ABRUPTO

23.3.08


O DELITO DE OPINIÃO

Existe em Portugal um delito de opinião para o qual uma pequena turba, que só parece grande porque é alimentada pelo silêncio de muitos, pede punição, censura, opróbrio, confissão pública do crime, rasgar de vestes. Esse delito de opinião é ter estado a favor da invasão do Iraque e é particularmente agravado nos casos raríssimos em que se continua a estar a favor, esses então de reincidência patológica que justificam prisão e banimento. Esta persistência no erro só pode mostrar tenebrosos defeitos de carácter e uma crueldade sem limites, que são apontados a dedo como devendo justificar o ostracismo e a incapacidade cívica. Como só se aplica a meia dúzia de pessoas, visto que a maioria dos apoiantes originais abjurou como Durão Barroso, ainda é mais fácil apontar o dedo. Se houvesse pelourinho na cidade, a turba lá nos levaria a mim e ao José Manuel Fernandes, que suporta nove décimos de ataques à sua direcção do Público por causa deste delito de opinião, para a humilhação pública.

Para essa turba que grita "crime" os factos interessam pouco, o conhecimento do que aconteceu fica confortado com meia dúzia de meias verdades, muitas falsidades, mas acima de tudo uma ignorância militante que não só não sabe como não quer aprender. Os factos não lhes interessam de todo. Olharem o Iraque em 2003, 2006, 2008 é a mesma coisa, só muda o número do final do ano. Têm uma tese e, aconteça o que acontecer, o que vale é a tese e essa tese é normalmente uma visão do mundo assente num único pilar, o anti americanismo militante por razões puramente ideológicas. Essas razões existem, mas raras vezes são enunciadas para não prejudicar o bater no peito moral com a suspeita de que a mão que bate o faz por uma política radical que não ousa mostrar-se. Desse ponto de vista, as críticas a Bush têm um precedente curioso, parecem as críticas a Churchill e a Reagan.

(Pax Americana vista pelo Berliner Illustrierte , Berlim - RDA, 3 de Março de 1951)
Sobre Churchill como "criminoso de guerra", visto pelos nazis; sobre a "imagem dos americanos como inimigos" construída pela República Democrática Alemã.

(Churchill como belicista num cartaz em Leipzig, RDA, 1954)



Representações dos Presidentes americanos como belicistas: Kennedy como "cão de guerra" ; Reagan como personagem do Dr. Strangelove e como cowboy conduzindo a América para a as "dark ages".

Há, como em todas as regras, meia dúzia de excepções de pessoas que foram contra a guerra e que o foram por razões mais sérias e que foram capazes de apontar erros reais da actuação dos americanos, em particular os que vinham quer da ignorância da dimensão daquilo em que se estavam a meter, quer da sua impreparação para o fazer e das suas erradas prioridades. Essas objecções sérias merecem ser discutidas e, nalguns casos, deve-se-lhes o reconhecimento da razão que tiveram antes do tempo. Mas, insisto, os interlocutores sérios são a excepção. Nesta matéria, quem faz a lei ideológica e tribunícia é o Bloco de Esquerda, muitas vezes secundado pela voz de Mário Soares. Todos falam com a linguagem, os slogans, os tiques, os excessos verbais, a arrogância moral e a pesporrência do Bloco de Esquerda e não querem saber de mais nada do que da condenação moral dos "responsáveis" por "muitas centenas de milhares de mortos". Os números são plásticos, podem ser exagerados porque são sempre números do "crime". Não lhes interessa Saddam, não lhes interessa a submissão dos xiitas, não lhes interessa a natureza de um regime que atacou aldeias curdas com armas químicas, não lhes interessa um ditador que provocou guerras, essas sim, com mais de um milhão de mortos, e que invadiu os países vizinhos. Nada mais lhes interessa.

