ABRUPTO

13.8.08


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES:
COISAS DA SÁBADO: “COMO DIZIA RAMBEAU...”

Em sequência da série anterior.

MOBY DICK = MOBY PILA

Tal como o leitor mc também nasci na década de 70 e ainda tive a sorte de ver legendagem de alguma qualidade. Lembro-me particularmente de uma coisa muito comum que era a existência de consultores para determinados programas como algumas séries de ficção que abordavam temas mais específicos. Se a memória não me atraiçoa, a série "Ventos de Guerra" com o grande Robert Mitchum., tinha um consultor militar que assim facilitava a existência de maior rigor na tradução e legendagem. Lembro-me de ver o mesmo naquelas séries da BBC sobre a guerra fria que me punham a cabeça em água com aqueles argumentos muito intrincados, onde era comum haver consultores históricos ou militares. Hoje em dia já nada disso se verifica.

(João Paulo Brito)

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Viver melhor com a leviandade e o atrevimento

Ofereceram-me um livro intitulado 'Viver melhor com a quimioterapia' ('Casa das Letras', Cruz Quebrada), traduzido do original francês 'Mieux vivre une chimiotarapie', de uma tal Astrid Le Mintier. Menciona-se que os tradutores são fulano e beltrano, que a revisão foi feita por sicrana e que houve a intervenção de uma 'técnica', uma enfermeira de nome português. No final da pág. 93 (até aí ainda resisti, mas logo coloquei a 'obra' de lado...) leio que as náuseas e os vómitos fazem parte dos efeitos secundários da quimioterapia, blá-blá, consequência dos medicamentos, (...) o estômago e os intestinos, 'bem como a moela e os elementos figurados do sangue'.
E eu a pensar que não tinha moela -- ou que 'moeule épinière' (presumo, não vi o original...) se traduz em português por qualquer coisa diferente de 'moela'... Apetece pedir-lhes que vão chamar 'galinha' à avozinha...

(J H Coimbra)

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No ano passado, eu e uns amigos, preocupados com a crescente epidemia de erros ortográficos e traduções malfeitas em meios de comunicação, decidimos inaugurar
um blogue que registava as situações que íamos apanhando. Falta-lhe actualização, mas alguns artigos dão conta de situações como as que foram relatadas pelos leitores do Abrupto:

No nosso caso é meramente um incómodo, já que pertencemos a uma geração, nascida ainda nos anos 70, que teve uma formação de base mais exigente, logo a partir da escola primária. Mas assusta-nos o facto de sabermos que há pessoas, ainda em processo de alfabetização, que apreendem os erros ortográficos como norma e que nem sequer dão por eles. Sobretudo nas gerações surgidas durante os anos 80 em diante. Conheço mesmo uma pessoa, licenciada, que sempre deu erros ortográficos medonhos e é hoje professora de português no ensino secundário. Foi admitida no sistema de ensino. Completou um licenciatura de línguas sem dominar a língua portuguesa e hoje ensina-a aos portugueses nascidos há menos de 20 anos. É incrível, mas é verdade. Como é que isto acontece?

A tradução para português de conteúdos estrangeiros nos meios de comunicação de massas não é uma questão menor: tem um impacto profundo num país com níveis galopantes de iliteracia e fraca formação cívica, que tem a televisão como único veículo de alfabetização. Gostaria de me juntar ao grupo de pessoas que se preocupa com estas coisas e fazer um apelo - alguém tem de fazer alguma coisa; fiscalizar, multar, legislar, enfim, fazer com que estas coisas não passem impunes. As empresas que fazem legendagem contratam trabalhadores a prazo sem qualificações, a recibos verdes, ou através de agências de trabalho temporário, porque lhes sai mais barato. A produção inocente de erros é inevitável em pessoas com pouca formação e experiência, sobretudo quando o trabalho é feito a troco de salários ridículos e sem fiscalização visível. Pois bem, se calhar há que garantir que isso sai caro às empresas que assim procedem.

(mc)

*

Sinceramente, a questão da tradução acaba por não ser exactamente um problema, mas um sintoma. Talvez me esteja a tornar muito cínico, mas a verdade é que hoje em dia não consigo olhar para um telejornal sem me soar a falso, como se eles já não se importassem com o facto de tudo aquilo parecer feito "em cima do joelho". Parecem-me aquelas palestras ou comunicações a que por vezes se assiste, e em que temos consciência de que a platéia não percebe nada do que o orador está a dizer, ele próprio não percebe nada do que está a dizer, mas ninguém tem a coragem de lhe perguntar: "não percebi nada, importa-se de explicar melhor?" O elemento do contexto desapareceu quase completamente de todas as notícias; note-se que raramente vemos mapas nos telejornais de hoje, notícias internacionais aparecem sem a preocupação de explicar melhor exactamente de que zona estamos a falar. Hoje é a Geórgia e a Ossétia, dois países que não são exactamente Espanha e França em termos de geografia, provavelmente admitir que não se sabe a sua localização não é exactamente uma vergonha em Portugal, mas até agora não vi um único mapa nem ninguém a explicar onde estão as tropas russas. Aqui há umas semanas foi o "terramoto na China" o que é uma expressão ridícula considerando a dimensão do país.

Ainda por cima, há de facto hoje oportunidades muito boas para optimizar os vários meios. Mas na verdade, parece que as televisões ainda acham que a Net é "uma chatice", algo que se tem de fazer só para dizer que se fez. Enquanto que há jornais que criam "dossiers" na Net, parece-me que a televisão tenta apenas imitar os jornais, fazer uma versão escrita daquilo que dizem. Seria possível, creio eu, encontrar uma melhor dinâmica, inserindo parte do contexto das notícias no site, e procurando activamente dirigir para lá os espectadores. É verdade que, tradicionalmente, a televisão é "soft" e os jornais são informação mais completa, mais dura. Mas essa tradição parece tornar-se uma desculpa para se desistir de fazer algo mais do que seja apenas editar e traduzir imagens "pre-packaged" que já vêm de fora. Há uma desresponsabilização dos operadores, e se sou obrigado a aceitá-la nos privados, posso dizer que fico desiludido por ver que para o canal de "serviço público" há mais serviço nas coisas "grandes" - como seja o futebol - do que nas pequenas, como estas de que falo aqui. Dizer "temos as melhores traduções" não dá mais espectadores à RTP, mas são as pequenas coisas consistentes que podem dar valor e criar uma diferença.

Talvez um dia; até lá, ninguém tem a coragem de gritar "o Rei vai nú!".

(Paulo L)

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