar”, “impulso”, “relevância”, “componente”, “compromisso”, “suficiente”, “desenho/desenhada”, “superados”, “resolução”, algumas palavras ditas em português mas pensadas em inglês, e repete-se até à exaustão. Nenhuma frase avança sem tropeçar nos seus próprios pés, tanta é a densidade vocabular para dizer algo de muito simples: a reunião não correu bem para Portugal e os seus interesses e a culpa é dos alemães. O primeiro-ministro quer e não quer dizê-lo, mas não sabe como.

Depois, no comunicado, escrito por um dos seus assessores ou pelo ministro da “comunicação”, sobre a decisão do Tribunal Constitucional, a coisa acalma. O comunicado percebe-se muito bem, bem demais. Mas o comunicado tem um autor que resolveu, como é típico nos intelectuais, substituir “Portugal” por “república”. Devia estar a ler algum texto influenciado ou por um anglicismo do tempo dos founding fathers ou de um teórico francês, que muito habitualmente fazem esta substituição do nome do país, pela “república”.É típico da ciência política académica, mas incomum na linguagem política corrente. OK, tinha essa marca de origem, mas o texto percebia-se.

Logo a seguir, respondendo a perguntas, Passos Coelho certamente influenciado pelo seu assessor, passou a usar a expressão “republica” a torto e a direito e deixou de se perceber. Há aqui um problema, daqueles que o exame do Dr. Crato diz querer resolver.

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24.12.13


ESPÍRITO DO TEMPO: HOJE 
 
Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM) 

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22.12.13


PONTO / CONTRAPONTO: NOVO HORÁRIO DA NOVA SÉRIE
  aos domingos às 20 horas na SICN.
  Se o caos do futebol não lhe alterar mais uma vez o horário.

HOJE: banalidade do mal e programa infantil.

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VOU REPETIR O QUE ESCREVI HÁ MAIS DE UM ANO SOBRE A TECNOFORMA

Não costumo citar o que já escrevi, mas as notícias recentes dadas pelo Público sobre o programa Foral, criado com fundos europeus para promover a formação profissional dos funcionários das autarquias, envolvendo Relvas como decisor e Branquinho como beneficiário, mostra mais uma vez sempre os mesmos nomes, as mesmas empresas, sempre as mesmas redes. É um modus operandi que corrompe o funcionamento da nossa democracia, desvia recursos do estado para enriquecimento privado e tem como instrumento fundamental o controlo dos mecanismos partidários. Também, como de costume, ninguém liga nenhuma, e as notícias foram cuidadosamente silenciadas pelos outros órgãos de comunicação, a começar pela televisão. Aqui vai a citação: 

“(…) o núcleo duro partidário do PSD, tem carreiras de dois tipos: ou na advocacia, ou num "privado" muito especial, aquele que vive da dependência do Estado e das decisões políticas seja a nível central, seja a nível autárquico. Os casos de Passos e Relvas são típicos, porque uma parte fundamental da sua carreira é feita dentro dos partidos, nas "jotas", passam pelos cargos mais ligados ao controlo político "distributivo" no Governo (Relvas) e são empregados por terceiros em empresas em que as redes de ligação com o poder político são fundamentais para aceder aos "negócios". (…) Essas áreas incluíam a formação, no tempo áureo dos fundos, e depois nos sectores como o ambiente, energias renováveis, resíduos e construção, tudo áreas que conheceram grande expansão com dinheiros públicos nos últimos anos. [Hoje as empresas de ”comunicação” e marketing tem papel idêntico.] O caso da Tecnoforma, envolvendo Passos e Relvas, é típico de uma espécie de empresas "jota", em que pessoas com carreiras políticas interdependentes entre si se organizam para aproveitar as oportunidades que o acesso ao poder político cria. (…) Não é por acaso que o "privado" que encontramos nos curricula governamentais, como estes de que falamos, é sempre do mesmo tipo. Não encontramos nunca nenhum genuíno empresário que já estivesse "feito" antes de ir para o Governo. (…) nunca temos no topo do poder partidário e governamental outro tipo de privado que não seja o fortemente dependente do poder e das redes de conhecimentos pessoais, assentes na interdependência e na confiança. “ 

É mais uma vez o mesmo.