Dito isto, vamos pois continuar a cometer o delito de opinião. A última coisa que direi é que, cinco anos depois, na operação iraquiana tudo correu bem, porque, em muitos aspectos, correu até bastante mal. Só que não é pelas mesmas razões, nem pelas mesmas causas, nem pelos mesmos motivos, dos que bradam ao crime e à "mentira". Mais adiante voltaremos aqui, mas comecemos pelo princípio.


Atentados de atribuição segura à Al-Qaida: Bali, Madrid, Tanzania, Argel.

Primeiro, há os pressupostos da decisão de invadir, tomada muito antes da invasão e não necessariamente pelas mesmas razões apresentadas publicamente para a justificar. A decisão de invadir tem pouco a ver com a existência de armas de destruição maciça, ou com a possibilidade de Saddam ser um apoiante da Al-Qaeda, que não era. A origem da decisão tem a ver com uma ideia mais global da resposta à crise suscitada pelo terrorismo apocalíptico que se verificou nas torres nova-iorquinas e no Pentágono, mas também nas embaixadas africanas dos EUA, nas discotecas de Bali, no metro de Londres, nos comboios suburbanos de Madrid e um pouco por todo o lado, da Índia à China, do Cáucaso aos Balcãs.

Na Administração americana surgiu a ideia de que, para combater a nova forma de guerra que é o terrorismo, não bastava erradicar as bases terroristas onde elas existiam (como no Afeganistão ou Sudão), o que era visto como um sintoma, mas ir à causa, à relação de forças que bloqueava todos os processos políticos que deveriam "distender" o Médio Oriente e permitir a resolução de conflitos antigos como o da Palestina. Esses conflitos não eram a causa do terrorismo da Al-Qaeda, de uma natureza diferente do Hezbollah ou do Hamas, mas, ao funcionarem como um irritante geral, bloqueavam as forças moderadas e moderadoras no mundo árabe-muçulmano e impediam a estabilização da região. A importância geoestratégica do Médio Oriente era crucial para o resto do mundo por causa da dependência do petróleo, líquido que tem a tendência natural para surgir só em sítios complicados.
Para que não se pense que estes argumentos são de agora, cito o que escrevi em Fevereiro de 2004:
"O 11 de Setembro revelava uma nova dimensão do terrorismo que envolvia nações, grupos e indivíduos. Envolvia novas tecnologias de terror e toda uma série de novas tecnologias estavam (estão) na calha. Tinha um epicentro em parte do mundo muçulmano, tinha um epicentro dentro desse epicentro, o conflito israelo-palestiniano, envolvia nações como a Arábia Saudita, o Afeganistão, o Paquistão, o Irão, a Síria, o Iraque, o Iémen, o Sudão, e algumas mais. Envolvia políticas que eram activamente prosseguidas por vários estados: o Afeganistão servia de base a Bin Laden, mas o Iraque estava a tornar-se, junto com a Síria e o Irão, num dos principais desestabilizadores na Palestina.

Toda a panóplia de soluções diplomáticas tinha falhado em tornar a região mais segura. O conflito israelo-palestiniano parecia intratável, porque enquanto os grupos terroristas faziam explodir autocarros, os israelitas retaliavam em espécie. O crescimento do fundamentalismo muçulmano associava-se intimamente com as ditaduras da região. Os europeus e as Nações Unidas estavam mergulhadas numa política de manter a todo o custo o status quo. Restava aos americanos esperar outro atentado, a que se contava que reagissem outra vez pontualmente. Os americanos estavam a ser empurrados para um comportamento não muito diferente dos israelitas.

A administração Bush não aceitou esta passividade e fez uma coisa que já estava há muito esquecida pela passividade europeia e pelo politicamente correcto internacional: resolveu fazer uma política activa de mudar brutalmente os dados da questão que implicava acções militares preventivas sobre os estados que ou apoiassem grupos terroristas ou fossem fautores de políticas de desestabilização regionais. Esta politica resultou parcialmente na Síria e na Líbia, mas a sua prova dos nove teria que ser o Iraque. Por várias razões, o Iraque era o único país que tinha os meios e os recursos para prosseguir as políticas anti-americanas mais agressivas na região. Era também um país que se sabia disposto a tudo e com tradição de beligerância, um pária internacional que violava as resoluções das Nações Unidas todos os dias.

