A confusão de géneros também se instala quando comentários e opiniões se apresentam com uma autoridade própria porque emitidas por "politólogos", "sociólogos", "historiadores", "economistas" ou mesmo “jornalistas”. Esta é uma manifestação menor da prática que leva a escolher jornalistas para Provedores dos jornais, como antigamente se escolhiam generais para Ministros da Defesa. Esta confusão denota uma visão tecnocrática da sociedade, que dá à “ciência” um estatuto de intangibilidade política (outra intangibilidade corrente nos nossos media é a da “cultura”).
Um médico que se pronuncia sobre o cancro ou a tuberculose deve ser ouvido como um especialista, mas quando se pronuncia sobre a organização do sistema nacional de saúde, não perde a qualidade de especialista, pode ser um comentador informado e o seu saber ser fundamental, mas as opções fundamentais sobre um sistema desse tipo são de carácter político e ideológico e não técnico. Pertencem ao debate público no espaço público e nesse local não há "ciência" no sentido preciso da palavra, há opções que se tomam em função de visões do mundo e da sociedade, que traduzem interesses, experiências, e escolhas políticas. Escolhas de “partes”, seja em partidos ou fora deles. Partes que ganham mais ou menos legitimidade democrática para governar pelo voto e pela conformidade com a lei. E embora dependam também da racionalidade e da imaginação, com votos ou sem eles, não se explicam só com a racionalidade. Explicam-se também pelos interesses, condição social, educação, gostos, meio, profissão, etc.. A visão monista da sociedade, traduzida numa espécie de discurso de explicação única, seja o da ciência e o da técnica, ou o da Nação ou do Estado, não é compatível com a democracia e com a liberdade. E implica sempre um reducionismo, uma pobreza do espírito.
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De facto, um médico pode ser muito bom na sua especialidade e péssimo como Ministro da Saúde ou mesmo como administrador de uma unidade hospitalar - o Princípio de Peter explica isso muito bem, e continua perfeitamente actual. Mas também não se pode cair na ideia inversa, a de que um gestor pode gerir qualquer coisa, mesmo sem ter um mínimo de conhecimentos do assunto. Depende dos casos.
Conheci, em tempos, uma empresa de engenharia que foi próspera e respeitada, durante dezenas de anos, enquanto foi dirigida por engenheiros séniores. Mas a descredibilização rapidamente lhe bateu à porta - passe o eufemismo... - quando mudou de mãos e os novos accionistas acharam que gestores que tivessem sido bem sucedidos noutras empresas do grupo (mas de ramos completamente diferentes) seriam capazes de, naquela outra, fazer o mesmo. Não foi bem assim...
(C. Medina Ribeiro)
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Nesta sua reflexão sobre o jornalismo e a propósito da confusão de géneros, o exemplo do médico, que presumo extensível a outras áreas do conhecimento, é em si mesmo uma notável confusão de géneros. Na sua opinião, um especialista é alguém incapaz de tomar decisões estratégicas e fundamentais, cabendo essa tarefa aos políticos e ideólogos, eventualmente assessorados por “especialistas” (ou seja, por alguém que de facto saiba algo sobre o assunto). Embora conceptualmente a sua opinião seja válida, apesar de discutível, a observação da prática política e do processo decisório em geral demonstram-nos todos os dias a ineficácia desta concepção. De facto, o senso comum diz-nos que quando uma determinada decisão é tomada por “razões políticas”, isto quer normalmente dizer que o decisor político não faz ideia de como deveria ter decidido, à luz da razão e do conhecimento disponível. Até porque, embora as opções ideológicas relativas aos modelos de sociedade sejam determinantes, estas são largamente consensuais na nossa sociedade, à excepção de franjas radicais sem preocupações governativas. Deste modo, muito do que resta por decidir são realmente questões muito objectivas, sobre as quais os políticos pouco sabem. Quem já assistiu a debates no parlamento e fora dele, conhece bem a vacuidade dos discursos e a sua total irrelevância. A questão pertinente aqui é saber porque é que um conjunto de pessoas com determinada formação académica de base (ou sem ela, como sucede abundantemente no nosso país), genericamente designados “políticos”, tem na sua opinião a competência exclusiva para decidir estrategicamente. Se é apenas porque foram eleitos, então isso é muito pouco. Porque para se ser eleito em Portugal, é geralmente necessário ter começado cedo por frequentar as concelhias e depois as distritais dos partidos, aprender o caminho das insinuações e dos favores, ter muita paciência e ao fim de uns anos de “trabalho” conseguir entrar numa lista em lugar elegível. Um qualquer cidadão que em determinado momento da sua vida queira colaborar activamente no processo de decisão nesta sociedade, pura e simplesmente não o consegue fazer, o caminho está blindado pelos “políticos” de carreira. São estes “políticos” que o Pacheco Pereira defende deverem ser detentores únicos da capacidade de decidir a vida presente e futura de um país. Eu discordo.
(João Silva)
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Ó Amigo João Silva, imagine a seguinte experiência:
Junte à volta de uma mesa quatro médicos com o seguinte perfil: todos tècnicamente competentes, todos com larga experiência de trabalho em hospitais públicos, todos bem-intencionados e todos semelhantemente cultos e inteligentes, sem que nenhum deles tenha qualquer engagement político formal. Porém, um vota no PC ou no BE, outro no PS, outro no PSD e o outro no PP. Pergunte quais são os principais problemas do SNS e, a seguir, quais seriam as soluções para remediar os problemas apontados.
Se achar que, pelas respostas, se perceberia em que família política cada um deles navega, então não vejo como pode deixar de dar razão ao Pacheco Pereira. Se achar que, por razões técnicas, todos chegariam a conclusões iguais ou parecidas, então Você é perfeitamente coerente mas vive num mundo paralelo.