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O HOMEM DO RELÓGIO QUE GOZA CONNOSCO 

Animated watch with black watch band

 Portas, demasiado habituado a uma sucessão de truques mediáticos que durante muito tempo fez com impunidade e que hoje ninguém suporta, resolveu colocar no CDS um relógio que conta de forma decrescente o tempo que falta até a troika se ir formalmente embora. De imediato, eu e muito mais gente, imaginou dezenas de outros relógios que podiam ser colocados em cada esquina de Portugal, medindo o tempo que falta para uma imensidão de outras coisas, todas muito mais significativas do que a data artificial em que a troika deixa de vir com espavento ao Terreiro do Paço, para reunir discretamente num gabinete em Bruxelas ou em Frankfurt ou Washington.

 Alguns desses relógios andariam tão lentamente e o tempo que medem é tão longo que parecem parados. Por exemplo, o que medisse o tempo até que um “desempregado de longa duração” tornasse a ter emprego. Ou o que mediria quando o número de pobres em Portugal diminuiria, não por uma habilidade estatística, mas na realidade. Ou o que mediria o tempo que os juros demoram a recuperar depois da “crise Portas”, e quanto tempo Portugal precisa para recuperar desses estragos “irrevogáveis”. Ou, já agora, o tempo em que falta até a palavra “irrevogável” significar de novo irrevogável.

 Mas há pelo menos um relógio cujo tempo decrescente não se mede num googleplex, ou seja num número com muitos zeros à frente, que é o que mede o tempo que falta para que Paulo Portas regresse ao exílio no seu confortável e pequeno CDS. Se tudo correr mal, será em 2015 e não antes como deveria ser se houvesse justiça divina. E daí não sei, o António José Seguro ainda o recicla…

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NO 40º ANIVERSÁRIO DO CONGRESSO DA OPOSIÇÃO DEMOCRÁTICA EM AVEIRO 



Participei, em conjunto com algumas centenas de pessoas, nas comemorações do 40.º aniversário do Congresso da Oposição Democrática ocorrido em Aveiro em 1973.

Fazia parte de um número mais pequeno de presentes, que tinha estado no próprio congresso em 1973, tendo assistido ao seu decorrer e terminado, como muitos outros participantes, na manifestação proibida a correr pelas ruas de Aveiro junto com os cães do Capitão Maltês e da polícia de choque. Recordo-me da garagem onde muitos se refugiaram e de ter acabado num telhado dumas casas térreas junto ao canal na rua paralela nas traseiras da Avenida Lourenço Peixinho. Era o habitual.
O problema das comemorações dum evento com estas características é a oscilação entre o “sentido” do congresso para a actualidade e o balanço que se pode fazer do seu papel na história da oposição ao regime ditatorial. Esta tensão esteve presente nas comemorações que teve partes de comício e outras de debate histórico, sendo que era impossível impedir a impregnação de umas por outras. Por outro lado, as comemorações recebiam uma herança de interpretação do congresso de 1973 que está longe de ser inocente, quanto mais verdadeira.

O Congresso da Oposição Democrática, que na verdade vinha em sequência de dois anteriores congressos republicanos, não teve o nome de "congresso republicano" por impedimento governamental, que, em vésperas das últimas “eleições” legislativas da ditadura, queria mostrar ao mundo como era possível no Portugal de Marcelo Caetano, a “oposição” reunir-se legalmente.* Os jornalistas estrangeiros foram convenientemente apascentados pelo SNI, mas, quando chegaram a Aveiro, alguns deles foram espancados pela polícia na manifestação que encerrou o congresso. A operação de propaganda falhou redondamente.

Este aspecto da história é unívoco e não oferece dúvidas de interpretação. Já o significado do congresso e os eventos ocorridos durante a sua realização põem em causa a história mítico-heróica da oposição, em grande parte escrita pelo PCP e os seus companheiros de estrada. Aí as coisas são mais complexas e uma história do congresso já revela alguns aspectos que ainda hoje criam alguma incomodidade.