Estas eram as razões últimas da política americana e elas têm consistência. O que resta saber, e o episódio das ADM não é de bom augúrio, é se, sendo esta uma política arriscada, ousada e difícil, os americanos e os seus aliados tinham a capacidade militar e política para a levar a bom termo. Porque não é uma política de canhoneira, dão-se uns tiros e vão-se embora os barcos. Exige acções a longo prazo, persistência e tem custos económicos e humanos consideráveis.

Ora, dito isto, preto no branco, eu partilho das razões pelas quais Bush e Blair quiseram ir para a guerra, antes sequer de encontrarem o enganoso pretexto e legitimação nas AMD, e teria preferido que eles tivessem ficado pelas declarações de guerra do pós-11 de Setembro, que tinham uma clareza linear e disseram isto tudo: estamos em guerra e vamos onde for preciso para nos defendermos.

Na história do futuro o que julgará esta política é saber se a resposta global ao terrorismo teve ou não eficácia a longo prazo, se uma política activa, de resposta preventiva ao terrorismo o travou, adiou ou minimizou como ameaça."
Se a discussão se centrar neste ponto, o da natureza da resposta americana e da sua razoabilidade, ela é frutuosa, porque contém um genuíno problema: o terrorismo fundamentalista e o modo de o defrontar. Para o discutir há que entrar em conta com os aspectos de maior complexidade que não só estão contidos no problema, como na suposta "solução" que estava implícita na invasão. E aqui é que existem as objecções mais sérias, como também muito do que correu mal no processo iraquiano e que podia ter sido evitado. Sim, porque nem tudo o que aconteceu no Iraque se deveu à invasão em si, nem aos pressupostos da invasão (alguns dos quais mostraram apontar no sentido correcto nos primeiros momentos), mas ao modo como foi efectuada a ocupação do Iraque. Ou seja, nem tudo o que aconteceu depois de 2003 se deve à invasão, nem é sua consequência necessária ou inevitável, nem a tem como pressuposto.

Muito do que aconteceu no Iraque deve-se a erros cometidos depois da invasão, uns inevitáveis devido ao modo ingénuo, ignorante e incompetente como foi previsto o período da ocupação, outros perfeitamente evitáveis e que se devem a erros clamorosos da Administração Bush.


(Ver no Abrupto a recensão do livro de Rajiv Chandrasekaran, Imperial Life in the Emerald City: Inside Iraq's Green Zone, 2006.)
Todas as críticas que salientam a imprudência e a impreparação americana para lidar com uma das áreas mais complexas do mundo, onde existe há muito tempo um nó górdio da política mundial, criado pelas potências europeias desde a divisão do império otomano e agravado por uma miríade de ideias ocidental como o marxismo, o nacionalismo e mesmo a forma moderna do fundamentalismo islâmico, têm razão de ser. Mas uma coisa é criticar os americanos pela sua ocupação do Iraque e outra é contestar a sua decisão de invadir e negar que nem todos os efeitos da invasão foram desastrosos e alguns foram conseguidos. Por detrás do fumo dos atentados em Bagdad, a única coisa que vemos na televisão, há muita coisa a mudar no Iraque e alguma no sentido desejado pelos americanos. Mas dizer isto parece que causa escândalo. Talvez por isso, fechar o que está a acontecer no Iraque debaixo de conclusões férreas, definidas de antemão desde 2003, e a que pouco interessa a realidade que não seja a dos atentados, é mais do domínio da propaganda do que da realidade.

Segundo, há a questão das "armas de destruição massivas". (Continua)

(Versão do Público, 22 de Março de 2008.)

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