Na verdade, o congresso de 1973 foi um evento importante da história da oposição, mas não foi um acontecimento central dessa história, apresentado quase como uma antecâmara visionária do 25 de Abril. O congresso inseriu-se mais no quadro institucional clássico da “unidade” oposicionista na interpretação que lhe dava o PCP do que introduziu factores de novidade na história da oposição. Desse ponto de vista, o congresso passou ao lado de muito do que estava a acontecer de novo e representou mais uma tentativa de hegemonia da oposição por parte dos comunistas do que uma representação da totalidade dos sectores mais combativos da oposição, em particular uma grande parte do movimento estudantil dominado à época pelos esquerdistas e que foram marginalizados do congresso, ou porque o desejaram, ou porque a isso foram obrigados pelo sectarismo e controlismo do PCP.

O congresso não teve uma preparação democrática, nem decorreu democraticamente, assente que foi na concepção “unitária” da acção política vinda dos comunistas e que moldava então grande parte da oposição, incluindo sectores do PS. Em 1973, o PS e o PCP estavam num momento de grande aproximação política, assinaram um acordo político, subsidiário das teses “frentistas” do PCP, e tinham no essencial encerrado as divergências sobre a natureza do “marcelismo” que tinham levado às listas separadas nas eleições de 1969. Isto não significava que para muitos socialistas não permanecesse uma desconfiança histórica do PCP, mas havia uma efectiva deslocação do PS à esquerda, fruto da radicalização do início da década de 70 e da sensação de que a liberalização marcelista estava esgotada.

Por isso, sob a férula do PCP, os sectores mais tradicionais da oposição, os socialistas e os comunistas, estavam unidos, isolando a direita socialista e social-democrática e parte dos velhos republicanos que eram anticomunistas e defensores das colónias portuguesas. Esta “unidade”, que correspondia às posições teóricas do PCP sobre a estratégia da oposição, facilitou uma enorme hegemonia dos comunistas sobre todo o congresso, das teses, muitas vezes com origem nos núcleos regionais e profissionais onde tinham mais influência, à própria condução dos trabalhos, constituição das mesas e controlo sobre a ortodoxia das conclusões.

No entanto, o sector que realmente ficava de fora eram os esquerdistas, que, desde os chamados “sectores não reformistas da CDE”, católicos radicalizados, o proto-MES de Jorge Sampaio, Wengorovius, e outros, e os grupos ligados às comissões de base socialistas e às brigadas revolucionárias, aos diferentes grupos maoístas, não só estavam fora do congresso, como o atacavam com veemência. Ora, bastava esta marginalização do esquerdismo para em 1973 isso significar que o congresso estava longe de representar toda a oposição e mesmo os sectores mais dinâmicos dessa oposição, em particular no movimento estudantil e, em embrião, no movimento sindical renovado que iria dar origem à Intersindical, onde os comunistas partilhavam o poder com sectores operários e dos serviços, que mais tarde vão aparecer ligados ao MES.

Na época, estas diferenças de opinião não eram meigas, nem amigáveis, mas bastante duras. Os “sectores não reformistas da CDE” escreviam o nome do congresso com “democrático” entre aspas e os maoístas contestavam o congresso às claras e organizaram-se durante o seu decurso para, em certas secções, fazer aprovar moções que os comunistas recusavam. Havia projectos de teses que tinham ficado pelo caminho, como uma oriunda do PCP (ML) assinada pelos nomes fictícios de “M. Ribeiro” e “J. Gregório”, na verdade Militão Ribeiro e José Gregório, nomes de dois dirigentes comunistas já falecidos, considerados militantes destacados de um PCP que não era “revisionista”. Era uma clara provocação e foi censurada num processo de selecção que ninguém controlava.
Este conflito centrou-se durante o congresso na secção que incluía a “educação”, onde seria suposto discutir-se o movimento estudantil e que acabou à pancada. Compreende-se porquê: a maioria da sala era de estudantes esquerdistas, que se tinham reunido numa dupla clandestinidade em acampamentos e nos pinhais à volta de Aveiro, para levar o congresso a tomar posições anticoloniais, sobre a queda do regime e sobre a participação nas eleições, claramente contra a orientação do PCP. Esses estudantes chegaram a uma sala no andar superior do cinema onde este decorria e encontraram uma mesa constituída por militantes do PCP e da UEC que ninguém tinha escolhido e que fez tudo para evitar votar um documento hostil, acabando a reunião manu militari. Já contei esse incidente, que me opôs a Lino de Carvalho, e Rui Bebiano, actual director do Centro de Documentação do 25 de Abril, contou que nesse dia “fugira” duas vezes, uma do “serviço de ordem do congresso”, outra dos polícias de choque.

O outro pólo de conflito no congresso traduziu a mesma vontade de controlo político do PCP e ocorreu com a tese de Medeiros Ferreira sobre o papel das forças armadas, apontando quer os riscos de um golpe de direita, quer as possibilidades de um derrube do regime pelos militares, assente na trilogia do “descolonizar, democratizar e desenvolver”. Num certo sentido, essa foi a tese mais premonitória do congresso, violentamente atacada pelos sectores do PCP. Assisti a essa sessão e recordo-me de ver uma jovem mulher, claramente comunista, a vociferar contra os militares que ela, que vivia na Amadora, dizia conhecer muito bem na sua violência pró-regime.

À data em que enviou a tese para o congresso, Medeiros Ferreira vivia exilado na Suíça e tinha integrado o Grupo Revolução Socialista e a revista Polémica, em que ele era o único que não era ex-comunista, como António Barreto ou Eurico Figueiredo. A sua reflexão, como a de Manuel Lucena, também colaborador da Polémica, estava mais próxima de um socialismo radical do que do esquerdismo predominantemente maoísta, e acompanhava uma mudança de temas e análises que veio a permitir uma renovação do pensamento da oposição. O PCP contrariava como podia estas “inovações” esquerdistas, usando alguns dos seus intelectuais nesse combate, como Vital Moreira escrevendo sobre Marcuse, ou Sottomayor Cardia discutindo o “pensamento de Ulianov”, ou seja, Lenine para efeitos de censura.

Foi neste contexto que se realizou o Congresso da Oposição Democrática e, se abstrairmos destas mitologias heróicas, podemos dar-lhe a sua verdadeira dimensão como acto de resistência e coragem, face a um regime que ninguém pensava que iria acabar um ano depois. 


* Mário Matos e Lemos publicou em carta ao Público uma "correcção" a um suposto "erro" meu  sobre a questão da mudança de nome de Congresso Republicano para Congresso da Oposição Democrática. A carta é a seguinte:
No seu artigo de sábado, o dr. José Pacheco Pereira cometeu um estranho erro: afirma que o III Congresso da Oposição Democrática se chamou assim, e não Republicano, como os dois anteriores, por imposição do Governo para fins propagandísticos. Ora, o dr. Pacheco Pereira sabe perfeitamente – e se se tivesse esquecido, na sessão comemorativa houve quem o referisse – que o nome mais genérico de oposição democrática foi uma imposição dos opositores monárquicos que queriam participar e que não o fariam num congresso que se denominasse simplesmente republicano.
Se o Público me tivesse enviado com antecedência a carta, como é curial nestes casos, eu teria de imediato referido o que acontecera e as minhas fontes. A versão sobre o nome do Congresso que conhecia era idêntica à de Mário Matos e Lemos: que tal se devia à necesidade de permitir a presença dos monárquicos na reunião. Sucede que nas intervenções de Flávio Sardo e António Neto Brandão, ambos com um papel decisivo na organização do Congresso e nas negociações em 1973 com o Governador Civil de Aveiro Vale Guimarães, foi exposto de forma inequívoca  o modo como tal exigência de mudança de nome fora feita, dentro de uma estratégia governamental de usar o Congresso para mostrar às opiniões públicas estrangeiras, através dos jornalistas com quem o SNI patrocinou uma reunião, que em Portugal havia uma oposição que podia actuar em legalidade nos anos eleitorais. Como se tratava de testemunhos na primeira pessoa, pareceu-me de aceitar esta versão, tanto mais que a presença de monárquicos no Congresso foi bastante residual.


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© José Pacheco Pereira
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